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Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX: Maria do Carmo de Mello Rego
Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX: Maria do Carmo de Mello Rego
Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX: Maria do Carmo de Mello Rego
E-book349 páginas4 horas

Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX: Maria do Carmo de Mello Rego

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Sobre este e-book

No século XIX, mesmo sendo uma prática depreciada pelo mundo masculino, foram muitas as mulheres que viajaram e registraram em diários pessoais e livros de memórias o cotidiano e os movimentos sociais e culturais de forma intimista. Na perspectiva da História Cultural esses registros surgem como documentos, fontes históricas e gêneros discursivos, por meio dos quais trajetórias de vida podem ser espiadas. A presente obra se debruça sobre o diário pessoal e o livro de memórias de Maria do Carmo de Mello Rego, uma mulher viajante do século XIX, singular, que quis perpetuar a memória por meio da palavra escrita.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de out. de 2022
ISBN9788546215539
Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX: Maria do Carmo de Mello Rego

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    Pré-visualização do livro

    Memórias de Uma Mulher Viajante do Século XIX - Maria Ester de Siqueira Rosin Sartori

    Apresentação

    A presença feminina ativa nos mais diferentes espaços da vida social foi escamoteada (invisibilizada ou subalternizada) da narrativa e da literatura histórica que se fez oficial no Brasil. O livro Memórias de uma Mulher Viajante do século XIX¹ de Maria Ester de Siqueira Rosin Sartori vem agregar a um conjunto de outros esforços para colocar em foco nos estudos históricos e socioculturais o protagonismo das mulheres e da produção dos seus escritos, especialmente no século XIX, dentro de um universo hegemonicamente masculino, dando a ver os conflitos e enfretamentos destas presenças femininas.

    A narrativa proposta pela autora desdobra-se a partir da afirmação de que antes mesmo das modernas discussões sobre as relações de gênero e seus papéis na sociedade, as mulheres viajavam ora movidas pelo espírito aventureiro, ora empurradas pelo casamento, como damas de companhia ou levadas à força, seja pela escravidão ou por imposição familiar. No universo dessas mulheres viajantes, algumas registraram suas experiências em diários ou relatos de memórias, mostrando que seus relatos pessoais e de viagens puderam conviver quando tiradas do interior das narrativas masculinas, em que aparecem sobrepostas aos escritos estruturados como páginas prontas.

    Ao tecer os fios que bordam sua narrativa, Maria Ester dá relevo à escrita feminina autobiográfica. Uma forma de escrita de si que demonstra a auto constituição ativa do eu, como informa Margareth Mclaren (2016)². A escolha é lançar o olhar em direção ao particular, ao inusitado e ao peculiar que surgem em registros pessoais femininos. Tal caminho, como bem nos lembra a autora, exige uma mudança de perspectiva, dimensão e escala da observação em relação aos processos e objetos estudados, tendo em vista a busca em investigar casos específicos e singulares que possibilitem explicar e compreender outros processos globais.

    O desafio de compreender o estatuto legítimo das narrativas biográficas e autobiográficas nas Ciências Humanas para compreender a partir da dimensão micro-histórico e sociocultural é algo que tenho enfrentado nos últimos anos, associada e fortalecida com os diálogos tecidos com outras estudiosas críticas as velhas dicotomias: indivíduo/sociedade; subjetivo/objetivo; e a perspectiva e o uso instrumental das histórias de vida³.

    A escolha em narrar uma vida e ouvir o que o indivíduo tem a dizer sobre si, sobre suas experiências, sobre sua colocação em uma dinâmica social, parte também do reconhecimento e valorização das ações destes agentes históricos. Essa é uma discussão antiga e reporta ao início da própria configuração das Ciências Sociais enquanto disciplina, conforme lembra Maria Isaura Pereira de Queiroz (1988)⁴. No texto de Ester, ressalto, encontramos abrigo na afirmação da relevância dos registros pessoais como fontes vigorosas para as pesquisas históricas e socioculturais, especialmente das escritas femininas.

    A protagonista desta história é Maria do Carmo de Mello Rego, uma viajante que no século XIX, movida pelo desejo de conhecer por dentro aquele imenso universo natural, social e cultural que a circundava, se deslocou pelos rincões do Mato Grosso (um Brasil interno que buscava se modernizar), através dos meandros das águas e charcos do pantanal e dos caminhos e picadas mata adentro, alinhavando encontros, descobertas e conflitos vivenciados e registrados no seu diário autobiográfico e nos livros de memória.

    Neste livro nos encontraremos com diferentes personagens que atravessam a vida daquela mulher que subverte o lugar social estabelecido às mulheres, tradicionalmente reservado ao espaço doméstico, para figurar em navios, excursões pelas matas da região. Nascida em 1840 na Estância de Lencho, Uruguai, era uma mulher das elites que chegou ao Brasil, vinda da América Latina empurrada pelo casamento, acompanhou seu marido, o presidente da província à época.

    É importante destacar que o trabalho de Ester apresenta o deslocamento da narrativa histórica hegemônica quanto a origem dos/das viajantes ao contar a história de vida daquela mulher, afinal ela parte rumo ao interior do Brasil vinda da Latino América e não da Europa como era comum entre os viajantes à época. Com isso, a pesquisa nos ajuda a colocar em questão esta centralidade da presença masculina europeia nas narrativas históricas sobre os viajantes, ao evidenciar outros pontos de onde saíam em viagem homens e mulheres de diferentes condições sociais para essas terras.

    O matrimonio com o homem que representava a autoridade máxima daquelas terras possibilitou a Maria do Carmo estar e transitar em espaços masculinos e compartilhar das agendas científicas, artístico-culturais e político-administrativas daquela Província. Não só o casamento lhe possibilitou o acesso a esse mundo das ciências e das letras, entretanto dispôs do apadrinhamento do Visconde de Taunay como mentor e conselheiro, o mesmo que a incentivou a escrever e publicar⁵.

    Ademais a autora problematiza a própria ideia de viajante, ao olhar para estas mulheres em deslocamento, e, da mesma forma, para a produção de documentos, registros, relatos sobre elas. Acho interessante e provocador quando Ester coloca neste hall de mulheres viajantes, as mulheres africanas que foram trazidas para o continente dentro do empreendimento escravagista.

    Ao dar relevo aos escritos femininos, Ester tece os pontos dos deslocamentos territorial e sociocultural que marcaram a experiência de vida de Maria do Carmo ao adotar uma criança Bororo de sete anos⁶. Essa criança, como nos informa a autora, se apresenta como instrumento de compreensão das relações e ambiguidades entre dois mundos unidos em meio às adversidades culturais, a saber: o mundo dela, da mulher branca burguesa, e o da criança indígena entendida como selvagem; e as circunstâncias as quais estava vinculada que foram se agravando com a morte do filho adotivo.

    Os conflitos eminentes do desejo da maternidade que não se podia alcançar naturalmente e que se logrou através da adoção de Piududo (beija-flor)⁷, ou simplesmente, Guido ocupam um espaço singular nos registros pessoais deixados por aquela mulher. Ao problematizar o lugar de centralidade que aquela criança ocupa nestes relatos, Ester problematiza esse lugar tomado como paradigmático destes conflitos entre o desejo de realizar parte do ideário de realização feminina à época que envolvia ser mãe e o estranhamento, o animismo, o exotismo e a curiosidade característicos de um ideário científico que a concebia como primitiva e, por isso, necessária de ser conhecida, apropriada e civilizada.

    A obra sublinha que a prática da escrita possibilitou Maria do Carmo a elaborar e se deparar com os valores sociais de classe como um espaço fundamental de elaboração destes conflitos. Mas, principalmente, como a escrita se coloca como reinterpretação, que superam as organizações sociais do Mato Grosso, seus relacionamentos e a realidade vivenciada, dando a ver aspectos mais amplos, muitas vezes não compreendidos, que são possíveis de serem revelados a partir da observação minuciosa num olhar em dimensão microscópica.

    Para construir sua narrativa da história de vida daquela mulher, a autora nos conduz através das imagens cartográficas que potencializam o olhar do leitor para ver a complexidade que se configura naquele território⁸, outro elemento de grande contributo do livro. O uso das cartografias nos dá possibilidade de uma leitura mais prospectiva a partir do que a Maria do Carmo nos anuncia em seus registros sobre o Mato Grosso e a disputa do território, bem como sobre as relações de poder que constituem aquela territorialidade. Mobilizada por esta intenção, a autora intercruza aos relatos biográficos e às cartografias, os desenhos e pinturas em aquarela produzidas por Piududo. Através da obra dele, nos é apresentadas as representações culturais e naturais que compunha a vivência Bororo do menino, bem como os seus próprios confrontos diante do mundo do branco e civilizado.

    Ao intersecionar os relatos pessoais de Maria do Carmo, as cartografias e a produção artísticas de Pindudo, somos levados a mergulhar no universo sociocultural construído nas bases do afeto, entretanto atravessado, ao mesmo tempo, pelas ideologias da época. As descrições apresentadas ao texto são emblemáticas sobre estes processos. Por exemplo, o olhar exótico que aquela mulher não conseguiu superar e que se torna evidente na manutenção dos cabelos compridos do menino. Uma marca da sua indianidade que ela desejava manter visível; bem como, o encantamento e a afirmação de uma habilidade inesperada como artista ao fazer os desenhos e pinturas (expressões da vida cultural indígena, da flora e fauna locais), que o colocava num lugar diferenciado diante dos outros. Ao mesmo tempo, o batismo se mantém como prática que estabelece a entrada daquela criança no mundo daquela mulher, estabelecendo através desta relação, o que Maria Ester denominou de refiguração.

    Corroboro quanto a essa importância dos registradas em diários e cartas como fontes históricas que nos possibilita leituras atravessadas pelas subjetividades dos sujeitos. Narrar é contar uma história. Toda história pressupõe a configuração de enredos, tramas, diferenças, distinções, reconhecimentos e pertencimentos das pessoas e grupos sociais entre si e entre outros, conduzidas no tempo – não um tempo linear – e no espaço. Quem narra, narra de um ponto de vista, de uma perspectiva, de um lugar, num tempo e sobre um tempo.

    Por fim, Ester problematiza o que selecionamos para construir nossas narrativas de memória. Ou melhor, na relação entre narrar e lembrar é preciso considerar a presença de embates políticos, permeando a constituição das narrativas e permeando a lembrança e o esquecimento (Kofes, 2001, p. 12). Afirma que fica na memória aquilo que significa para os sujeitos sociais. E mais, apresenta uma narrativa produzida por uma mulher viajante que traz peculiaridades em sua trajetória de vida, para olhar para o contexto de uma região em processo de configuração social, territorial, fronteiriço, identitário, civilizatório, mostrando isso nas rasuras, nas dobras, nos silêncios, nas contradições, na reprodução do pensamento científico e ideológico sobre os outros de maneira por demais instigante. Ester nos apresenta em sua escrita densidade! O texto dela nos põe um passo adiante a todas estas coisas.

    Cristiane Santos Souza

    Antropóloga, professora na UNILAB-BA e na UFBA


    Notas

    1. Tese de doutoramento, defendida em 28 de março de 2018, no programa de pós-graduação em História, na Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do professor Paulo Miceli.

    2. Maclaren, M. A. Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 199.

    3. Kofes, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas: Mercado de Letras, 2001; Kofes, Suely; Manica, Daniela (org.). Vida e Grafias. Narrativas antropológicas, entre biografias e etnografia. Rio de Janeiro: Lamparina e Faperj, 2015.

    4. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do indizível ao dizível. 1988. In: Von Simon, O. M. (org.). Experimentos com História de vida. São Paulo: Vértice.

    5. Ester destaca as obras de Maria do Carmo: um diário autobiográfico, Guido, páginas de dor, no qual relata sobre seu filho adotivo, que faleceu ainda na infância no Rio de Janeiro; e Lembranças do Mato Grosso, um livro de memórias que descreve a realidade do Mato Grosso, dois anos após a morte do seu filho.

    6. Grupo étnico predominante naquele território.

    7. Na língua bororo (autodenominado boe wadáru) é uma língua da família linguística bororo, que pertence ao tronco linguístico macro-jê.

    8. Souza, Cristiane Santos. Entre relatos de vida, fotografias e cartografias: uma etnografia em diferentes proximidades. In: Kofes, Suely; Manica, Daniela (org.). Etnografia e Biografia na Antropologia: experiência com diversas grafias sobre a vida, 2014.

    Prefácio

    No mês de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro destruiu uma das maiores coleções de artefatos culturais do país, os quais foram recolhidos durante mais de 200 anos por colecionadores e pesquisadores das mais diversas áreas do saber. As chamas revelaram para o mundo a ausência de cuidado com a preservação dos museus no Brasil. Triste capítulo da nossa história. Junto dos objetos destruídos estava a coleção etnográfica de artefatos indígenas do Mato Grosso doados por Maria do Carmo de Mello Rego em 1888. As peças dessa coleção contavam muitas histórias, desde os saberes, os costumes e rituais das etnias que viveram no Mato Grosso, até a relação colonial estabelecida pelo estado imperial. Contudo, o interesse dos pesquisadores pela coleção tem sido as peças do filho adotivo de Maria do Carmo, Piududo, indígena da etnia Bororo. Mas e a mãe? Quem foi essa mulher e quais foram os motivos pelos quais ela atribuiu tanto valor aos artefatos indígenas.

    As experiências de vida e as memórias de Maria do Carmo de Mello Rego como viajante, escritora e, porque não, antropóloga, serão agora divulgadas pelo trabalho da historiadora Maria Ester de Siqueira Rosin Sartori. A tese que ganha a forma de livro reuniu, por ocasião da banca, cinco professoras doutoras na Unicamp, um fato incomum em nossas rotinas acadêmicas da universidade.

    Muito já se falou sobre a necessidade de resgatar o papel das mulheres no mundo de Clio. E não faltam historiadoras dedicadas à tarefa de analisar as escritas femininas e redesenhar o que a influência do patriarcado apagou do nosso passado. No entanto, ainda sabemos muito pouco sobre as mulheres escritoras e viajantes do século XIX na América Latina. Em parte, porque os diários e a correspondência pessoal são fontes históricas guardadas, em sua maioria, por acervos privados de família, o que torna o acesso público a esse material mais restrito. Logo, o trabalho de Maria Ester Sartori em reunir esse acervo pessoal de Maria do Carmo de Mello Rego e analisá-lo na relação com outras fontes dispersas em arquivos públicos constitui uma operação arqueológica de muita relevância para propiciar outras pesquisas sobre o tema da escrita das mulheres viajantes.

    Sendo assim, a tese de Maria Ester Sartori insere-se na genealogia do tema, ampliando questões apontadas pelo livro precursor de Tânia Quintaneiro⁹, escritora que revelou as representações das mulheres no lugar submisso de suas funções domésticas, visto que o princípio de comparação dos homens viajantes era a identidade da mulher europeia, burguesa, a rainha do lar. Se as mulheres brasileiras retratadas pelos homens viajantes pudessem falar para eles, o que elas diriam? Quais eram os seus desejos e aspirações, suas visões sobre a política do Império, a condição da escravidão no Brasil e das guerras com as comunidades indígenas, que ocupavam as fronteiras da região que se pretendia ser o Império do Brasil.

    Todas essas questões políticas tangenciaram a história de vida de Maria do Carmo de Mello Rego, nascida em 1840 na Estância de Lencho, Uruguai (atualmente a província de Cerro Largo). Sabe-se pouco da sua vida até seu casamento com o general Francisco Raphael de Mello Rego, em 18 de outubro de 1860, no Jaguarão, Rio Grande do Sul. A região de fronteira onde Maria do Carmo nasceu era território em disputa pelo Império do Brasil, as Repúblicas do Prata e os Farrapos.

    Com a mudança de cargo do seu marido para o exercício de presidente da província do Mato Grosso, entre 16 de novembro de 1887 a 6 de fevereiro de 1889, a tarefa de acompanhá-lo levou Maria do Carmo a viver em outra fronteira disputada, agora com as comunidades indígenas da região. Essas experiências levaram Maria do Carmo a compilar suas memórias de viagens em um livro intitulado Lembranças do Matto Grosso (1897). Segundo Maria Ester Sartori:

    Suas páginas apresentam uma mulher aventureira, desbravadora, caçadora, antropóloga e comprometida com outras questões de caráter cultural. Foram essas as fontes que permitiram a aproximação entre as histórias e as memórias de Maria do Carmo, seus percursos e percalços, no contexto das viagens.¹⁰

    Por meio dessas memórias escritas, Maria Ester Sartori investiga como Maria do Carmo de Mello Rego esteve associada com o discurso científico da sua época, pois ela assumiu as ideias civilizacionais como lente para interpretar suas experiências na região do Mato Grosso. As redes de sociabilidade de Maria do Carmo estiveram ligadas a escritores românticos, como Visconde de Taunay, o botânico Ladislau Neto e o cientista naturalista alemão Karl Von de Stein. Logo, a filiação de Maria do Carmo do Mello Rego com os ideais evolucionistas de sua época poderia tê-la influenciado a adotar Piududo e tomá-lo como experimento civilizatório.

    Nota-se que o problema social do contexto da escrita de Maria do Carmo de Mello Rego é a oposição construída entre a corte do Rio de Janeiro, lugar dado como ideal de cidade civilizada, com as regiões do interior do Império, em especial as regiões de fronteira. Dado esse cenário, a escolha de Maria Ester pela abordagem metodológica da história cultural insere os conflitos etnoculturais, sociais e econômicos dos impactos que a colonização causou no Mato Grosso, bem como destaca as relações da escritora com a retórica indianista característica do Romantismo no Brasil.

    Depois de nos apresentar a singularidades da trajetória de Maria do Carmo Melo Rego, no primeiro capítulo, passeamos com ela nos seus diários, por e memórias de viagens no segundo e terceiro capítulo, quando Maria Ester Sartori chega conosco ao capítulo quarto e derradeiro sobre a maternidade exercida na adoção da criança indígena.

    A questão da maternidade é uma categoria fundamental para estudar os papéis sociais das mulheres no mundo oitocentista, porque o projeto de formação do Estado Imperial propunha dar à nação brasileira ares mais civilizados por acreditar que a reforma dos costumes se processaria por meio da instrução feminina. Um dos manuais de educação das mulheres publicado em 1838 enfatizava que As leis sociais que nos excluem das grandes cenas da vida pública nos outorgam a soberania da doméstica e particular, a família é nosso Império.¹¹ E as mulheres que ousavam transgredir esse espaço eram consideradas: a vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria.¹²

    Ser escritora de diários e registrar suas memórias de viajante era permitido a uma mulher como Maria do Carmo, desde que sua escrita fosse confinada no domínio do privado, assim como a questão da sua infertilidade não era matéria a ser divulgada no espaço público. Para Maria Ester Sartori, o diário autobiográfico Guido, Páginas de Dor (1895) escrito após a morte de Piududo foi um ponto de mutação na trajetória de vida dela, porque Maria do Carmo não se reduziu à função de tutora ou madrinha, como era prescrito nos códigos sociais da época, mas assumiu Piududo como mãe.

    Embora a adoção da criança pelo casal à frente do governo da província do Mato Grosso pode ter sido parte das estratégias de pacificação do território, ainda sim como mãe Maria do Carmo transferiu para o filho sua formação cultural mais ampla, seus valores aprendidos nas viagens, estimulando o gosto pelo desenho e arte dos registros de paisagens no filho, todos esses hábitos cultivados por ela mesma como parte do estilo da literatura de viagem.

    Então, os motivos pelos quais Maria do Carmo de Mello Rego escolheu vir a público, compartilhar suas memórias de vida e os relatos confessionais da morte do filho, fizeram dela uma mulher transgressora, por tornar pública sua vida doméstica, suas memórias de dor, da situação de infertilidade e aventuras viajantes. Ao se apresentar assim diante da sociedade, a escrita de Maria do Carmo se colocou ao lado do movimento feminista da época, o qual questionava os códigos sociais que confinavam as mulheres no espaço do lar, mesmo que ela não tenha assumido para si a identidade feminista.

    Por todas essas considerações, a tese de doutorado de Maria Ester Sartori já é reparadora dos silêncios inscritos na história das mulheres, mas a marca que distingue a tese de Maria Ester Sartori reside, antes de tudo, na análise detalhada dos motivos pelos quais escreve publicamente uma mulher viajante comprometida com os processos civilizatórios de sua época demonstrou sua relação de ambiguidade provocada pela convivência com o filho indígena.

    Que a adoção da criança, se apresenta como instrumento de compreensão das relações e ambiguidades entre dois mundos unidos em meio às adversidades culturais: o dela, da mulher branca burguesa e o da criança índia considerada selvagem. E foram essas as circunstâncias, agravadas com a morte do filho adotivo, que permitiram a Maria do Carmo reinterpretar-se, compreender-se e escrever-se na produção de registros.¹³

    A história da escrita feminina no Brasil do século XIX ganhou um capítulo importante com essa tese que ora sai publicada. Em resumo, Maria Ester Sartori demonstra com clareza a capacidade da agência feminina no mundo intelectual do fim de século XIX, por meio da pesquisa das memórias de vida de Maria do Carmo de Mello Rego. Pelas ameaças ao direito à igualdade de gênero no Brasil atualmente, a publicação desse livro pode servir de alimento para os nossos sentimentos de esperança. Sua leitura nos fará lembrar que as mulheres podem escrever publicamente sobre suas ambiguidades, medos e incertezas, embora tudo ao nosso redor possa ser vestígio e interdição da sociedade patriarcal. Ainda assim, as escritas femininas poderão falar por si mesmas e dialogar com todas as outras resistências, as quais teimosamente inscrevem sinais de esperança e respeito.

    Profa. Dra. Suellen Mayara Péres de Oliveira

    Historiadora da Universidade Federal de Integração da América Latina (Unila)

    Foz do Iguaçu, Paraná.


    Notas

    9. Quintaneiro, Tânia. Retratos de mulher: a brasileira vista por viageiros ingleses e norte-americanos durante o século XIX. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

    10. No segundo e terceiro capítulo. Sartori, Maria Ester de S. R. Maria do Carmo de Mello Rego: Memórias de uma mulher viajante do século XIX, a memória perpetuada na palavra escrita. 2018. 188 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 16.

    11. Silva, João Cândido de Deus e Silva. Cartas sobre a educação das meninas por huma Sra. Americana, Passadas do Hespanhol a Portuguez, e offerecidas ás senhoras brasileiras. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1838.

    12. Perrot, Michelle. Mulheres Públicas. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Unesp, 1998, p. 7.

    13. Sartori, op. cit., p. 23.

    Introdução

    Este livro aborda as literaturas de viagens escritas por mulheres viajantes e a capacidade de agência feminina no mundo intelectual, trazendo para o centro das discussões

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