Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Batalha De Sarajevo
A Batalha De Sarajevo
A Batalha De Sarajevo
E-book320 páginas5 horas

A Batalha De Sarajevo

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nesta edição sobre a guerra civil que fragmentou a ex-Iugoslávia, o autor volta duas vezes ao cenário do conflito, ao palco de sua cobertura original feita para a Folha de S.Paulo, em 1992. Novas narrativas mostram a evolução do país, dez e vinte anos depois do conflito. Nessas novas visitas, Leão Serva reencontra personagens com quem esteve durante a guerra, crianças que cresceram, adultos que envelheceram. E mostra que o mesmo conflito que iniciou e encerrou o século 20 vive, no século 21, uma espécie de hibernação forçada, pronto para acordar a qualquer momento.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2020
A Batalha De Sarajevo

Leia mais títulos de Leão Serva

Autores relacionados

Relacionado a A Batalha De Sarajevo

Ebooks relacionados

História para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A Batalha De Sarajevo

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Batalha De Sarajevo - Leão Serva

    2011

    VICIADO EM SARAJEVO

    Ao chegar a Sarajevo em 2011, quase vinte anos depois do início da guerra civil que assolou o país, de 1992 a 1995, me vêm imediatamente à memória as cenas chocantes de bombardeios, mortes, massacres étnicos e campos de concentração, milhões de pessoas deslocadas ou desabrigadas. Mas, ao chegar ao Hotel Holiday Inn que na guerra hospedava os jornalistas mais famosos do mundo, em vez da estrela da CNN Christiane Amanpour, dou passagem a uma moça pequena e apressada que quer entrar mais rápido do que eu e, quando vejo, é a atriz Penélope Cruz. No bar do lobby, onde antes se embriagavam jornalistas mal vestidos falando de sangue, agora está uma equipe hollywoodiana filmando Venuto al Mondo, com a estrela espanhola.

    No centro da cidade, os prédios destruídos por bombardeios dão lugar a lojas de grifes internacionais e ao ambiente de Primeiro Mundo europeu. Os veículos militares foram substituídos por carros de todas as marcas do planeta. Nos muros, os poucos buracos de bala que sobraram se misturam a grafites contemporâneos. Cafés gostosos, restaurantes dignos do Guia Michelin, pessoas bem vestidas, bancas de revistas e jornais com publicações locais e internacionais. Tudo revela uma cidade que ferve. Sua juventude nem mesmo quer falar de memórias entediantes, pois busca uma integração com a Europa e seu padrão pacífico de Primeiro Mundo.

    Sarajevo deixa para trás a guerra. A Bósnia juntou os cacos em uma união de duas partes cujos políticos convivem às turras (a Federação, de muçulmanos e croatas, e a República, dos sérvios), mas que as pessoas ignoram, nada parecido com as dezenas de fronteiras que se enfrentavam numa distância menor do que a travessia Rio-São Paulo.

    As memórias mais vivas da guerra são de pessoas de meia idade que, junto a todos os comentários negativos sobre uma imensa lista de traumas, mencionam a nostalgia da solidariedade que as imensas dificuldades da guerra criavam entre as pessoas e as famílias e que desapareceu quando a vida retomou a rotina dita normal. Para eles, vale o sentimento expresso no título do livro Minha guerra acabou, e eu sinto falta, do escritor inglês Anthony Loyd, sobre a Bósnia.

    Uma dessas figuras que ainda não abandonou Sarajevo é o jornalista belga Philippe Deprez, parte de uma geração que se destacou cobrindo conflitos pós-Guerra Fria, que inclui um de seus melhores amigos, o premiado americano Sebastian Junger, entre outros.

    * * *

    Ao subir em 1993 no avião da ONU que o levaria para Sarajevo, centro de uma sangrenta guerra civil, o jovem jornalista belga Philippe Deprez parecia nervoso ao lado do experiente Sebastian Junger, americano. Ele hesitava, falando da mulher, grávida do primeiro filho na Bélgica, e das dúvidas sobre enfrentar os riscos da aventura que se iniciaria, como conta o brasileiro Fernando Costa Netto, na época enviado da revista Trip e companheiro de viagem dos dois amigos.

    Mas desde que chegou a Sarajevo, Deprez se transformou, adotou a cidade, deitou raízes, casou novamente, teve outros filhos e desde então mora na cidade. A guerra acabou e ele ficou.

    Costa Netto voltou a Sarajevo um ano depois, em 1994, e se surpreendeu ao chegar no aeroporto quando ouviu uma voz vigorosa, dinâmica, de um Deprez elétrico, dando ordens, reclamando que a cidade estava calma demais: Não acontece nada em Sarajevo, dizia, enquanto Costa Netto ouvia ao fundo os tiros de metralhadora que faziam a trilha sonora infinita de Sarajevo. O impacto foi tão grande que o brasileiro nunca mais esqueceu a figura de um Deprez seguro, à vontade no cenário caótico da guerra civil, como um guerreiro da notícia. Deprez, que jamais pegou em armas, o que o exporia a mais riscos do que os normais da profissão, tinha sido de fato mordido pelo vício dos correspondentes de guerra, a adrenalina. É ela que causa o que descreve o cinegrafista Duck, na sequência inicial do filme A caçada, inspirado na história de Deprez: O mais cruel é que a guerra tem um lado bom. Eu sei, falar isso é um sacrilégio, mas ficar assim tão perto da morte e continuar vivo te deixa viciado.

    A adrenalina funciona para o jornalista de guerra como uma droga, e Philippe Deprez foi viciado nela. Tanto é que foi morar em Sarajevo quando a cidade era uma espécie de cracolândia da adrenalina, no auge da guerra. E ali ficou até o final do conflito, em 1995. Depois, sempre morando em Sarajevo, passou a usar a cidade como base para as constantes viagens para cobrir conflitos pelo mundo: Sérvia, Croácia, Bósnia, Albânia, Kosovo, Sérvia de novo, Macedônia, Iraque, Líbano e Líbia. Agora mesmo estuda qual será a próxima parada: Síria, Líbano ou mesmo Brasil, atraído pelas notícias de seguidos assassinatos na região amazônica que a imprensa brasileira trata como fatos isolados e em notas de pé de página.

    Pergunto se ele se fixou em Sarajevo por saudades da guerra, ele escapa com uma resposta irônica: não é isso, o problema é que Bruxelas é uma cidade tão monótona que é melhor ficar onde as notícias surpreendem.

    Deprez é um tipo que, quando não tem notícias, provoca uma: sua história deu origem aos elementos verdadeiros da trama de A caçada, sobre jornalistas em férias que decidem caçar criminosos de guerra no interior da Bósnia, por entender que eles estavam sendo beneficiados pela benevolência da comunidade internacional. Os repórteres, liderados por Deprez (interpretado no filme por Richard Gere), são confundidos com agentes do serviço secreto americano, a famosa CIA, e acabam caçados ao mesmo tempo pelos criminosos de guerra que perseguiam e pelos espiões americanos, que não querem saber de gente se fazendo passar por agentes seus.

    O episódio cheio de trapalhadas rendeu o filme de Hollywood, estrelado por Gere, Terrence Howard e Jesse Eisenberg (de A Rede Social), no qual Deprez e seus amigos da vida real fazem uma ponta, na cena inicial no bar do Holiday Inn, uma ponta que o alemão Erich Rathfelder, outro dos jornalistas-tornados-figurantes, define como 12 segundos de fama, em contraposição aos 15 minutos prometidos pelo pintor Andy Warhol.

    Em 2000, quando a Bósnia-Herzegovina comemorava cinco anos do fim da guerra, ex-correspondentes vieram de todo o mundo, para cobrir os festejos, reencontrar amigos e dar um tapa na adrenalina. Foi numa roda dessas que Deprez propôs: que tal tentar prender Radovan Karadzic, o líder dos sérvios durante a guerra, responsável pela carnificina bósnia? Era simplesmente o criminoso de guerra mais procurado do mundo, com a cabeça a prêmio por 5 milhões de dólares e a imprensa local dizia que ele perambulava por uma região de montanhas ao sul de Sarajevo. Inebriados pela volta ao cenário da guerra e pelo desejo de aventura, os quatro jornalistas foram atrás de Karadzic. Chegaram muito perto, foram confundidos com agentes da CIA, quase foram presos (pela própria CIA) e terminaram sem o carniceiro sérvio, sem o dinheiro, mas com uma aventura sensacional que acabou sendo recriada no filme (mais ficcional do que real), cujo título original em inglês é The Hunting Party.

    Várias guerras e dez anos depois, em 2010, quando Karadzic já estava preso, Philippe e o amigo Harald Doornbos, companheiro da primeira Caçada, foram atrás do outro criminoso mais importante da guerra da Bósnia, o general Ratko Mladic, que vivia em Belgrado, capital da vizinha Sérvia. Mladic foi o general que ordenou pessoalmente o massacre de cerca de 10 mil homens na pequena cidade de Srebrenica, em 1995. Munidos de equipamento de espionagem, com o corpo forrado de gravadores e micro câmeras, Philippe e Harald frequentaram os bares dos ex-combatentes sérvios, visitaram familiares do general, perguntaram por ele, viram e foram vistos. Mais uma vez, correram riscos, não prenderam o criminoso, mas provaram que seria fácil pegá-lo.

    Apesar de se arriscar frequentemente, só uma vez Philippe teve a sensação de que poderia morrer nas mãos da polícia secreta sérvia. Durante a crise do Kosovo (1999), Deprez ficou tantos meses em Pristina, capital da província separatista, que acabou abrindo com outros correspondentes estrangeiros um bar que podia ser frequentado por todo tipo de gente, inclusive sérvios e kosovares. Um dia, um amigo, dono de cassino, me disse que eu precisava ir embora ou seria morto pela polícia secreta sérvia. Deprez foi para Belgrado, onde acabou preso realmente. Agentes da polícia secreta o interrogaram, disseram que seus textos eram contra a Sérvia. Em seguida, o levaram a dar voltas de carro pela cidade, sem dizer palavra. Achou que iriam cumprir a predição do dono do cassino. Cheguei a perguntar se podia fumar um último cigarro, conta. Mas nessa hora, viram que eu era fluente em sua língua e acho que isso ajudou. Mais tarde, o levaram para uma delegacia e, na manhã seguinte, para a fronteira com a Croácia, para onde foi expulso. Sem trauma maior.

    Philippe é um homem doce e de fala calma, com modos bem educados. Muda, no entanto, ao falar das guerras, quando é capaz de juntar gente para ouvi-lo contar histórias, talento semelhante ao do religioso Vehbija Secerovic.

    * * *

    Ao subir todos os dias, cinco vezes por dia, os 122 degraus do minarete do principal templo muçulmano de Sarajevo, localizado no coração do bairro medieval, para chamar os fiéis à oração, Secerovic mostrava a todos que o ouviam que a cidade não parava sob as bombas dos sérvios, que caíam por todos os lados. Ele é o muezim da mesquita Ghazi Husrev Beg (ou simplesmente Beg), o arauto que desde 1973 chama os fiéis à oração. Com sua declamação cantada, durante todos os dias em que durou a guerra bósnia, sem exceção, ele mostrava aos sérvios que as balas e bombas herdadas do Exército iugoslavo não conseguiam interromper a rotina da capital bósnia. Ele não via na rotina um ato político, apenas continuava chamando para a paz, como era feito antes, durante e depois da guerra. Mas os sérvios viam a força política da manutenção do rito religioso. Por isso, na hora em que ele começava a declamar sua algaravia, aumentavam os disparos contra a mesquita.

    Secerovic diz que só tinha medo de vez em quando. Um dia, quando iniciava a declamação do texto do Corão que diz em árabe algo como Alá é grande, é o único Deus, Maomé é seu único profeta, um tiro atingiu a parede de pedra branca do minarete 20 centímetros acima de sua cabeça. Ele se abaixou, tremendo. Tinha que seguir o texto ou pensariam que fora atingido. Conseguiu acabar e desceu, ainda tremendo. Outra vez, um petardo disparado por um tanque de guerra atravessou a parede da mesquita dois metros para dentro do prédio. Mas não abalou a estrutura do prédio. Como esse, outros 120 projéteis de diferentes calibres atingiram o templo durante a guerra, sem jamais interromper sua rotina de orações.

    Depois de quase 40 anos chamando o povo à oração, Vehbija se sente cansado para percorrer aqueles 122 degraus pra cima e pra baixo cinco vezes todos os dias (o que totaliza 1.220 degraus!). Hoje já tem preparados três jovens muezins que o auxiliam quando ele tem que se ausentar. Por isso, dentro de dois anos quer se aposentar. Como já fez o coronel Zakir Puska.

    * * *

    Ao subir para o alto da montanha de Bistrik, em Sarajevo, na área controlada pelos muçulmanos, e levar dois jovens repórteres brasileiros até o fronte de onde combatentes das forças armadas bósnias atiravam em áreas ocupadas pela população civil sérvia, o coronel Puska, naquele dia de 1992, revelou aos jornalistas Fábio Altman, enviado da Veja, e eu, que cobria o conflito para a Folha, que a batalha de Sarajevo não era tão somente a resistência dos muçulmanos cercados de atiradores sérvios por todos os lados, mas era também, em outras áreas, o inverso.

    O bósnio Puska era então um comerciante tornado oficial do exército e em poucas semanas coronel encarregado de comandar uma área do fronte. Dez anos depois, em 2002, quando me encontrei com ele a primeira vez depois da guerra, era só reclamação. Sentia-se abandonado pelo governo, sua loja não ia bem, não tinha a aposentadoria que deveria receber pelas regras anteriores à independência. Não conseguia pagar os remédios ou sustentar os filhos.

    Depois, quando falei com ele em 2011, já estava melhor. Quando cheguei a Sarajevo, no início de novembro, ele estava em Meca, na Arábia Saudita, fazendo a peregrinação anual dos muçulmanos, obrigatória pelo menos uma vez na vida e que exige certa capacidade de investimento. Quando finalmente o encontrei, estava mais bem vestido e saudável. Hoje recebe a esperada aposentadoria e sua loja tem mais compradores do que antes. A Bósnia não é um tigre econômico, mas já conseguiu apagar o incêndio e pôr a casa em ordem. Como fizeram também as famílias de Damir Alatovic e Marina Vizin.

    * * *

    Ao subir correndo as escadas para sua casa, no terceiro e último andar de um pequeno prédio em Sarajevo, o menino Damir viu as primeiras labaredas e começou a descer, também correndo. Da rua, viu o apartamento pegar fogo, em julho de 1992, atingido por um projétil incendiário que talvez tivesse tentado alcançar o hospital de Kocevo, do outro lado da rua. Foi abrigado pelos filhos dos vizinhos do prédio em frente quando o fotografei, vestindo uma mini farda do exército bósnio. Ele exibe quase o mesmo riso contido e tímido, 19 anos depois, ao ver a própria imagem em meu exemplar de A Batalha de Sarajevo (1994). Só quando veio a paz, em 1995, a família Alatovic pôde reformar a casa e voltar. Damir parou de estudar quando acabou o colegial, fez bicos de segurança, mas agora, aos 25 anos, está desempregado. Reclama da economia de seu país, diz que ela não oferece muitas oportunidades. Para ele, a guerra é um tema entediante. Acha que para a comunidade internacional, ainda vivemos na Iugoslávia, por isso não há com a Europa uma integração profunda igual à da vizinha Croácia.

    Atrás dele, na foto de 1992, estava a vizinha Marina, naquela época com 11 anos. Ela seguiu trajetória diferente. Fez faculdade de biologia, trabalhou para a vigilância sanitária em Sarajevo até meados de 2010, quando foi demitida (Por razão política, após a eleição, afirma), mas logo arranjou emprego como professora de Biologia no ensino médio em Banja Luka, ao norte de Sarajevo, na região sérvia. Está feliz. Visita a família todos os fins de semana e se preocupa com a saúde do pai, cardíaco. Marina também tem a guerra como tema do passado. Só lembro das coisas boas, de como brincávamos todos juntos. Ela cita o caso do incêndio na casa de Damir: não se recorda do fogo, mas lembra perfeitamente do tempo em que a família Alatovic ficou hospedada em seu prédio. Lembramos apenas de como éramos mais amigos, solidários, uns ajudavam os outros, como jogávamos cartas em casa com os vizinhos, quando não podíamos sair, diz Marina. Aos 30 anos, ela gosta de comentar as boas novas sobre a Bósnia, como a notícia de que produtoras internacionais têm usado Sarajevo como cenário de filmes, o que aumenta as oportunidades de emprego e leva à cidade astros de cinema.

    * * *

    Ao subir as escadas do hotel Holiday Inn, Penélope Cruz, parece mais modesta do que a estrela dos tapetes vermelhos dos grandes festivais internacionais. Mas inversamente, ela atribui à pequena cidade de Sarajevo, com seus 300 mil habitantes, um status especial. A Bósnia tem uma ligação forte com a indústria do cinema, hospeda um prestigioso festival, que anualmente atrai estrelas como Angelina Jolie, Willem Dafoe, Brad Pitt e outros. Em 2001, o filme bósnio No Man’s Land, de Boris Tanovic, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro; em 2007, Grbavica (Em segredo), de Jasmila Zbanic, ganhou o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Há muitos exemplos de jovens cineastas locais. A cidade também tem sido procurada por cineastas de fora como cenário de filmes, antes sobre a guerra (Welcome to Sarajevo, A caçada), mais recentemente já superando o conflito.

    Na segunda semana de novembro de 2011, quando entrou apressada para trocar a maquiagem no Holiday Inn, quase parecendo com quem fugia de um snajper (forma servo-croata do inglês sniper, franco-atirador) sérvio, ela realizava as últimas filmagens na cidade, cenas de um baile de gala, filmadas no Museu Nacional (bem em frente ao hotel), um antigo palácio aristocrático.

    Sarajevo é uma cidade pequena, quase sem celebridades e por isso quase sem paparazzi. Em setembro, quando chegou à cidade para a primeira fase de filmagens, Penélope Cruz estava com o marido, o também ator Javier Bardem, e o filho, Leo. Como estavam em férias, Penélope divulgou um pedido de que o filho não fosse fotografado. Um paparazzo solitário não obedeceu, fez fotos do menino tomando sorvete com o pai e vendeu a imagem para a imprensa do mundo todo. Penélope se irritou e agora veta completamente fotos. A imprensa local a obedece.

    Sentada no lobby do hotel à espera de alguém ou simplesmente tomando um expresso, ela não lembra em nada o assédio às estrelas nas grandes capitais. No filme Venuto al Mondo, do diretor italiano Sergio Castellitto, a guerra é só uma referência na história de uma mãe e seu filho que vão a Sarajevo em busca de memórias do pai. Nada a ver com a visão da guerra, dos campos de concentração ou dos massacres como aquele que o elogiado cozinheiro Abdullah Purkovic testemunhou em Srebrenica.

    * * *

    Ao subir os três andares de sua casa, no dia da volta, em 2000, Abdullah viu que nos cinco anos em que esteve abandonada ela tinha sido completamente desgastada pelas intempéries, mas não fora destruída com explosivos pelos sérvios. Abdullah quer dizer escravo de Alá, em árabe. Qual um escravo ele trabalhou sem descanso até que pôde abrir o restaurante e alguns quartos de hóspedes. Como um instrumento de Alá, Abdullah Purkovic foi um pioneiro muçulmano a voltar para a cidade de Srebrenica, apenas cinco anos depois do fim da guerra. A cidadezinha de Srebrenica tem quase a metade de seus imóveis vazios até hoje, quase duas décadas depois do massacre de 10 mil homens muçulmanos fuzilados e enterrados em valas comuns por soldados sérvios liderados por Ratko Mladic. O general virou o maior criminoso da guerra da Bósnia, mas sua brutalidade tornou inevitável a intervenção estrangeira que acabou por encerrar o conflito.

    Durante a guerra, Abdullah trabalhava para a organização internacional Médicos Sem Fronteiras, que lhe dava um salvo-conduto da ONU. Nas horas de folga, trabalhava como cozinheiro no Hotel Domana, onde os jornalistas se hospedavam. Por isso sua elogiada comida era conhecida dos estrangeiros. Como funcionário da organização internacional, viu quando os sérvios que haviam acabado de invadir a cidade (lotada com 30 mil refugiados muçulmanos fugitivos de outras regiões) separaram os homens em idade militar das mulheres, crianças e idosos. Esses homens adultos foram postos em ônibus e mandados embora da cidade. Naquele primeiro dia já soube que eles estavam sendo mortos na vizinha cidade de Potochari. Os soldados holandeses a serviço da ONU choravam, dizendo-se impotentes. Abdullah, como em geral os bósnios, segue achando que eles foram fracos, que deveriam ter lutado em vez de se submeterem sem reação à tomada da cidade pelo exército sérvio. Até hoje o sentimento de culpa dos holandeses é tão grande que durante todo o ano a cidade recebe voluntários daquele país. Eles se hospedam no hotel de Abdullah, uma pensão simples, mas que tem a melhor comida da região, segundo Philippe Deprez, que até hoje sente uma ponta de saudade quando pensa na comida que ele lhe preparava durante a guerra, na pequena e triste vila de Srebrenica.

    * * *

    Ao erguer o braço e acionar o apito para encerrar a partida entre Bósnia e Portugal, pouco antes das 22 horas daquela sexta-feira 11/11, o juiz havia consagrado um espetáculo muito maior do que o futebol que tinha ocorrido em Zenica, cerca de 60Km ao norte da capital Sarajevo. Ali, onde há pouco menos de 20 anos três nacionalidades guerreavam para se separar umas das outras, agora jovens dos três lados cantavam juntos a Bósnia vai ser campeã e torciam para que o time de Edin Dzeko e Senad Lulic pudessem derrotar o de Cristiano Ronaldo.

    Não foi. Os bósnios perderam o jogo e também a vaga na Eurocopa de 2012 (Portugal, aliás, já havia vencido a Bósnia durante as eliminatórias da Copa de 2010). Mas eram os sinais de que uma nação verdadeira pode estar nascendo nos Bálcãs. Lado a lado, sérvios comemoravam, dançavam e cantavam vestindo a mesma bandeira azul e amarela que croatas e bósnios-muçulmanos. Bem antes do jogo, na estrada de Sarajevo para Zenica, já se percebia o impacto que a partida provocou na sociedade local, independentemente da origem de cada um. O futebol como metáfora da guerra, tal como foi assinado pelo escritor inglês Anthony Burgess, ao comentar na revista Time, durante a Copa de 1974, que o futebol é um substituto adequado da guerra em meio a um festival brechtiano de chauvinismo que é a Copa do Mundo, cedia espaço, em Zenica, para o futebol como metáfora da paz entre muçulmanos, sérvios e croatas, unidos em torno do mesmo fervor (pelo futebol) bósnio.

    Centenas de pessoas agitavam bandeiras, vilas inteiras decoradas com a bandeira do país, buzinaços constantes. E Zenica estava pintada de azul e amarelo: lado a lado, milhares de torcedores confraternizavam, cantavam e dançavam, sem problemas.

    Poucos anos depois veio a nova chance do futebol bósnio e, com 8 vitórias em 10 partidas e um saldo positivo de 24 gols, a Bósnia-Herzegovina terminou a fase das eliminatórias em primeiro no seu grupo e garantiu uma vaga na Copa do Mundo de 2014.

    O time foi o primeiro a divulgar a lista de convocados para o mundial. Dos 23 jogadores, 2 eram de origem croata e apenas um era sérvio. Os outros 20 jogadores, incluindo todos os autores dos gols bósnios durante a Copa, eram muçulmanos. Muitos desses atletas, que eram crianças durante a época da guerra, passaram longos anos fora da Bósnia por conta do conflito, se exilando em outros países europeus, como a Alemanha.

    O desempenho durante a competição não foi tão satisfatório quanto o das eliminatórias: o time liderado pelo técnico (também muçulmano) Safet Susic perdeu os dois primeiros jogos. Na estreia contra a Argentina o primeiro gol foi de um jogador bósnio, Sead Kolasinac, mas a favor dos hermanos. O lance garantiu o título de gol contra mais rápido em Copas, aos 3 minutos do primeiro tempo. Vedad Ibisevic fez o primeiro gol da Bósnia na Copa, mas o craque Lionel Messi garantiu o 2 X 1 para a Argentina. Muitos brasileiros acabaram adotando o time europeu por conta da simpatia dos jogadores e torceram bastante pelos bósnios, além de vaiarem os argentinos durante o jogo todo.

    O segundo jogo, contra a Nigéria, acabou com as chances dos bósnios de ir para as oitavas de final, com um gol da Bósnia-Herzegovina incorretamente anulado e um placar final de 1 X 0 para o time africano. O último jogo, contra o Irã, trouxe ao menos a primeira vitória em mundiais do país, por 3 x 1, com gols de Edin Dzeko, Miralem Pjanic e Avdija Vršajević, o que garantiu a comemoração dos bósnios junto aos torcedores brasileiros.

    A Bósnia-Herzegovina nasceu dos escombros da guerra (1992-95) quando ficou claro que nenhum dos lados venceria o conflito, mas também que não era mais possível voltar atrás e fingir que nada tinha acontecido.

    Uma paz imposta pelos Estados Unidos na cidade de Daytona forçou a criação de um Estado artificial, dividido por dentro entre duas outras repúblicas, uma sérvia e outra formada por croatas e bósnios, em sua maioria muçulmanos. Desde então, os dois pequenos Estados vivem às turras mas precisam estar em paz para se credenciar a receber os fundos de recuperação enviados pela comunidade europeia: em todo o país, só é possível reivindicar os financiamentos europeus quando a região prova que está fazendo a lição de casa do entendimento e da pacificação. Além disso, todo mundo quer aderir à União Europeia e para isso é preciso se comportar bem. Mas a coisa mais comum é ouvir entrevistados, intelectuais ou gente comum, dizer que se as tropas de paz da ONU saírem e os fundos da União Europeia sumirem, a guerra começa de novo.

    Essa é uma consequência das atitudes dos políticos, divididos em partidos étnicos e não programáticos. Não parece ser a visão dos jovens. Ao contrário, eu ouço, de todos os jovens a quem pergunto sobre a guerra dos anos 90, respostas como falar da guerra é coisa dos velhos ou a guerra é entediante. É essa nova geração que aplaude enlouquecida uma seleção que tem jogadores de todas as etnias, que levanta a esperança dos bósnios de que desta vez a seleção vença o futebol e os juízes (sim, porque aqui eles têm certeza de que os juízes roubam quando enfrentam as principais seleções da Europa).

    O folclore local não esquece o jogo eliminatório contra a Espanha tempos atrás, em que o juiz deu vários minutos de desconto até que a Espanha marcasse. O que gerou uma expressão irônica aqui: quando você pergunta até quando vai o jogo, a resposta comum é Vai até a Espanha marcar. Quando o juiz apitou o fim do jogo, com apenas três minutos

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1