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Chicuta
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E-book158 páginas1 hora

Chicuta

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Sobre este e-book

Ensaio biográfico de Francisca Pereira Lima e seus escassos trinta e cinco anos de vida, além de um mural da História que precedeu ao seu nascimento. Nascida em 1917 no Lago do Anveres, no interior do Amazonas, o livro descreve o seu périplo desde o casamento em Iquitos, no Peru, até o Rio de Janeiro da década de 1950, culminando com o regresso à terra natal, quando precisou arrostar os desafios da supervivência honrando os desígnios de Deus.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de fev. de 2022
Chicuta

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    Pré-visualização do livro

    Chicuta - Renato Mendonça

    APRESENTAÇÃO

    F

    inalmente, decidi escrever este livro sobre a biografia de minha mãe, depois de muita hesitação. A bem da verdade, me sentia inabilitado para trazer à baila os episódios vividos por ela, como se eles fossem negativos de fotografias. Carecia revelá-los na câmara escura do discernimento; fixá-los nos seus respectivos capítulos; para enfim emoldurá-los na história. Uma tarefa que o próprio livro me ensinou, ao ver tanta informação sendo disponibilizada, própria para ser catalogada na cronologia do tempo. O encargo me deixou recompensado, encheu-me de orgulho e de prazer, porém, ao mesmo tempo, me entristecia ao reviver, caminhando anônimo ao seu lado, todos os seus passos.

    Procurei me abastecer de informações fidedignas, de datas legítimas e de dados consistentes, para embasar o argumento de uma boa literatura. No entanto, descobri que algumas ilações são sempre necessárias para se iluminar os caminhos da História; elas partem de pressupostos, de intuições, mas estão em sintonia com o coração, às vezes somente com o desejo da alma. Ademais, eu queria não apenas mostrar a mera história de minha mãe e seus escassos trinta e cinco anos de vida, mas sim, uma porção anterior ao seu nascimento. Descortinar algumas combinações divinas que ocorreram nos tempos idos, para que ela pudesse realizar sua sublime missão maternal; e eu, como um dedicado discípulo, narrar alguns episódios e seus antecedentes.

    Outra coisa que me instigou foi a certeza de que meus avós e bisavós maternos foram vítimas da Grande Seca ocorrida no sertão nordestino entre 1877 e 1879, ainda no Período Imperial. Quis relatar, mesmo de forma sintetizada, esses fatos dramáticos; mostrar um pequeno painel do êxodo dos Pereira Lima, de uma forma romanceada, com um final feliz, até certo ponto. Garimpando a maioria das notícias nos vários periódicos da época, tendo o cuidado de não esbarrar no prolixo. Filtrando e comparando diversas fontes, feito um menino curioso ouvindo de várias pessoas, narrativas diferentes para o mesmo acontecimento. Preocupou-me o anacronismo, que muitas vezes ocorre involuntário.

    Externo aqui neste espaço meus agradecimentos pela contribuição primordial que tive de parentes próximos, que demonstraram um interesse incomum, como se estivessem pegando em minha mão para ajudar a escrever. Sem eles, talvez o projeto não alcançasse a ousadia desejada para se imprimir no papel e se prestar à leitura, ou pelo menos se alojar numa estante com outros livros. Foram eles, os primos, as primas e os irmãos, os grandes protagonistas, narradores de fatos históricos, que me apontaram o fio da meada e me ajudaram a desembaraçar o grande novelo, para chegar à essência dessa biografia. E dessa forma, Francisca Pereira Lima — nome de solteira — conseguiu ter sua curta história exposta em prosa. Pode sentir, do seu lugar etéreo, a importância da grande mulher que foi na sua existência terrena. Pode ver, com seu olhar espiritual, o legado que deixa semeado nos filhos com o adubo eterno — o amor —, com raízes profundas, infindas. E pode ter a certeza de que sua obstinada luta pela vida, nos tempos infaustos da doença, amalgamou no espírito de cada descendente o sentimento da fé; e no corpo, a resiliência.

    A menina Chicuta ainda viverá entre nós, em nossos corações, eternamente; ainda ecoará o resultado de seus gestos e atitudes nas lembranças familiares; ainda permanecerá em nossos espíritos sua mensagem de luz, que emana de seu olhar emblemático nas fotos que colecionamos, feito cromos especiais de nosso álbum de família.

    Este livro é, antes de tudo, um tributo às mulheres guerreiras, algumas delas lembradas aqui, apenas em episódios esporádicos, por falta de subsídios, por falta de dados temporais ou por falta de perspicácia da minha parte; mas, sutilmente, desmitifica-se o epíteto sexo frágil: elas são, sim, bravas heroínas de uma geração!

    Com o projeto pronto, sinto que a obra se tornou ambígua: parece um documentário, mas não deixa de ser um romance dramático. Não me incomodo com essas suspeitas, para mim serviu como uma realização de vida, uma viagem na cápsula do tempo; infelizmente, incapaz de mudar o desfecho do último capítulo.

    E, para ilustrar o meu prazer, há poucos dias, experimentei uma felicidade incomum ao ouvir uma voz, do outro lado da linha, quando fiz uma ligação telefônica para a prima Marly: Quem tá falando, é o filho da tia Chicuta?. A frase, inconscientemente, revelou-me o nome do livro. E não poderia ser mais oportuno, pois era o nome carinhoso que todos a conheciam, mais caseiro, mais personalizado; particulariza uma única pessoa e lhe dá a visibilidade de uma eterna juventude. Um codinome que a família usou desde o nascimento até seus derradeiros dias.

    Sinto-me honrado em resgatar pormenores de sua vida, trazer à luz do conhecimento o caminho percorrido por ela em sua vida nômade; o deleite ao expor algumas revelações, contadas pelos parentes, que ouviram de seus pais e souberam guardar no relicário da família.

    O relicário que agora pode servir, também, como um bálsamo espiritual para tentar cicatrizar a ferida da saudade que nunca se fecha. A partida prematura de minha mãe foi um pesado golpe; uma provação, sem um provimento no futuro; uma avaria na família, que tinha como baluarte uma mulher provida de amor, candura e fé.

    Alguns parágrafos serão lidos no tempo presente, talvez um desejo consciente do autor, em ver os personagens vivos, dentro do livro, descrevendo suas narrativas.

    Os primeiros capítulos, como disse, têm a simplória pretensão de trazer a público, em forma de crônica, os bastidores ou aquilo que esteve por trás da cortina empoeirada do flagelo com a terrível seca do Nordeste, particularmente do Estado do Ceará — alguns momentos, fragmentos pontuais, pequenos retratos 3x4 da História do Brasil.

    Recomendo que pesquisem, leiam e reflitam sobre esse triênio de calamidades, de lutas e desafios vividos por nossos antepassados, autênticos heróis da família; heróis de carne e osso num tempo de realidades cruas e difíceis de sobrevivência no árido sertão nordestino.

    Agradeço a todos, por me permitirem oportunizar a exposição dos meus sentimentos de gratidão.

    Boa leitura!

    O CANTO DA SERIEMA

    D

    esce lentamente a multidão, formada por pequenos nichos familiares. Os jegues participam dessa procissão também, são eles quem, de cabeça baixa, carregam no lombo mantimentos, roupas e tudo mais, o opróbrio de uma longa viagem até a primeira estação de trem que pudesse levá-los à capital. Sem a certeza de chegarem, porém com a fé e a tenacidade de gente acostumada ao flagelo. Alguns adultos ali presentes, com seus rostos enrugados, já haviam enfrentado esse fantasma em tempos idos, três décadas antes, sem a mesma proporção. Agora, abandonam suas casas e suas roças.

    Depois de longos meses de espera pelo milagre da chuva que não veio, os sertanejos não têm mais esperança nem desejam que a Grande Secca se repita como exatamente há cem anos. Nem gostariam de reviver a mais recente — período de estio entre 1844 e 1845 —, quase tão catastrófica como aquela; muito menos o oposto, ocorrido há dois anos, uma enchente de grandes proporções que causou muitas misérias. Tal como as tragédias do romance de García Márquez em Cien Años de Soledad, aquela turma de retirantes se torna cada vez mais impersonificada. São apenas números de uma estatística funesta, onde os que perecem são contabilizados como numa guerra. Uma guerra sanitária, promovida pelas pragas e doenças que, indesejavelmente, caminham junto com eles deixando um rastro de horror.

    Para se ter uma ideia da magnitude da devastação, em apenas um mês, contando-se adultos, velhos e crianças, foram dizimadas por inanição, ou pela oportunista varíola, mais de quatorze mil pessoas; e por outras moléstias, quase mil mortos. Todas essas perdas estão configuradas nos dados oficiais; além desses, muitos não foram passíveis de identificação, pois foram abandonados insepultos pelo caminho, entre os quais, muitas crianças sem documentos de identidade.

    Foto preta e branca de trem nos trilhos ao lado de uma rocha Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Corpos abandonados em linha férrea, seca 1877

    Os historiadores transferiram para os anais da História uma visão holística dos problemas que acarretaram essas perdas humanas: a mortandade, a fome, as doenças e o êxodo de nordestinos dos sertões para as províncias do Sul e do Norte do país.

    O repórter Herbert Smith, que fez a cobertura das mazelas da Grande Seca para a revista americana Scribner’s Magazine, relatou anos depois, em 1883: provavelmente morreram mais de 500 mil sertanejos, entre fome e varíola. Numa comparação com os dias de hoje com as mortes pela Covid-19, temos quase os mesmos números, no entanto, o Brasil dos fins do século XIX tinha menos de dez por cento da população atual.

    Foto em preto e branco de multidão de pessoas Descrição gerada automaticamente

    Flagelados, em estação ferroviária municipal, aguardando o trem para Fortaleza.

    As políticas de reassentamento dessas famílias em outras províncias não atingidas, ainda não constavam de programas do governo Imperial, apesar das secas e outros flagelos já terem acontecido em outros tempos.

    O Rio de Janeiro, onde ficava a sede do Império, estava a uma distância considerável, e as notícias enviadas pelo presidente da província do Ceará chegavam em conta-gotas, pelas linhas telegráficas insensíveis, sem uma narrativa capaz de sensibilizar a Corte dos aspectos desumanos vividos por

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