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Tempo De Guerra. Tempo De Jornal
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E-book214 páginas2 horas

Tempo De Guerra. Tempo De Jornal

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Sobre este e-book

“Quando começa a guerra, a primeira vítima é a verdade”, diz a frase clássica do senador norte-americano Hiram Johnson, durante a Primeira Guerra Mundial. Esta dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica procura esquadrinhar como se dá essa morte. E mostra que a desinformação não é consequência de dolo ou incúria, mas fruto do próprio modo de funcionamento do jornalismo, brota do sistema de produção da notícia. Para tanto, o texto define diversas formas de desinformação jornalística e como elas se realizam. Entre outros procedimentos desinformantes, Leão Serva aponta como “pecado original do jornalismo” o desprezo pela história. E define conceitos como omissão, sonegação, submissão, saturação, neutralização e redução da informação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2020
Tempo De Guerra. Tempo De Jornal

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    Tempo De Guerra. Tempo De Jornal - Leão Serva

    Capa Tempo de Guerra, Tempo de JornalRosto Tempo de Guerra, Tempo de Jornal

    TEMPO DE GUERRA,

    TEMPO DE JORNAL

    ESTUDO SOBRE PROCEDIMENTOS JORNALÍSTICOS A PARTIR DE COBERTURAS DE CONFLITOS NA IUGOSLÁVIA

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob orientação do Prof. Doutor Norval Baitello Jr.

    RESUMO

    A partir da constatação de que mesmo temas amplamente cobertos pelo jornalismo não são compreendidos por seus consumidores, caso das guerras civis na Iugoslávia, o trabalho Tempo de Guerra, Tempo de Jornal levanta a hipótese de que mecanismos essenciais ao procedimento jornalístico determinam a desinformação do leitor _contrariamente ao seu objetivo expresso de informar.

    O trabalho procura identificar o pecado original do procedimento jornalístico, aquele que faz com que o produto jornalístico provoque a desinformação. O texto procura dissecar os procedimentos de construção da edição de jornal, da notícia, para mostrar os procedimentos desinformantes que compõem esse processo de produção e servem para estabelecer a surpresa necessária ao desejo de consumo _ surpresa que não ocorreria se o leitor tivesse compreensão completa da notícia. O texto conclui que a desinformação é necessária ao processo completo do jornalismo _ é ela que garante a demanda do leitor por mais informações.

    Em seguida, o texto apresenta um levantamento de notícias publicadas na imprensa sobre fatos semelhantes em conflitos na Iugoslávia, em diferentes épocas _ compilados principalmente em pesquisa feita nos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo com notícias sobre as guerras civis do século 20. A justaposição procura revelar coincidências entre fatos de épocas distantes, apontando uma unicidade entre os fatos, para além da aparente distinção criada pelo tempo e pela forma específica do procedimento jornalístico.

    O trabalho propõe que essa semelhança indica uma ligação essencial entre eles _admitindo que todas as guerras diferentes e sucessivas em que eles ocorreram são essencialmente um único conflito prolongado no tempo. Nesse sentido, a necessidade de afirmar cada uma como uma nova guerra, um conflito surpreendente, é, em verdade, necessário à sua forma de representação dos fatos.

    Se o pecado original é apontado a partir da coincidência entre notícias (unidades), o texto vai buscar coincidências entre os grandes fatos. Uma análise da história dos Bálcãs sugere que a sensação de tempo é diferente para os povos que habitam a região _ e isso se deve ao fato de que o jornalismo, novamente, para o funcionamento de seu processo econômico completo, necessita da afirmação de uma forma de sentir o tempo _não necessariamente a única possível, como se procura mostrar com um apontamento de várias visões de tempo que convivem na história do pensamento humano.

    À Lilian Pacce, mãe de todas as batalhas.

    Ao meu pai, viajante em sonhos. A meu avô Gaeta.

    APRESENTAÇÃO DO TRABALHO

    "O mesmo sentido da incessante textura entrelaçada dos fatos e fatos humanos ressalta da observação daquele aluno:

    – Pai, não gosto da guerra.

    – Por que, meu filho?

    – Porque a guerra faz a História e eu não gosto de História."

    Marshall McLuhan

    Este é um trabalho sobre Jornalismo, que problematiza a capacidade dos meios de comunicação de se fazerem compreender pelos seus consumidores – de fazerem os consumidores entenderem as notícias tal como elas são compreendidas pelos que produzem a emissão; de fazerem os consumidores entenderem os acontecimentos que narram tal como eles são compreendidos por seus agentes, pelas testemunhas diretas e pelos estudiosos não jornalistas.

    Para o desenvolvimento do trabalho, foi escolhido um tema exemplar – cuja cobertura deve servir para revelar os procedimentos de construção da notícia que impedem o jornalismo de fazer seus leitores entenderem o noticiário, o conjunto dos fatos noticiados.

    O tema eleito é a guerra. Afinal, ela é um tema constante do noticiário dos meios de comunicação, desde os mais arcaicos – quando um general ainda precisava enviar um soldado percorrer em sua maior velocidade a distância que separava o público do fato para narrar a vitória em uma batalha (quando, portanto, o meio era o mensageiro).

    Do universo de todas as guerras, foi escolhida especificamente aquela que fragmentou a Iugoslávia em vários pequenos Estados ao longo dos anos 90. Nesse período, o conflito teve grande destaque no noticiário internacional de praticamente todos os meios de comunicação – e ainda aparece como uma questão não inteiramente resolvida, passível de explodir a qualquer momento.

    Como as ocorrências na Europa do Leste desde a queda do Muro de Berlim despertaram no resto do mundo uma série de estudos sobre o ressurgimento no fim do século 20 de conflitos que há muito pareciam superados ou contidos, o trabalho se debruça sobre a cobertura jornalística desses conflitos anteriores para pôr luz sobre suas semelhanças com os acontecimentos atuais.

    Essas mesmas semelhanças se revelam tão grandes que o trabalho discute se tantas notícias (novidades segundo o entendimento consagrado no jornalismo) ocorridas ao longo das décadas cobertas pela pesquisa (ou séculos, se incluirmos as notícias incluídas nas referências bibliográficas) se justificam, pois afinal o que se vê é um longo conflito que parece ocorrer em épocas concentradas no tempo, separadas por intervalos mais ou menos prolongados.

    Por fazer esse desdobramento, esta dissertação é também um trabalho sobre a Iugoslávia, que na pesquisa se revela uma região parada no tempo, insistindo em lutar uma mesma guerra desde 1389, uma guerra que não termina e que, por não se solucionar, aprisiona o tempo de todo esse pedaço da Europa naquele então.

    Essa estranha relação com o tempo impôs que, nos últimos anos, diversos estudos sobre a questão iugoslava se dedicassem ao estudo da sensação de tempo entre os povos locais, a questão do tempo na mídia e à noção da história entre os agentes dos acontecimentos na Europa do Leste.

    Então, este é em alguma medida um trabalho sobre o Tempo, usando como referência a percepção diferenciada da história para quem está envolvido diretamente com a questão balcânica em relação a quem a acompanha como um tema no noticiário da mídia de países distantes dos acontecimentos.

    Mas se a Iugoslávia vive um mesmo conflito desde 1389, se o tempo parou para o homem de lá, se as notícias, embora semelhantes para o leitor do conjunto de todas elas, apresentam sempre um grande número de fatos surpreendentes, impõe-se que o trabalho discuta o que faz o noticiário internacional dar por surpreendente ao leitor de cada dia, hora ou minuto, aquilo que o observador da história vê como um fato único, sem surpresas e, portanto, sem notícia.

    Por se debruçar sobre o que faz a imprensa vender como notícia fatos velhos de 600 anos, este é, como se diz acima, um trabalho sobre Jornalismo, que aponta a essencial impossibilidade do jornalismo praticado nos meios de comunicação contemporâneos de se fazer compreender pelos seus consumidores – de fazerem os consumidores entenderem as notícias tal como elas são compreendidas à luz da História, por exemplo.

    INTRODUÇÃO

    Eu percebi que (Milovan) Djilas estava sempre certo. Ele era capaz de prever o futuro. Sua técnica era simples para um leste-europeu mas difícil para um americano: ele ignorava os jornais diários e pensava apenas historicamente. O presente para ele era apenas um estágio do passado movendo-se rapidamente para o futuro

    ROBERT D. KAPLAN¹

    É comum ver em manifestações de consumidores de imprensa – especialistas ou não – a opinião de que a imprensa falseia o retrato que faz da realidade. Há muitas vezes uma tentativa de atribuir esse falseamento ao mau uso da técnica jornalística – como se essencialmente a imprensa pudesse refletir com fidelidade a realidade mas não o fez em certo momento ou não o faz constantemente pelo despreparo dos profissionais de imprensa.

    No terreno da política internacional essa impressão é mais comum exatamente pela distância entre narrador e consumidor da informação e o fato em si – um paradoxo em relação às constantes afirmações de que a globalização e as técnicas de teletransmissão da informação rompem essa distância. O assunto é tema constante de ensaios sobre imprensa².

    Há várias hipóteses e explicações, em diversas disciplinas do conhecimento, que procuram responder aos problemas que mais e mais preocupam diversas instâncias sociais: qual é a causa dos distúrbios de informação no jornalismo? Qual é ou quais são os mecanismos que provocam os erros de informação ou a informação de má qualidade, que em última instância geram a incompreensão dos fatos descritos pelos meios.

    Ao contrário da explicação comum, que atribui distorções ou falsidades a erros humanos (por dolo ou despreparo), a hipótese que aqui se apresenta é a de que o jornalismo tem em seus mecanismos essenciais um conjunto de procedimentos que atuam no estabelecimento de desinformação e incompreensão dos fatos pelo consumidor. Esses procedimentos desinformantes são fundamentais ao funcionamento do sistema jornalístico que, por vender novidades, depende da incompreensão para estabelecer a necessidade de consumo de seu produto.

    Nesse sentido, o que se procurará mostrar é que a desinformação é essencial ao sistema jornalístico. Em sua ausência, ele precisa criá-la e não poderia, ao contrário, eliminá-la – mesmo que o domínio perfeito da técnica fosse disseminado de forma generalizada nas Redações. O que em si não quer dizer que esse domínio esteja de fato disseminado na imprensa, entre outras razões porque a contratação de profissionais com pleno domínio encarece as folhas salariais, o que não é necessariamente do interesse dos acionistas de meios de comunicação, especialmente em períodos em que a concorrência se trava em terrenos não estritamente jornalísticos, mas promocionais, tecnológicos e industriais. O que se vai procurar demonstrar, portanto, é que a técnica jornalística é necessariamente desinformante e por vezes falseadora para além da vontade ou da capacidade técnica de seus profissionais.

    Para demonstrar o funcionamento dos procedimentos desinformantes do jornalismo, foi escolhida como caso a cobertura das guerras na Iugoslávia, termo que não se restringe à região abarcada pelo Estado atual que reivindica o nome, mas à região mais ampla ocupada pela Federação anterior – e eventualmente a áreas vizinhas dentro dos Bálcãs.

    A escolha de uma cobertura de guerra se deve ao fato de que os conflitos internacionais são considerados o tema mais intenso, importante e prioritário do jornalismo, tendo por isso uma maior atenção do sistema como um todo. O que levou à escolha da guerra civil na Iugoslávia, especificamente, foi o fato de ela ter sido o mais longo conflito dos anos 90 e o que mais cobertura obteve, o primeiro na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, recurso necessário para o desenvolvimento do trabalho, é possível encontrar nos arquivos de jornais brasileiros e europeus relatos dos conflitos anteriores na mesma área até a Guerra Austro-Turca do final do século 18, travada na mesma área.

    Casos de leitores atentos de imprensa que confundem informações que parecem simples para quem conhece a história verdadeira são quase tão comuns quanto casos de leitores que entendem a história mais ou menos como o autor ou uma testemunha do fato. Confusões tão comuns sugerem que devemos nos perguntar se não se trata de uma característica sistemática dos meios de comunicação, dessas características que a norma procura desqualificar como exceção mas que no entanto são parte da própria regra. Um caso semelhante à própria existência do crime, característica essencial da nossa e de todas as sociedades mas sempre apontada como uma distorção episódica da natureza, uma exceção à profunda honestidade do ser humano.

    Como então o procedimento da imprensa gera esses enganos?

    Vejamos como trabalha a imprensa, como ela constrói suas coberturas, para então procurarmos identificar o que em seus procedimentos determina uma incompreensão dos fatos cobertos.

    1 KAPLAN, 1994: 74.

    2 Os nomes de dois lançamentos recentes falam por si: A Culpa é da Imprensa?, que tem como subtítulo Ensaio sobre a Fabricação da Informação (MAMOU, 1992); e Breaking the News, que tem como subtítulo Como os Meios de Comunicação Ameaçam a Democracia Americana. (fallows, 1996).

    CAPÍTULO 1

    O Pecado Original do Procedimento Jornalístico³

    No dia seguinte os jornais já não davam destaque à morte de Marly. Tudo cansa, meu anjo, como dizia o poeta inglês. Os mortos têm que ser renovados, a imprensa é uma necrófila insaciável.

    Rubem Fonseca, Mandrake

    "– O povo croata – dizia Ante Pavelich. – quer ser governado com bondade e justiça. E estou aqui para lhe assegurar a bondade e a justiça.

    "Enquanto ele falava, eu observava uma cesta de vime colocada em cima da escrivaninha, à esquerda do poglawnik. A tampa estava soerguida, via-se que a cesta continha mariscos, ao menos assim me pareceu, e eu diria que se tratava de ostras, mas sem a concha, como as que se veem às vezes expostas, em grandes bandejas, nas vitrinas de Fortnun and Mason, em Picadilly, em Londres. Caserano olhou para mim, piscando o olho:

    — Você gostaria de uma boa sopa de ostras, hem!

    — São ostras da Dalmácia? – perguntei ao poglawnik.

    "Ante Pavelich levantou a tampa da cesta e, mostrando aqueles mariscos, aquela massa escorregadia e gelatinosa de ostras, disse sorrindo, com o seu sorriso bom e cansado:

    — É um presente dos meus fiéis ustacha: são vinte quilos de olhos humanos."

    O trecho de Kaputt, de Curzio Malaparte (escritor italiano que foi correspondente de guerra para jornais de seu país durante a Segunda Guerra Mundial), descreve uma cena ocorrida no gabinete do líder do efêmero Estado Livre da Croácia, Ante Pavelich, alçado ao posto de dirigente nacional com o apoio das potências estrangeiras que invadiram a Iugoslávia em 1941 e retalharam o país. Logo após a invasão, antes mesmo de as forças do Eixo Berlim-Roma dominarem o país, Pavelich num golpe de oportunismo declarava a formação de um governo iugoslavo no exílio⁵. Nos dias seguintes o movimento se definiria mais claramente como um governo croata, que logo assumiria o poder em Zagreb, espalhando pelo país um culto à personalidade do tirano, no estilo adotado nas matrizes, Roma e Berlim, pelos regimes nacionalistas dominantes na época.

    Malaparte descreve o poglawnik (líder em croata, o mesmo que o alemão führer) como um homem bondoso, tímido, aumentando a surpresa de seu leitor diante da crueldade necessária para colecionar olhos de inimigos.

    Kaputt não diz de quem são aqueles olhos, o que mantém no leitor o choque proporcional à sua dimensão mais ampla – são os olhos da humanidade inteira, poderiam ser os de qualquer leitor. Mas uma curiosidade detalhista poderia se perguntar de quem. E procurar respostas em outras notícias.

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