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Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires
Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires
Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires
E-book740 páginas5 horas

Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires

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Sobre este e-book

Este livro é fruto da tese de doutorado de Bárbara Figueiredo Souto. Nesta obra, a autora pesquisa e analisa comparativamente, com rigor teórico-metodológico e bibliografia atualizada, as produções de mulheres letradas no universo latino-americano, mais especificamente os jornais de mulheres que circularam em Buenos Aires e no Rio de Janeiro entre 1852 e 1855: o Jornal das Senhoras (Rio de Janeiro), La Camelia e o Album de Señoritas (Buenos Aires). As redatoras e personagens estudadas neste livro são Juana Manso, Violante Atabalipa, Gervázia Nunezia e Rosa Guerra.

Nesses periódicos emancipatórios, Bárbara encontrou pautas diversas – elas participaram da imaginação nacional, projetando mudanças políticas, econômicas e sociais para o Brasil e para a Argentina –, algumas delas voltadas especificamente para as mulheres, como: educação, reconhecimento da igualdade da capacidade intelectual entre mulheres e homens; acesso das mulheres ao conhecimento científico; "ilustração" feminina; participação política e direitos políticos para as mulheres; fim da condição de submissão feminina; fim da violência física contra as mulheres etc. A autora também confirmou a hipótese de que havia mais similitudes que diferenças nas pautas feministas elaboradas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires nos meados do século XIX.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de mar. de 2024
ISBN9786581177102
Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires

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    Pré-visualização do livro

    Mulheres e imprensa no século XIX - Bárbara Figueiredo Souto

    Agradecimentos

    Este livro é fruto da minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em dezembro de 2019. Assim sendo, agradeço à orientadora Kátia Gerab Baggio por ter aberto os horizontes latino-americanos na minha formação intelectual. Sou grata às professoras Adriane Vidal Costa e Constância Lima Duarte por terem me apresentado instigantes possibilidades reflexivas durante o exame de qualificação. Agradeço às professoras Cláudia Maia, Joana Maria Pedro, Stella Maris Scatena Franco e, novamente, Adriane Vidal Costa, pelas importantes questões apresentadas na banca de defesa. Saibam que o diálogo com mulheres tão competentes muito me honra!

    Sou grata à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa concedida nos momentos iniciais do doutorado, sem a qual seria inviável a minha permanência em Belo Horizonte, para o cumprimento dos créditos em disciplinas, e minha viagem a Buenos Aires, para pesquisas em arquivos e bibliotecas. Agradeço também ao Programa de Pós-Gradução em História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) por viabilizar a publicação desta obra.

    Agradeço aos(às) funcionários(as) dos acervos argentinos pela gentileza com que me atenderam, principalmente à Susana Núñez (Biblioteca Nacional Mariano Moreno), à Mónica Ocaña (Biblioteca Pública de la Universidad Nacional de La Plata) e à Eugenia Sik (Centro Cultural Tierra Violeta).

    Sou grata aos(às) acadêmicos(as) da Unimontes, que me deram força e inspiração durante a escrita da tese. Nossas aulas são sempre momentos oportunos de troca de saberes e afetos!

    É com gratidão e saudades que recordo da família que me acolheu em Belo Horizonte: Soninha, Rômulo e Lulu. Aos meus pais, Beto e Beth, e aos irmãos, Daniel e Túlio, e à irmã, Tauane, agradeço pelo carinho intenso e por sempre acreditarem no meu potencial! À família Lana Figueiredo e à família Souto agradeço pelos momentos de confraternização e alegria que foram fundamentais nesse processo.

    Meus amorosos agradecimentos ao Roger Lambert, que me surpreendeu com um belo reencontro no início do doutorado, tornando-se um esplêndido companheiro de vida, de luta e de profissão! Obrigada por tornar meus dias tão especiais e por estar sempre disposto a refletir sobre a imprensa oitocentista de forma tão profícua! Sou grata também à família Lambert, que me acolheu e me fortaleceu, principalmente ao meu afilhado, Otávio, por me proporcionar tanta alegria. Agradeço também à minha afilhada Isabela, por me dar tanto orgulho pela mulher que está se tornando.

    Agradeço aos(às) queridos(as) amigos(as) que a calorosa Montes Claros me presenteou, especialmente à Cynthia Gusmão, à Maria Alice Mendes e a toda equipe do Cursinho Popular Darcy Ribeiro. Sem yoga, café e trocas de saberes e afetos, esta pesquisa não teria sido concluída.

    Nota da autora

    Estimado(a) leitor(a), como anunciado anteriormente, esta obra resulta da pesquisa realizada durante o doutorado, tendo como texto-base a tese apresentada à banca avaliadora. No entanto, para esta publicação, realizei uma minuciosa revisão, modificando passagens pontuais, reduzindo as notas de rodapé, excluindo tabelas e apêndices, traduzindo as transcrições em espanhol¹ e atualizando a grafia dos periódicos oitocentistas. Em suma, permanecem os argumentos da tese original e grande parte da sua estrutura, mas tive a preocupação de tornar a leitura mais fluida e o livro mais sucinto, buscando angariar mais pessoas para o diálogo e reduzir o número de páginas impressas, em estima ao meio ambiente.

    Espero que aprecie a leitura e sinta-se estimulado(a) para a discussão!

    Com afeto,

    Bárbara Figueiredo Souto.

    Verão de 2022

    Agradeço à Mariane Santos Peixoto pelo auxílio e diálogo profícuo no processo de tradução.

    Na verdade, o esquecimento de escritoras do século XIX é um esquecimento político. Pois não só porque mulheres escritoras são esquecidas; são esquecidas sobretudo as mais atuantes, as feministas, em uma palavra.Zahidé Muzart, 1996

    O feminismo transnacional de

    mulheres letradas de Abya Yala

    El patriarcado es un juez

    que nos juzga por nacer

    y nuestro castigo

    es la violencia que nos ves...²

    Abro este prefácio com um trecho do hino-grito Un violador en tu camino, criado por um coletivo de feministas chilenas sob inspiração dos escritos de Rita Segato, antropóloga argentina com carreira acadêmica e de pesquisas no Brasil. Ele foi entoado numa performance apresentada e gravada no final de 2019, em protesto realizado no Chile e, em poucos dias, viralizou nas redes sociais. Como num movimento de uma gigantesca onda, esse hino-grito se espalhou por várias cidades pelo mundo, traduzido e ecoado por multidões de mulheres em protesto contra a violência e a opressão patriarcal.

    Esse acontecimento é exemplar do tsunami feminista que o século XXI tem testemunhado. Entretanto, ao contrário do que geralmente é apresentado na costumeira história do feminismo narrada em ondas, em que o Norte global é colocado como epicentro das lutas e das pautas das mulheres, esse tsunami se forma e se espraia a partir das margens, especialmente das regiões terceiro-mundistas marcadas pela colonização e pela colonialidade. Por isso, seu potencial destrutivo das opressões históricas e naturalizadas de gênero poderá ser ainda mais avassalador. O feminismo desobediente das margens que integra essa gigantesca onda é ainda mais radical, na medida em que não busca apenas incluir algumas mulheres no campo dos direitos e dos privilégios, mas atingir as raízes do patriarcado e seus principais aliados: o racismo e o capitalismo. É ainda mais autocrítico, pois volta-se para si e questiona o lugar ocupado pelo feminismo branco hegemônico e civilizatório que não tem mais espaço, já que não inclui e tão pouco reconhece a todas; ele se volta também para as conexões e os diálogos horizontais sul-sul. É nesse movimento que os feminismos brasileiros têm realizado seu giro, voltando-se para Abya Yala, a fim de compreender as experiências compartilhadas da colonialidade do gênero e de se fortalecer e construir, com seus vizinhos, alianças, ações, conhecimentos e resistências.

    Apesar da grande efervescência atual e a despeito do século XX ter sido apontado como a Era do feminismo – quando importantes direitos civis e políticos das mulheres foram conquistados –, as práticas e reflexões feministas, as pautas por direitos e as conexões entre feministas latino-americanas são muito anteriores. Elas podem ser localizadas ainda em meados do século XIX como tão bem nos mostra Bárbara Figueiredo Souto nesta obra, que veio a público originalmente como sua tese de doutorado. Acontece que as ações, as produções intelectuais de mulheres latino-americanas, assim como suas conexões, foram estrategicamente esquecidas do registro histórico, logo, conforme adverte Tania Navarro Swain, o que a história não diz, não existiu!³.

    Foi justamente pelo incômodo diante dos silenciamentos e dos distanciamentos produzidos sobre as mulheres latino-americanas e suas agências/resistências no século XIX que Bárbara lançou-se ao desafio de escrever uma história das mulheres, comparada entre o Brasil e a Argentina, por meio do estudo de projetos feministas emancipatórios veiculados e propagados na imprensa de autoria feminina no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Como argumento central, a autora defende que a opressão patriarcal e conservadora das sociedades comparadas influenciaram de forma semelhante a imprensa feminista em ambos os países, gerando impressos com trajetórias comunicantes.

    Em meados do século XIX – período estudado pela autora –, tanto no Brasil quanto na Argentina, as mulheres recebiam uma educação bastante restrita, viviam sob a autoridade e a tutela do pai ou marido, e as atividades intelectuais e de criação literária lhes eram desaconselhadas, interditadas ou socialmente censuradas. Mesmo assim, um número cada vez maior de mulheres começou a se aventurar na escrita e a difundir suas ideias em periódicos. Algumas delas foram além: ousaram fundar, editar e manter os próprios impressos onde poderiam comunicar mais livremente suas ideias. Assim, apesar das condições de produção desfavoráveis em relação aos homens, muitas dessas mulheres se tornaram mulheres de letras; participaram e influenciaram o pensamento e a opinião da sua época; produziram textos de diferentes gêneros (romance, poesia, matérias jornalísticas etc.); se posicionaram sobre assuntos, como política, arte, cultura, educação, comportamentos etc; denunciaram a opressão patriarcal, apresentando e defendendo ideias e projetos a favor das mulheres. Como salienta Swain (2011), as mulheres recebem de sua época suas condições de produção e as ultrapassam, manifestando, porém, sua pujança na crítica do social, transformando-o por sua escrita e sua existência. Afinal, quem são essas mulheres desobedientes que escolheram a palavra escrita como instrumento de luta?

    Conforme observa Bárbara, elas eram algumas poucas privilegiadas nascidas em famílias economicamente abastadas, por isso, ao contrário da imensa maioria das mulheres – composta de pobres, trabalhadoras, indígenas ou escravizadas –, tiveram acesso à educação formal, livros, periódicos, teatros, museus, viagens etc. Entretanto, para se tornarem intelectuais, precisaram romper determinações de gênero que tentavam instituir a incapacidade intelectual delas, restringindo-as ao âmbito da casa e da família. Eram mulheres como as protagonistas deste livro, a saber: as brasileiras Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco (1817-1875), segunda redatora do Jornal das Senhoras, considerada a primeira jornalista brasileira, e Gervázia Nunezia Pires dos Santos Neves, terceira redatora do Jornal das Senhoras; e as argentinas Rosa Guerra, nascida em Buenos Aires, fundadora do jornal La Camelia, escritora, educadora e periodista e Juana Paula Manso (1819-1875).

    Foi especialmente a partir da trajetória extraordinária e transnacional de Juana Manso que Bárbara Souto conduziu sua história comparada e buscou compreender as conexões e ideias feministas presentes naquele meio de século. Nascida em Buenos Aires, em um lar culto e progressista, Juana mudou-se com a família, durante a ditadura de Rosas, para Montevidéu e de lá foi para o Rio de Janeiro, onde casou-se em 1844 com o músico português Francisco Sá Noronha. Viajou para os Estados Unidos com o marido que, sem sucesso, tentou fazer carreira em território estadunidense. Ali nasceu sua primeira filha, Eulália, e, numa breve estada em Cuba, deu à luz a segunda filha, Hermínia. Juana voltou ao Rio em 1842 e naturalizou-se brasileira, com a finalidade de cursar Medicina. Em 1852, uma década após retornar ao Brasil, ela fundou o Jornal das Senhoras, primeiro jornal brasileiro criado e editado por uma mulher. No ano seguinte, em 1853, após se separar do marido, ela regressou à Argentina e criou, em 1854, o jornal Album de Senõritas.

    Juana foi ainda professora, articulista em outros jornais, escreveu romances, peças de teatro e participou de ciclos intelectuais. Ela se constituiu como mulher e intelectual na fronteira das sociedades latino-americanas em que viveu, circulou pelas Américas e, nesse percurso, construiu seu pensamento e suas ideias emancipatórias, voltadas para as mulheres de sua classe; pelo caminho, espalhou suas ideias e deixou rastros que foram seguidos ou continuados por outras mulheres, em especial os e nos jornais que ela fundou no Brasil e na Argentina. Faço esse breve resumo da trajetória de Juana Manso para ressaltar a originalidade e a importância da leitura de Bárbara Souto ao perceber e apresentar essa mulher como uma intelectual mediadora e engajada nos problemas do seu tempo e como uma feminista transnacional, visto que Juana fez e foi a ponte/conexão entre mulheres e ideias emancipatórias no Brasil e na Argentina.

    Além dos periódicos fundados por Juana Manso, o Jornal das Senhoras (1852-1855) e o Album de Señoritas (1854), o periódico portenho La Camelia (1852) também integra as fontes analisadas pela autora. Dentro desse escopo, quais temas-pautas compõem os projetos emancipatórios desses periódicos que podem ser considerados feministas? A autora encontrou uma gama muito diversificada de pautas, algumas delas voltadas especificamente para as mulheres, como: reconhecimento da igualdade da capacidade intelectual entre mulheres e homens; acesso das mulheres ao conhecimento científico; ‘ilustração’ feminina; participação política e direitos políticos para as mulheres; fim da condição de submissão feminina; fim da violência física contra as mulheres. Outra temática muito recorrente nos escritos feministas do século XIX, também presente nos impressos abordados neste livro, é a educação. As redatoras e articulistas discutiam sobre a necessidade de educação formal para as mulheres, mas também de transformação nos métodos de ensino e de acesso à educação pelos pobres. Por meio dos seus veículos de imprensa, as jornalistas participaram também de debates políticos mais amplos que certamente faziam parte dos círculos intelectuais dos dois países, entre eles: liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, progresso, moralidade, justiça social, modernização legislativa, inserção dos indígenas na nação argentina, fortalecimento do sentimento nacionalista, formação de sujeitos ‘úteis’ para a pátria; se posicionaram em relação à abolição da escravidão e foram além dos problemas de seus países ao tratarem de temas como a reestruturação política e social da América do Sul.

    Podemos observar nos temas-pautas, cuidadosamente garimpados pela autora, os indícios de que as articulistas e redatoras tinham realmente uma proposta clara de transformação do status das mulheres que as emancipasse da condição de submissão e de sujeitas incapazes política, econômica e intelectualmente. Nesse sentido, a autora afirma, sem quaisquer anacronismos, que se trata aí de um projeto feminista, pois, como sublinha Tania Swain, feminista é aquela que denuncia e tenta transformar.

    Em sua conhecida obra, Comunidades imaginadas, Benedict Anderson destaca a importância da cultura impressa no século XIX – especialmente o jornal e o romance – para a constituição de comunidades políticas imaginadas, por criar solidariedades e possibilitar a formação de redes invisíveis de pessoas, ligadas pela letra impressa, que compartilham leituras, expectativas, ideias e sentimentos. Nessa perspectiva, os periódicos analisados neste livro constituem uma estratégia de agência e luta feminista fundamental ao possibilitar a criação de comunidades de mulheres leitoras, companheiras que se reconhecem nos escritos da outra, partilham experiências comuns de opressão e passam a sonhar e projetar, juntas, uma nação que as incluam como sujeitas da igualdade. As redatoras e articulistas são, portanto, as intelectuais que fazem a mediação entre as ideias e a comunidade de leitoras e, no caso particular de Juana Manso, uma mediação transnacional na medida em que ela cria uma rede invisível de brasileiras e argentinas em torno de ideais emancipatórios comuns. Além disso, os temas-pautas rastreados pela autora também mostram que essas intelectuais tinham propostas que iam além dos direitos femininos. Por meio dos seus periódicos, elas também participaram da imaginação nacional, projetando mudanças políticas, econômicas e sociais para o Brasil e para a Argentina.

    Nesse sentido, a análise comparativa entre os impressos, empreendida por Bárbara, confirmou a hipótese de que havia mais similitudes que diferenças nas pautas feministas elaboradas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires nos meados do século XIX. Em suas palavras: os periódicos criados pelas mulheres e com evidente caráter de engajamento nas questões femininas apresentaram trajetórias comunicantes, marcadas pelas opressões patriarcais e pelo conservadorismo das sociedades em questão. Por esse motivo, este livro é também uma importante contribuição para romper com perspectivas historiográficas que colocam o Brasil numa posição de distanciamento em relação aos vizinhos da América Latina, pois, como aponta a autora, tal posição, assim como a inexistência de mulheres intelectuais, também foi construída discursivamente no percurso histórico.

    Por fim, quero destacar a imensa vontade de saber expressa na busca incessante, solitária e paciente pelos rastros das jornalistas/intelectuais nos arquivos de dois países, na amplitude e atualidade da bibliografia e no rigor teórico-metodológico desta pesquisa, que agora nos chega como brinde com a publicação deste livro. A ausência de uma vontade de saber sobre as mulheres, conforme apontou Michelle Perrot, foi responsável pelo apagamento e inexistências delas no passado. O que Bárbara Souto demonstra aqui é justamente o oposto: uma vontade muito grande de saber sobre as mulheres precursoras da imprensa e das ideias feministas na América Latina, de compreendê-las dentro de suas condições de produção e de fazer reconhecer os caminhos e as brechas que elas e tantas outras nos abriram ainda no século XIX, caminhos que tornam possível a irrupção do tsunami feminista do nosso tempo. Por isso, ler esta obra, assim como acompanhar o trabalho dentro e fora da academia desta potente e entusiasta historiadora feminista é, sem dúvida, revigorante, pois nos faz esperançar, acreditar nas resistências e na possibilidade de um mundo mais justo e mais amoroso, no sentido proposto por bell hooks, e mais feminista.

    Este livro, sem dúvida, se soma aos minúsculos abalos sísmicos originados das margens e que têm feito crescer a nossa já gigante onda. Espero que ele inspire outras jovens pesquisadoras e ganhe o mundo como o hino-protesto de nossas compañeras chilenas. Boa leitura!

    Cláudia Maia

    Professora do Departamento de História

    e do Programa de Pós-graduação em

    História da Universidade Estadual

    de Montes Claros (Unimontes)

    O patriarcado é um juiz, que nos julga por termos nascido, e nosso castigo é a violência que você não vê... – Coletivo Lastesis.

    SWAIN, Tania N. História e literatura: mulheres de letras, mulheres de aventura. In: II Seminário Internacional Mulher e Literatura. Brasília, 2011. Disponível em: www.tanianavarroswain.com.br. Acesso em: abr. 2022. 

    Apresentação

    Este trabalho da historiadora Bárbara Figueiredo Souto – resultado da sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, em dezembro de 2019 – aborda, em perspectiva comparada, projetos editoriais dirigidos por mulheres na primeira metade da década de 1850. Os periódicos Jornal das Senhoras (Rio de Janeiro, 1852-1855), La Camelia (Buenos Aires, 1852) e Album de Señoritas (Buenos Aires, 1854) foram veículos de imprensa que tiveram como questão central – ainda que não exclusiva – a defesa da emancipação das mulheres nas sociedades patriarcais em que estava inseridas.

    Bárbara Souto analisa, portanto, três dos primeiros periódicos editados e escritos por mulheres, no Brasil e na Argentina, nos quais as questões relacionadas à defesa dos direitos das mulheres – incluindo os direitos à educação e ao sufrágio – ocupavam amplo espaço. Além disso, foram veículos de propriedade feminina e voltados, principalmente, para o público leitor feminino. Além de artigos sobre a condição da mulher na sociedade, trouxeram textos sobre conjunturas políticas, questões sociais, costumes, artes, literatura, teatro, música, moda, entretenimento, entre outros assuntos.

    Os periódicos selecionados foram os objetos e as fontes principais do presente trabalho, tendo sido analisados em diversas dimensões: a materialidade dos impressos; os contextos de produção; o perfil das proprietárias, editoras e colaboradoras; as dificuldades financeiras para manter os projetos editoriais; a busca por assinantes; o alto índice de analfabetismo nos dois países no período, ainda maior entre as mulheres; os principais temas debatidos nas publicações, assim como suas abordagens; a intervenção dos periódicos no debate público, particularmente em relação às pautas femininas e feministas, além de projetos e políticas educacionais; e as questões relacionadas aos lugares ocupados pelas mulheres nas sociedades sul-americanas da época. Em suma, os desafios para a criação e manutenção de uma imprensa, de caráter feminista, realizada por mulheres no Rio de Janeiro e em Buenos Aires de meados do século XIX.

    O trabalho de Bárbara tem na escritora argentina Juana Paula Manso (1819-1875) – que adotou a grafia Joanna no Brasil – uma personagem central, tendo dedicado o segundo capítulo para analisar a trajetória da redatora. Fundadora do Jornal das Senhoras, no Rio de Janeiro, e do Album de Señoritas, em Buenos Aires, Manso viveu no exílio, em Montevidéu e no Rio de Janeiro, entre 1839 e 1853 – quando retornou ao seu país natal após o fim, no ano anterior, da ditadura liderada por Juan Manuel de Rosas.

    Juana Manso voltou a viver em Buenos Aires com suas duas filhas e separada do ex-marido, o músico português Francisco de Sá Noronha, com quem havia se casado em 1846, no Brasil. Manso exerceu inúmeras atividades ao longo dos seus 55 anos de vida: foi escritora, tradutora, editora, jornalista, professora, fundadora e diretora de estabelecimentos de ensino, autora de manuais didáticos, entre outras múltiplas ocupações. Também escreveu ficção – poemas, romances e obras teatrais –, sendo que dois de seus romances foram analisados por Bárbara Souto: Los misterios del Plata, obra sobre a história argentina, publicada pela primeira vez no Jornal das Senhoras, em formato de folhetim; e La familia del Comendador, publicado em Buenos Aires, cujo enredo tem como tema a escravidão negra, com uma evidente tomada de posição abolicionista.

    Manso tornou-se, conforme demonstra a historiadora brasileira, uma intelectual mediadora, com suas experiências como exilada no Uruguai e no Brasil, além de viajante, incluindo períodos em que morou nos Estados Unidos e em Cuba, países em que nasceram, respectivamente, suas duas filhas, Eulália e Hermínia. A escritora também manifestou, em distintas ocasiões, uma perspectiva americanista, fruto de suas experiências de vida em vários países do continente.

    Bárbara Souto também analisa as reações contrárias ao engajamento de Juana Manso, que participou intensamente da vida pública, principalmente a partir do seu retorno a Buenos Aires, em 1853, até o fim de sua vida, em 1875. A atuação da escritora argentina pelos direitos das mulheres e em defesa da educação pública – com ênfase na inclusão feminina no sistema educativo e em prol das escolas mistas (para ambos os sexos), algo bastante inovador para meados do século XIX – foi alvo de vários ataques. As manifestações contrárias às atividades e opiniões públicas de Manso incluíram acusações de que a intelectual portenha sofria de problemas mentais, tendo sido chamada, por alguns de seus opositores, de a louca. Foram reações terríveis a uma intelectual que abriu caminhos para outras mulheres, em um tempo e em espaços em que as mulheres, com raras exceções, não participavam do debate público sobre questões centrais das sociedades nas quais estavam inseridas. Juana foi uma das pioneiras na imprensa de caráter feminista no século XIX no Uruguai, no Brasil e na Argentina. Foi uma mulher que, com suas vivências no exílio e em seu país natal, pensou o lugar das mulheres além do espaço nacional. Como afirma a autora deste livro, Manso foi uma intelectual feminista transnacional, décadas antes de o feminismo, como movimento social, se constituir efetivamente na América do Sul.

    Outras mulheres, além de Juana Manso, assumiram a direção dos periódicos analisados: Violante Atabalipa e Gervázia Nunezia foram editoras do carioca Jornal das Senhoras; Rosa Guerra editou o buenairense La Camelia. Foram mulheres que, como demonstra Souto, assumiram posições pioneiras e destemidas, em sociedades marcadamente patriarcais.

    Em seu trabalho, depois do primeiro capítulo dedicado à imprensa dirigida por mulheres no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, e à questão da emancipação feminina no século XIX, Bárbara Souto aborda, como já salientado, a atuação de Juana Manso como professora, escritora, jornalista e intelectual feminista transnacional, atuante, em diferentes fases de sua vida, no Uruguai, no Brasil e na Argentina. O terceiro e último capítulo é dedicado à comparação entre os três periódicos, inserindo-os nos contextos brasileiro e argentino da década de 1850: são desenvolvidas análises acerca das proprietárias, redatoras e colaboradoras; do público-alvo, as leitoras; dos diversos temas tratados e suas abordagens; e das causas defendidas, principalmente em relação aos direitos das mulheres, com ênfase na reivindicação de suas capacidades intelectuais, no acesso à educação e no fim da submissão diante do poder masculino.

    O presente trabalho é, sem dúvida, uma relevante contribuição para a história da imprensa e para a história das mulheres na América Latina do século XIX. A autora brinda seus leitores com a descoberta, a partir de sua pesquisa e escrita, desta importante trajetória de pioneiras nas lutas feministas em nosso continente.

    Kátia Gerab Baggio

    Professora do Departamento de História

    da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

    Introdução

    Deslocando o olhar...

    Em vez de manter os olhos fixos na Europa, é mais eficaz, para o historiador, olhar o Brasil ao lado dos países de colonização espanhola⁴.

    Abro esta obra com a instigante frase de Maria Ligia Prado, pela qual chamou a atenção dos(as) historiadores(as) para um fato comum em nosso métier: a insistente prática de utilizar a Europa como marco zero das reflexões e comparações com o Brasil. Por que essa prática é ainda tão comum, em pleno século XXI? Será que a Europa é o melhor parâmetro de comparação? Por que esse meridiano tem sido deslocado tão vagarosamente?

    Em uma reflexão a esse respeito, Kátia Gerab Baggio afirmou que o distanciamento entre o Brasil e os países hispano-americanos foi, em certa medida, interiorizado pela sociedade brasileira. Nas palavras da autora:

    A identificação dos brasileiros como latino-americanos é fluida, variável, mais ou menos presente dependendo das circunstâncias e do momento histórico. Mas, não há dúvida de que as diferenças são mais destacadas do que as similitudes. A América Hispânica – vista a partir de olhares brasileiros – é uma outra América, ainda que façamos parte deste todo complexo e contraditório denominado América Latina. Historicamente, nosso país se aproximou muito mais da Europa e, posteriormente, dos Estados Unidos do que dos seus vizinhos. Além disso, as relações do Brasil com os países hispano-americanos foram caracterizadas, em vários momentos, por desconfianças mútuas (BAGGIO, 1999, p. 9).

    No trabalho citado, Baggio analisou interpretações sobre a América Latina feitas por intelectuais brasileiros nas primeiras décadas republicanas. Após investigar variadas obras, a historiadora chegou à conclusão de que os intelectuais divergiam em diversos temas polêmicos, apresentando peculiaridades interpretativas. Entretanto, prevaleceram as interpretações com viés negativo sobre a América Latina. Baggio defendeu que esses homens, de certo modo, reforçaram a distância e as relações ambíguas entre nosso país e os demais países latino-americanos. Portanto, a América Hispânica permaneceu como uma ‘outra’ América. E o Brasil, ainda hoje, oscila entre o sentimento de ser, ou não, parte integrante da América Latina (BAGGIO, 1999, p. 207-209).

    Instigada pela complexidade dessa relação histórica entre Brasil e países hispânico-americanos, mais precisamente, entre Brasil e Argentina, é que realizei um trabalho comparativo, buscando compreender os projetos feministas de emancipação elaborados pelas mulheres na imprensa. Minha análise centrou em impressos de propriedade feminina e caráter feminista, quais sejam: o Jornal das Senhoras⁵ (1852-1855), veiculado no Rio de Janeiro; La Camelia⁶ (1852) e Album de Señoritas (1854), publicados em Buenos Aires. Ao longo de sua trajetória, o jornal carioca teve como redatoras Joanna Paula Manso⁷, Violante Atabalipa e Gervázia Nunezia; em sua breve veiculação, La Camelia teve como redatora Rosa Guerra; e o periódico portenho mais tardio teve Juana Paula Manso em sua redação. Portanto, a seleção destas fontes históricas delimitou os recortes da pesquisa, sendo os espaços de análise as sociedades carioca e portenha entre os anos de 1852 e 1855.

    Nos anos 1850, o Brasil vivia o apogeu do regime Imperial, com poderes centralizados e reformas em andamento. Nas palavras de Nelson Werneck Sodré (1999, p. 186), o Império está com a sua estrutura articulada e firme: consolidou-se para uma larga etapa e tudo ganha aspectos duradouros, parece definitivo. Após um longo período de disputas políticas, o gabinete conservador assumiu as diretrizes do país, em 1848, e permaneceu no comando até 1853 – sendo o gabinete mais perene do Segundo Reinado. Após um histórico de revoltas que provinham, principalmente, do período regencial, o Império conseguiu consolidar um momento de estabilidade governativa e implementar mudanças na área social, política e econômica. Uma medida significativa foi a aprovação da lei que proibiu o tráfico de pessoas escravizadas para o Brasil, publicada em 4 de setembro de 1850. No mesmo ano, foi instituída a Lei de Terras, que regulamentava a questão fundiária no Brasil. Houve, também, uma reforma na Guarda Nacional, tornando-a mais atrelada ao governo. Na política externa, o gabinete conservador se posicionou e rompeu laços com Juan Manuel de Rosas – governador do Estado Confederado de Buenos Aires – e se aliou aos seus rivais Justo José de Urquiza e Benjamín Virasoro. Portanto, foi um contexto de mudanças e de grande centralização política no país (CARVALHO, 2012, p. 98-102). Os anos 1850 foram marcados também pela dinamização urbana, com o avanço do comércio, da organização bancária e da indústria. A imprensa e a cultura, de forma mais ampla, acompanharam as transformações da época (SODRÉ, 1999, p. 186).

    Conforme Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca (2008, p. 8), a história do Brasil e a história da imprensa caminham juntas, se auto-explicam, alimentam-se reciprocamente, integrando-se num imenso painel. Logo, nesta metade de século XIX, a imprensa brasileira já havia experienciado importantes iniciativas e avançado nos debates públicos, ou seja, toda a trama política, econômica e cultural dos oitocentos não passou imune aos olhos dos(as) redatores(as) e dos(as) colaboradores(as) dos periódicos. Neste contexto, o agente econômico mobilizador de significativas conquistas técnicas foi o café, que, enquanto produto exportador, agregou recursos e inovação ao país. Nas palavras de Ana Luiza Martins, à sombra do café e com a palavra liberada, tinha início o nosso Segundo ‘Império’, que foi o império do café, mas não só. Iniciava-se também o império da palavra impressa. As publicações periódicas concentraram-se no

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