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Angelus
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E-book395 páginas5 horas

Angelus

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Sobre este e-book

M. A. CARVALHO conduz o leitor através do tempo, narrando fatos ocorridos antes da criação e percorrendo a história humana em busca da LEI, a portadora da mente de Deus e do destino dos homens, perdida durante a batalha épica entre os filhos do Criador. Dividida em 3 livros distintos, a obra mostra como os acontecimentos de cada época estão de alguma forma interligados para conduzir a história dos homens a um destino predeterminado. No livro I narra a história de Abrão, fiel servidor dos três filhos de Deus, numa busca incessante por uma caixa onde se acredita estar acondicionada a LEI, roubada por Baalldok durante a grande guerra celestial, o que culmina em uma batalha sangrenta e a destruição das cidades do Vale de Sidim. O Livro II traz a história de Lucius Panteros, jovem militar romano, incumbido de espionar os sacerdotes judeus do grande templo e que tem seu destino mudado drasticamente ao apaixonar-se de forma avassaladora por uma jovem judia. O livro III conta a história de dois primos que crescem dentro da rígida comunidade essênia e sob a supervisão dos filhos do Criador são alçados a salvadores da LEI, numa corrida desenfreada contra o tempo, as elites dominantes e principalmente da destruição que se aproxima. ANGELUS – Gênesis aborda de forma fria e realista o sofrimento do homem e de sua fragilidade diante da manipulação de seres mais elevados, que no fim, se mostram tão fracos e confusos como qualquer ser humano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de ago. de 2021
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    Pré-visualização do livro

    Angelus - M. A. Carvalho

    Prólogo

    No início do tempo, enquanto a superfície da terra ainda ardia em imensos mares de rocha incandescente, eclodiu o maior de todos os conflitos. Acima de todo o novo sistema que emergia onde nada havia, que pulsava furioso, tomando forma, moldando-se, dois grupos travavam uma guerra brutal. De um lado Lúcifer, Baaldok e Rafael comandavam o grande exército de revoltosos. Do outro, Eli, Emael e Uriel tinham sob seus pulsos o comando da resistência, que apesar do menor número, ainda mantinham as posições. Tanto uns quanto os outros nasceram e viveram sob o jugo daquele que sempre simploriamente chamavam de Mestre. O Mestre era o Criador, o grande construtor do universo e pai de cada um deles. Apesar disso, muito poucos eram os soldados que realmente o conheciam. Era uma figura distante, quase um mito. O Mestre vagava pela imensidão, construindo, planejando e semeando vida por onde passava. Diziam que dentre todos os mais preferidos eram Lúcifer, Eli, Emael, Uriel, Rafael e Baaldok. Mas agora eles se enfrentavam. Também diziam que haviam sido gerados juntos e como irmãos nasceram e se tornaram conscientes, não como as outras criaturas do Mestre, que engrossavam os vastos pelotões que se digladiavam. Muitos vieram depois destes, mas nunca houve outros como eles. O Mestre os havia criado não para serviçais, mas sim para herdeiros. Torná-los-ia assim como ele... Criadores.

    O Mestre criou o novo sistema, e quando esse ainda ardia, nomeou Eli como o tutor daquele espaço em formação. Tão prontamente recebeu o desígnio tratou logo de providenciar todos os detalhes. Incumbiu Emael e Uriel, ambos de sua inteira confiança, de traçar os rumos do sistema recém-criado. Eli recebeu das mãos do Mestre uma pequena caixa contendo o que chamavam de a Lei. Só os mais graduados tinham a informação do que continha a caixa, e apenas esses sabiam como usá-la. Dentro dela o Mestre deixava as instruções que regeriam aquele pequeno universo. Dentro das classes mais baixas corria à boca pequena, que até o destino da mais simples e mísera forma de vida estava ali traçado. Nada escapava aos olhos do Criador.

    Lúcifer ficou à espera do próximo sistema, ao qual caberia o seu domínio. Há muito que estava descontente com a preferência do Mestre a Eli. Aproveitando-se dessa fraqueza, Baaldok, o terceiro na linha de criação, astutamente passou a alimentar a belicosidade de Lúcifer. Baaldok sempre foi temido pelo baixo clero. Ficou famoso por destruir um sistema inteiro por não achar que o Mestre havia sido competente. Foi duramente castigado por sua insubordinação e posto a serviço de Lúcifer que logo o tomou por conselheiro. Aos poucos este foi sendo contaminado pela infâmia de Baaldok. Ao mesmo tempo trabalhava em outra frente, junto ao baixo clero, onde seria mais fácil mitigar uma revolta. Profundamente irado com a mão pesada do Mestre, humilhado frente aos mais inferiores, havia jurado vingança e era em Lúcifer que via a ferramenta ideal para levar a cabo suas intenções.

    Baaldok instigou Lúcifer a exigir do Mestre que se tornasse o tutor do universo que foi reservado a Eli. Como não obteve nenhuma resposta voltou-se contra Eli e exigiu que lhe entregasse o sistema e a Lei. Nesse meio tempo, Baaldok com suas tropas sublevadas tomou de assalto aquele universo. Eli foi surpreendido, assim como Emael e Uriel, que numa das primeiras batalhas perderam a Lei. Ainda atordoado pelo ataque surpresa, reuniu os poucos que ainda lhe eram fiéis. Apesar de ter a posse da Lei, era preciso que Eli capitulasse e entregasse o sistema a Lúcifer, que, diga-se de passagem, era apenas um joguete nas mãos habilidosas de Baaldok, cuja fama de crueldade tornava-se amplamente conhecida e temida. Muitas das batalhas eram sangrentas, todos, sem exceção, eram fria e cruelmente assassinados. Enquanto o sistema esfriava e tomava forma, a guerra corria feroz. Eli havia perdido o grosso de suas tropas e agora lutava bravamente junto aos poucos que lhe restavam. Rafael, um dos generais das tropas de Lúcifer revoltou-se contra o comando cruel de Baaldok e de como conduzia a guerra. Queixou-se com o chefe que a essa altura também questionava a legitimidade desse conflito e as proporções que tomava. Baaldok, embriagado pelo sangue dos inimigos, ao saber que Rafael conjurava contra ele, mandou que o prendessem. Baaldok o executou diante de Lúcifer e das tropas, que assistiam atemorizados àquela demonstração de força. Era a primeira vez que assistiam à morte de um dos prediletos do Mestre. Lúcifer perdera o controle de tudo. Seria o próximo. O arrependimento tomou conta de sua alma. Pela primeira vez se deu conta da insanidade que estava cometendo. Alguma coisa precisava ser feita...

    Secretamente, Lúcifer abandonou o front e se entregou a Eli. As tropas ao ficarem sabendo da deserção do líder, desmoronaram. Muitos também se arrependeram e tentaram se entregar, mas Baaldok prevendo uma debandada geral ordenou que todos os que pretendessem desertar fossem assassinados. Eli ficou assombrado com o que via: milhões eram mortos por seus próprios amigos e irmãos. Nunca havia existido tal aberração. Aquele momento de angústia e terror vivido pelas tropas inimigas era o momento propício para uma ofensiva. Decidido a terminar tudo naquele instante, Eli reuniu tudo o que tinha, inclusive os prisioneiros que depois da deserção de seu general tomaram parte na causa de Eli e também Lúcifer, o supremo comandante, tomou posição ao lado de Eli, Emael e Uriel contra seu ex assecla. O combate foi violento. Muitos dos inimigos ao verem Lúcifer lutando ao lado de Eli baixavam armas e aos poucos as tropas de Eli foram tomando o campo inimigo. Baaldok e alguns poucos soldados ficaram acuados pela força esmagadora de Eli. Sem opções, ele tomou a Lei e fugiu para os confins daquele novo universo. Depois de restabelecida a ordem, era necessária a recuperação da Lei. Se Baaldok a usasse poderia pôr em risco a existência da nova criação do Mestre. 

    LIVRO I

    CAPITULO 1

    2024 a.C

    Fazia pouco que a escuridão havia tomado de assalto o sinistro carvalhal de Manre. No céu a rebeldia das pesadas nuvens anunciava que uma grossa chuva despencaria em breve. Em meio ao breu, uma pequena chama a cintilar. Em passos ruidosos e rápidos Abrão ia cortando a massa verde que se descortinava a cada passo. Estava sobressaltado, o vento uivava alto fazendo-o estremecer. O coração ribombava dentro do peito. Sua fronte latejava. No rosto maltratado pelo sol e pelo tempo, uma feição angustiada lhe marcava a face. O vento aumentava e por vezes a tocha quase se apagava quando atingida por uma lufada de vento, mas instantaneamente era novamente reanimada por outra que vinha do lado contrário. A tormenta era iminente. Ele apertou o passo, mas as pernas não lhe obedeciam. A respiração se tornava dificultosa, o cansaço era aparente. Depois de uma hora e meia de marcha estava sucumbindo. Parou um instante, precisava recobrar o fôlego, envergou-se apoiando a mão esquerda no joelho desnudo (para facilitar a caminhada havia erguido a túnica e a prendido junto à cintura). Sorveu profundamente aquele ar fresco e úmido. Era preciso continuar, havia pressa. Ergueu-se num esforço quase sobre-humano. A caminhada continuou, mas agora a passos mais lentos.

    — Preciso chegar... Preciso chegar...

    Mais meia hora e adentrou uma pequena clareira. Parou. A tênue luz da tocha foi bruxuleando devagar até morrer completamente. Não distinguia nada em meio aquele turbilhão de folhas esvoaçantes e a densa escuridão. Prendeu a respiração. Inesperadamente o vento parou. Um silêncio fúnebre tomou conta do ambiente. O único som que podia ouvir era seu coração descompassado, o terror começava a tomar conta de corpo. Deu uma tosse seca, como se quisesse reativar a natureza, mas nada aconteceu. Seus joelhos começaram a tremer. — E agora? — perguntava a si mesmo. Ensaiou um passo, mas desistiu. Num repente um raio rompeu a escuridão caindo diretamente sobre um pequeno carvalho, transformando-o numa densa e alta coluna de fogo. Tudo foi iluminado, como se o sol tivesse nascido mais cedo. Um sorriso brotou em seu rosto cansado, o coração foi lentamente voltando ao normal.

    — Mestre... — murmurou.

    Por entre as enormes árvores retorcidas eis que surgiu a sombra de um homem de grande porte que ao lado da coluna de fogo mostrou-se completamente ao ancião.

    — Que a paz esteja convosco e com todos de sua casa! — bradou solenemente.

    —Ela está comigo todos os dias de minha vida... — retornou Abrão, agora sorrindo.

    O homenzarrão baixou o capuz deixando transparecer um sorriso enigmático. Depois foi até ele e pousou as mãos sobre o ombro do ancião. Abrão afastou os olhos do homem e jogou-se de joelhos aos seus pés.

    — Bendito seja, anjo do Senhor. Sabe que sou seu escravo e que cumpro o que determina... Sou-lhe fiel!

    O homem, enternecido, levantou o cansado ancião e passando uma das mãos por trás de seu pescoço e disse:

    — Bom Abrão, não é meu escravo, mas sim meu amigo! Faz o que peço, pois é fiel a Deus, que também é meu Mestre. Como vê, somos irmãos...

    — Não diga isso Mestre. Sou apenas carne... Carne suja e indigna de olhar seus pés, quanto mais a declarar-se seu irmão.

    — Nenhuma obra de Deus é indigna. Cada ser vivente carrega em si a santidade do Criador. Somos todos iguais... Sempre!

    O ancião sorriu amarelo, como uma criança envergonhada de uma travessura. Não era a primeira vez que Mestre Eli o havia chamado de amigo ou de irmão. Nunca pode entender como um anjo do Senhor pudesse ser tão humilde a se comparar a qualquer homem daquela terra. Não foram raras as vezes que se sentou à mesa com ele e partilharam o pão, mesmo antes de se tornar um dos homens mais ricos e poderosos entre o Egito e Damasco. Mas nem sempre foi assim. Há mais de quarenta anos, quando ainda era um pobre filho de pastor, Eli anunciou a ele que havia sido escolhido para a obra de Deus e que deveria deixar tudo e todos para se dedicar à sua missão. Sem fazer nenhuma pergunta (pois essa era sua natureza, nunca fazia perguntas, nunca julgava) se despediu dos pais e tomando sua esposa partiu para rumo ignorado.

    — Mestre, trago-lhe notícias de Sidim.

    — Sidim? — respondeu Eli com outra pergunta.

    — Meu sobrinho Lot trouxe informações que podem ser úteis.

    — Prossiga...

    — Parece que Quedorlaomer transferiu para Sodoma e Gomorra todos os Sacerdotes de Baal, juntamente com as relíquias capturadas de Ur. Dentre essas coisas estão ídolos de ouro, vasos, estátuas, bois, ovelhas, camelos...

    Eli levou a mão ao queixo pensativo.

    — Por que Quedorlaomer mandaria os despojos para o Vale de Sidim? O correto era ter enviado tudo para a Babilônia, já que é subordinado de Hamurabi. Por que transferiria os sacerdotes de Baal para o Sidim?

    — Não sei senhor, mas Lot me disse também que havia uma grande caixa de ouro que era protegida pelos sacerdotes e uma guarda de trezentos homens. Acho que nossas buscas chegaram ao fim.

    Eli franziu o cenho.  Deu um passo à frente e segurou o homem pelos ombros.

    — O que sabe sobre essa caixa?

    — Meu sobrinho não soube descrever suas características, mas o que ele me disse é o que me faz pensar que seja ela.

    Eli soltou Abrão. Parecia atingido por um raio.

    — Tem certeza do que diz?

    — Total certeza... Não tenho, mas pelo que Lot me contou...

    — O que ele disse? — atalhou Eli, impaciente.

    —Meu sobrinho — continuou Abrão — disse que após a chegada da caixa e dos sacerdotes, coisas estranhas passaram a acontecer...

    — Que coisas?

    — Ele me disse que durante uma cerimônia o sumo sacerdote, junto com Quedorlaomer, abriram a caixa e recitaram palavras ininteligíveis e como num milagre vários sacerdotes passaram a profetizar sobre coisas futuras. Muitas delas disseram que tiveram visões sobre a guerra contra as nações da Mesopotâmia. Alguns dias depois, muitos dos soldados confessaram que tudo o que havia sido profetizado acontecia. Infringiram violenta derrota ao inimigo, que em terror se via assaltado por todos os lados. Antes que tentassem fazer algo eram surpreendidos, como se Quedorlaomer já soubesse dos passos deles.

    — Então é ela... — murmurou Eli, pensativo.

    Eli caminhou em volta da grande coluna de fogo, tinha os pensamentos na caixa. Abrão apercebendo-se que tal notícia o havia inquietado, caminhou até ele, contendo sua marcha.

    — Mestre, perdoe minha curiosidade, pois não sou digno dos assuntos divinos, sabes que não faço perguntas, mas depois de quarenta anos em busca dessa caixa, acho que tenho o direito de saber o que ela encerra.

    A pergunta de Abrão atingiu Eli de cheio. Ficou surpreendido com a altivez com que fora interpelado. Aquele homem simples que nunca fazia perguntas, que simplesmente seguia suas orientações agora estava ali, diante dele exigindo respostas, como se fosse um igual. Teve o ímpeto de repeli-lo, mas conteve-se; afinal Abrão era seu fiel amigo de longos anos e merecia consideração e respeito, como um igual.

    — Claro meu fiel amigo, tem o direito de saber. — Eli estendeu a mão para o ancião que hesitou um pouco, mas segurou-lhe a mão afinal. Fê-lo sentar em um tronco e segurando em suas mãos disse:

    — Não direi, mas sim mostrarei a você o ocorrido para que possa testemunhar por si mesmo o que aconteceu há muitas eras. Agora feche os olhos e não tenha medo...

    Abrão se entregou ao Mestre e em poucos segundos seu corpo parecia ser transpassado por uma corrente elétrica. Seus olhos se movimentavam freneticamente por baixo das pálpebras cerradas.

    — Calma meu amigo... Já está vindo. — murmurou Eli delicadamente.

    Finalmente as imagens foram se formando diante dos olhos surpresos de Abrão. Depois disso, tudo em que acreditava: seus ideais e suas verdades nunca mais seriam as mesmas.

    CAPITULO 2

    Abrão soltou um ronco surdo e caiu de costas para trás do tronco de carvalho. Os olhos estavam esbugalhados e inertes; a respiração era irregular e uma grossa veia lhe saltava do pescoço. Eli correu para ele e levantou sua cabeça para que pudesse recobrar os sentidos.

    — Calma, Abrão, Calma! Respire calmamente — ordenava Eli.

    Aos poucos seu rosto foi corando novamente, recuperou o fôlego e o coração já batia normalmente. Eli o sentou novamente no tronco. O velho olhou para Eli e recostando-se em seu regaço chorou copiosamente. As negras cenas da guerra dos céus lhe assombravam a mente, ainda ouvia os murmúrios e lamentos dos combatentes caídos, à espera da morte. Seu mestre o enlaçou com seus braços fortes e possantes. Depois de longos minutos o velho serenou e se retirou do abraço cálido do mestre.

    — Nunca em minha vida tinha visto coisa parecida. — balbuciou Abrão — sempre imaginei que na casa de Deus houvesse paz e harmonia, mas seus anjos são tão selvagens como qualquer fera que rasteja sobre essa terra.

    — Engana-se meu amigo! Na casa do Mestre reina a paz e a Divindade. Assim como vocês, também somos criaturas a procura da perfeição. Levante-se, caro amigo, não perca sua fé.

    Abrão sorriu timidamente, agora compreendera que realmente era igual ao mensageiro, que apesar de estar acima dele, padeciam dos mesmos males. Agora compreendia.

    — Mestre, o que foi feito de Lúcifer?

    — Depois do arrependimento, foi perdoado e colocado a meus serviços.

    — E só esse foi seu castigo? E a vida daqueles que matou? Não valiam um castigo mais severo? — indagou o ancião visivelmente indignado.

    — Sei o que está pensando — dizia Eli desenhando a terra negra com um dos pés. Mas as coisas não são assim como pensa. A morte daqueles que pereceram nas batalhas não foi nada mais do que um novo aprendizado, uma nova oportunidade de recomeçar em algum outro ponto da imensidão. — disse Eli apontado para o céu revolto. — Ouça o que vou dizer, caro amigo, a morte não tem lugar na Criação. A vida é eterna assim como quem a criou.

    Abrão ficou desconcertado com a resposta. Tentou novamente:

    — Então quer dizer que se eu matar toda a humanidade mesmo assim não serei punido?

    — Do que serve a punição senão a de fazer-lhe avaliar suas atitudes e dar a oportunidade do arrependimento. Pois em verdade vos digo que ninguém fica sem punição. O sofrimento faz parte do processo do arrependimento e tudo isso faz parte da evolução. Quando alguém comete algum pecado de morte somente atrasa sua própria evolução. Mas não perverta o que eu disse, no final todos chegaremos à divindade, uns mais lentos, outros mais rápidos, mas no final cumpriremos o destino de toda a criatura viva e voltaremos sempre para o seio do Criador.

    Abrão levantou-se e bateu as folhas que grudaram em sua túnica. Eli o conhecia muito bem para saber que estava confuso. Pigarreou e lançou mais uma pergunta:

    — Mestre, e Baaldok?

    — Nunca o encontramos. Sabemos que ronda a terra submetendo vários povos ao seu culto. Sempre teve vontade de se tornar um deus, de ser reverenciado, adorado. Baaldok é regido pelo orgulho e por esse orgulho é que espero pegá-lo. Não me importo com ele, pois, após sua fuga ficou debilitado, hoje não deve ser mais do que qualquer homem. Uma vez correu a notícia que havia se fixado na região de Sinar. Tentamos eliminá-lo, mas conseguiu fugir. Depois foi localizado em Babel...

    — A cidade da grande torre?

    — Sim, torre esta que foi construída ao seu mando, utilizando conhecimentos de outras eras.

    Abrão coçou a barba, pensativo. Pelo que sabia, Sinar era o local onde havia começado o dilúvio e a cidade de Babel, fora vítima de grande destruição. Essa cadência de pensamentos o levou a uma conclusão amedrontadora, mas não teve coragem de dizer ao mestre, em vez disso formulou outra pergunta.

    — Mestre, o que é aquilo que a caixa contém e que vocês chamam de Lei?   

    Eli de pronto respondeu:

    — A mente de Deus! Todo o conhecimento e o destino da terra e de todas as criaturas que a habitaram no passado, das que habitam no presente e que habitarão no futuro. Quem tiver o conhecimento de como utilizá-la, controlará toda a Criação...

    A face de Abrão desfaleceu diante tal revelação. Realmente não sabia o que dizer, para um homem simples como ele as palavras de Eli pareciam tomar formas de mau agouro.

    — Mas Mestre, durante anos nós procuramos essa caixa sem nada encontrar, o senhor sabe que dediquei minha vida a sua procura e agora ela aparece assim? Como tal coisa veio parar nas mãos de Quedorlaomer?

    —Não sei, velho amigo. Durante tempos incontáveis eu procurei por ela, sem sucesso, mas devemos ser cautelosos. Se ela está assim tão perto não podemos perder essa oportunidade.

    Uma questão fustigava a mente do ancião. Sinar: dilúvio, Babel: destruição. O que estaria por vir. Respirou fundo e fez a pergunta de chofre:

    — Mestre, se a Lei realmente estiver na cidade de Sodoma, o que acontecerá a ela e a seus habitantes?

    A face angulosa e máscula de Eli se distendeu. Compreendeu os pensamentos de Abrão de tal feita que teve de ser franco e direto.

    — Deverá ser destruída...Todos seus habitantes devem ser mortos.

    O ancião deu um passo para trás aterrorizado. — mortos... — balbuciou quase perdendo os sentidos. — Mas por que sacrificar a cidade pelos pecados de Baaldok? Muitos ali são inocentes!

    —Tem de ser assim... — respondeu Eli vagamente.

    — Pela misericórdia de Deus...

    Eli segurou novamente o ancião pelo braço e olhou profundamente em seus olhos, ele tentou se desvencilhar, mas não conseguia.

    — Caro amigo, todos temos nosso lugar no tempo e no espaço. A cada um de vocês cabe o conhecimento previsto para sua época. Se um povo obtiver conhecimentos de outras eras e acontecimentos vindouros, poderá submeter outros povos ao seu jugo colocando em perigo toda a humanidade. É preciso que essas pessoas morram para que muitos milhares sobrevivam.

    Abrão coçou a barba grisalha tentando driblar sua impaciência. A ideia de destruição lhe causou calafrios. Pensou na beleza daquele vale verdejante e fresco. Por muitas vezes subiu as encostas das montanhas, sempre acompanhado por seu fiel sobrinho Lot e de lá ficavam a admirar a fertilidade daquela terra e a prosperidade daquele povo. Por um momento teve pena de cada um deles...  E de si mesmo.

    Eli continuou.

    — Devemos ficar atentos a qualquer movimento de Quedorlaomer. Se realmente tem a Lei, deve estar contando com a ajuda de alguém...

    — Será de algum dos fugitivos... — atalhou Abrão, referindo-se aos fugitivos que acompanharam Baaldok em sua fuga.

    — Nenhum deles tem a capacidade de usá-la —disse Eli suspirando— se Quedorlaomer realmente a está usando, só pode estar aliado a Baaldok...

    Eli deu alguns passos ficando de frente para coluna flamejante, como se as chamas pudessem esclarecer suas dúvidas. Depois de alguns segundos se voltou para Abrão que o fitava com curiosidade.

    — Amigo Abrão, volte para seu povo. Quero que infiltre espias em todas as cidades do vale a fim de obtermos informações. Durante esse tempo quero que se recolha em seu acampamento e se prepare para o combate ou uma partida rápida. Assim que tiver mais informações volte aqui e me comunique, mas o advirto, somente manda os seus mais fiéis, não mande nenhum homem do pelotão dos Trezentos e Dezoito, pois são muito conhecidos e não quero que Quedorlaomer se aperceba de alguma coisa. Acenda sua tocha e vá.

    Abrão assentiu com a cabeça em reverência, tomou a tocha apagada e a acendeu na grande coluna de fogo. Eli cobriu a cabeça com o capuz escarlate e se pôs ao lado da grande coluna de fogo que já ia esmaecendo até que tudo se tornou breu novamente e a pequena tocha de Abrão se tornou o único ponto luminoso. O vento soprou novamente e Abrão girando sobre os calcanhares se pôs em marcha rompendo a densa escuridão.

    CAPITULO 3

    Ao meio dia, o sol estava a pino. Abrão timidamente ensaiou deixar a tenda, mas estava nitidamente cansado, fatigado. Os últimos acontecimentos iam desenhando um quadro pouco animador. Quem dera houvesse alguém com que pudesse dividir a carga que pesava em suas costas cansadas. Sara perguntou alguma coisa, mas ele apenas soltou um ronco inexpressivo, levantou-se e saiu. Imediatamente sentiu o Sol a castigar sua cabeça e seu pescoço. Procurou logo a companhia do velho carvalho que por muitas vezes o acolhera gentilmente. Na base do grande tronco mandou construir um belo divã de madeira forrado com grossas peles de carneiro. Desabou sobre ele, como se uma força descomunal o impelisse para baixo. Acomodou-se, tirou as sandálias e puxou para dentro dos pulmões grande quantidade do ar quente e espesso que o envolvia. Pensou em Sara. Sempre teve um carinho especial por ela. Era o seu único tesouro. O que mais pesava em seu coração era o fato de ela nunca poder ter-lhe dado um filho. Era um homem muito rico, graças a Eli. Nunca lhe faltou nada; os rebanhos cresciam e se multiplicavam esplendorosamente. Havia milhares de homens a seu comando, servos fiéis que não hesitariam em dar a própria vida por ele. Mas do que lhe servia tudo aquilo?

    Com o passar dos anos foi se tornando triste e rabugento. Aos poucos ia passando para Eliezer, seu amado e fiel servo, o controle sobre os negócios. Agora que a força e a destreza o abandonavam, pensava na imensa riqueza que amealhou em todos esses anos de fiel servidão a Eli. Do que serviria todo o ouro e prata que empanturravam seus alforjes? Pensou em Ismael, seu filho com Agar. Balançou a cabeça em sinal de desaprovação a si mesmo. — Que loucura! — murmurou ele com pesar. Ismael já tinha treze anos, era forte, destemido e impulsivo. Eliezer tentava introduzir o menino no mundo do comércio, mas ele só pensava em caçadas e brigas. O velho Abrão não tinha energia para educá-lo, mas também não tinha interesse. Ele gostava do menino, mas não como filho legítimo. Seu sonho era ter um herdeiro com a mulher que amava e o acompanhava por toda uma vida. Sabia que tudo havia sido ideia de Sara, mas em seu coração pesava o pecado que havia cometido contra ela e ele mesmo. Temia pelo destino de Ismael e pelo povo que fazia parte de sua casa. Um dia ele seria o líder, mas o respeitariam? A benção de Deus estaria sobre ele?

    Foi em meio a essas divagações que adormeceu.

    De um salto Abrão acordou aturdido. Meio desorientado ficou a olhar em volta para se localizar. Quanto haveria dormido? Meia hora, quem sabe? Quando olhou para a pequena colina árida que terminava junto ao carvalhal pensou ter visto três homens descendo a encosta. Forçou a vista cansada e confirmou que três homens caminhavam em direção ao seu acampamento. Os homens caminhavam lado a lado. Do lado esquerdo imediatamente o reconheceu como o Mestre Eli, vestido como uma túnica longa escarlate, amarrada na cintura com um cinto preto com fivela de ouro: sobre a túnica uma grande capa com capuz, sem nenhuma costura e com as bordas finamente trabalhadas. No meio vinha Emael, o qual conheceu no Egito. Vestia uma grande túnica azul com um cinto da mesma cor que apertar-lhe os rins. Sobre a túnica, uma grande capa com capuz de um azul muito vivo cobria-o da cabeça aos pés. Mas o do lado direito, não o reconheceu. Era maior que os outros dois. Ao contrário deles, vinha com a cabeça descoberta. Todo vestido de preto, Abrão logo percebeu que não usava sandálias, mas sim, compridas botas negras e reluzentes.

    Abrão sentiu uma grande dor no estômago, que o fez se curvar. Apertou ventre com as mãos. Sabia que a presença do Mestre significava que a decisão havia sido tomada e que não era favorável às cidades do Vale de Sidim. Sentiu a cabeça ficando leve e as penas bambear. Caiu de joelhos diante dos três homens.

    — Que a paz esteja convosco, velho amigo! — bradou Eli jovialmente.

    — Ela está comigo todos os dias de minha vida. — retornou Abrão, quase sussurrando.

    Emael foi até o ancião e o levantou.

    — Vejo que não está feliz por me ver novamente? — inquiriu Emael com um grande sorriso estampado no rosto.

    Abrão firmou as pernas e se recompôs. Respirou fundo e como num passe de mágica seu rosto modificou-se tomando um ar mais alegre.

    — É sempre uma honra recebê-los em minha humilde casa. Deixe-me abraçá-los velhos amigos.

    Depois do longo abraço em Eli e Emael, Abrão olhou fixamente para o homem de negro. Tinha peito largo e braços vigorosos. A face era angulosa e viril, certamente era uma bela figura. De repente teve um estalo. Já o havia reconhecido. Era o grande guerreiro que lutou ao lado de Eli contra as forças de Baaldok.

    — Mestre Uriel, é muito bom conhecê-lo.

    A face dura do homem se desfez em um sorriso fraternal.

    — Também é muito bom conhecê-lo, já ouvi falar muito de você!

    Abrão admirou-se.

    — Perdão Mestre, mas sou muito insignificante para que se preocupem em falar de mim.

    — Não é insignificante. — interrompeu Eli. — É para nós um importante aliado. É como nosso irmão.

    O velho corou diante o elogio de Eli.

    —Pois saiba Abrão, que contei a Uriel nossas incríveis aventuras no Egito, e de como se saiu bem com faraó.

    — Ora, não seja gozador. Se não fosse pelo senhor, há essa hora meu corpo estaria despedaçado e disperso pelos quatro cantos do Egito.

    Emael deu uma longa risada que acabou contagiando Eli e Uriel.

    — Diga-me uma coisa, caro amigo... — continuou Emael — a sua bela esposa ainda faz aqueles incríveis queijos?

    — Ainda os faz e confesso que toda a vez que como deles me lembro do senhor.

    — Muito bom! — disse Emael piscando um dos olhos.

    — Por favor, vamos entrar em minha humilde casa, para que lavem os pés e se reconfortem da viagem. Vou providenciar comida e vinho para meus grandes amigos do céu.

    Abrão os acomodou na ampla tenda forrada de grandes almofadas. Buscou água e lavou-lhes os pés. Enquanto Sara preparava a refeição, Abrão deu ordem a Eliezer que escolhesse o melhor de suas ovelhas e novilhos e os preparasse sem demora para os ilustres visitantes.

    Uma grande mesa foi posta com o que de melhor havia naquelas terras. Grandes cachos de uvas frescas, tâmaras e figos secos, queijos de cabra e de vaca, um terneiro assado inteiro fumegava dentro de uma tigela de barro, um belo vitelo cozido com ervas aromáticas além de diversos tipos de pães e castanhas.

    A refeição transcorria num ar de cordialidade e rememorações de grandes aventuras. Sara assumiu pessoalmente o serviço junto aos convidados. Por várias vezes adentrou a tenda levando odres de vinho. Numa dessas entradas foi observada com mais atenção por Uriel. Apesar de seus cinquenta e seis anos recém-completados, Sara ainda guardava em seu rosto a beleza que tanto encantara

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