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Etnografias do refúgio no Brasil
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Etnografias do refúgio no Brasil
E-book359 páginas7 horas

Etnografias do refúgio no Brasil

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Sobre este e-book

Esta coletânea trata das experiências de vida de diferentes grupos de refugiados no Brasil, a partir de etnografias. O resultado é a antropologia do refúgio no Brasil, com destaque para as diferentes experiências dos diversos grupos, oferecendo um cenário complexo e crítico da situação do refúgio no Brasil. Experiências de venezuelanos, senegaleses, sírios, colombianos e outras nacionalidades africanas são colocadas lado a lado numa análise sofisticada e cuidadosa.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento14 de out. de 2022
ISBN9788576005285
Etnografias do refúgio no Brasil

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    Etnografias do refúgio no Brasil - Igor José de Renó Machado

    1

    Introdução

    Refúgios e hierarquias de diferença

    Igor José de Renó Machado

    Este livro é o resultado final de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), cujo tema era o refúgio em São Paulo.[1] A partir deste projeto mais geral, outras pesquisas foram financiadas ao longo dos últimos anos e ultrapassaram o escopo majoritariamente paulistano do projeto, trazendo reflexões e experiências de campo de outros lugares, como Manaus, interior de São Paulo, Rio Grande do Sul, Roraima etc. Assim, articulamos um conjunto de pesquisas ao redor do tema do refúgio, com um peso mais central para as experiências na cidade de São Paulo, onde os dados evidenciam a concentração maior de refugiados, mas que acompanhou também a multiplicação de destinos desses refugiados ao redor do país.

    Fenômeno antigo, regulado desde o final da Segunda Guerra Mundial (1951),[2] depois atualizado na declaração de Cartagena,[3] o refúgio teve uma expressão contida no Brasil até o começo do século XXI. Um número relativamente pequeno de refugiados adentrou o país até então.[4] A partir do século XXI as coisas passaram a ganhar novos contornos, com a chegada de imigrantes sul-americanos, chineses e africanos.[5] A seguir, o afluxo de haitianos produziu uma enorme movimentação tanto de agentes de controle dos fluxos humanos como de legisladores e também da mídia em geral. A suposta invasão haitiana e seu estatuto deslizante – suficiente para causar a dúvida se tinham direito ao instrumento de refúgio ou não, se eram imigrantes simples, se eram refugiados ambientais (esta categoria ainda não reconhecida legalmente) – foi o estopim que chamou a atenção da mídia e de agentes públicos variados para o problema dos refugiados.[6]

    A adesão brasileira a um programa internacional de reassentamento,[7] as políticas de refúgio tidas como avançadas e modernas e parte de uma estratégia internacional de constituição de soft power pelo Estado brasileiro inseriram a questão do refúgio no cenário nacional. A atual crise humanitária que ronda a chegada de refugiados à Europa reforça essa atenção para os fenômenos complexos que circundam a presença destes novos refugiados no Brasil.

    Dos refugiados no Brasil, a maioria é de sírios (36%), seguida de congoleses (15%), angolanos (9%), colombianos (7%), venezuelanos e paquistaneses (3%) e de várias outras nacionalidades em números muito pequenos (tratava-se de um total de 11.231 refugiados no Brasil até maio de 2019).[8] Dados do observatório das Migrações Internacionais[9] (UNB/MTE) indicam que 40% ou mais dos estrangeiros no país se concentram no estado de São Paulo. O mesmo relatório indica que este estado reúne 47% dos refugiados no Brasil.[10] Ou seja, seguindo os dados oficiais, quase um em cada dois refugiados no Brasil se encontra no estado de São Paulo. Dado que grande parte do aparato assistencial aos refugiados se encontra na cidade de São Paulo, é razoável supor que a cidade concentra um número relevante de refugiados no Brasil.[11]

    Estes dados despertam a atenção para a questão fundamental da estrutura de regulação do refúgio e os inevitáveis confrontos entre refugiados e a burocracia que os cerca. Etnografias sobre a burocracia do refúgio vêm sendo produzidas,[12] com foco nos agentes de governança e nas adversidades que enfrentam os migrantes. Estes trabalhos definem e exploram a relação entre refugiados e as estruturas de controle e administração dos Estados nacionais e da ONU. Em função de este tema ser muito explorado, decidimos focar nas etnografias dos refugiados para somar outras perspectivas a essa mais estado-cêntrica (estes trabalhos procuram criticar esse estado-centrismo).

    Antropologia dos refúgios

    A definição do refúgio como objeto antropológico em si já nasce com uma dúvida pertinente e crítica, segundo Malkki:[13] sob esta categoria ampla se esconde uma variedade de situações enorme, tanto histórica quanto geográfica e culturalmente. Dado que as definições políticas de refúgio são variáveis, incluindo fenômenos diferentes e perspectivas mais ou menos amplas, o objeto refúgio não existe em si como um fenômeno sociocultural, mas antes como uma realidade político-normativa que produz um contingente de pessoas aceitáveis ou não em determinadas circunstâncias e para determinados países. Assim, refúgio e refugiados não configuram um objeto autodelimitado,[14] mas necessariamente o resultado de um processo que envolve políticas internacionais, legislações estatais, nacionalismos, racismos, xenofobias, direitos humanos, intervenções humanitárias, cidadania e religiões. Essa constelação do refúgio é sempre particular a cada situação dos refugiados, fato que nos leva à conclusão de que refugiado é uma categoria que, caso tomada como um dado, de forma acrítica, mais dificulta que ajuda a pensar os processos de deslocamento ligados a essa constelação.

    Talvez isso explique a força quase inescapável de estudos basicamente legislativos, que enumeram uma sucessão de leis e tratados, seguidos de políticas de assentamento como um objeto em si e nos quais os refugiados de carne e osso figuram como paisagem de fundo. Como destaca Williams,[15] estudos deste tipo são abundantes nas ciências das relações internacionais, do direito comparado, e estendem sua influência para a sociologia e ciência política do refúgio. Mesmo a antropologia está de alguma forma captada por esta armadilha categorial, que define um objeto ao mesmo tempo em que o faz desaparecer da análise, e cuja proeminência é atribuída aos agentes estatais e estruturas de assistência. Os refugiados emergem para suscitar um problema e são logo depois submersos na análise. A questão deste livro é evitar as percepções teóricas abstratas de refúgio e investir em etnografias que os apresentem como sujeitos políticos efetivos.

    A historicidade da categoria é traçada por Malkki, como por quase todos os analistas,[16] a partir do final da Segunda Guerra Mundial e da questão dos deslocados pelo conflito. Não que situações anteriores não pudessem ser vistas como de refúgio, mas a categoria política ainda não existia. Com a Segunda Guerra Mundial, aparece o campo de refugiados como uma tecnologia de poder para controlar e administrar coletivos de sujeitos deslocados forçadamente e também para produzir documentação sobre estes coletivos.[17] Inicialmente uma solução militar para a questão dos refugiados, o campo de refugiados continuou a operar numa lógica de controle e observação, mesmo quando a questão se tornou efetivamente humanitária.

    O aparato legal ao redor da categoria de refúgio torna a questão mais e mais sensível, ao mesmo tempo em que legitima o poder do Estado-Nação, já que pressupõe a questão da nacionalidade como fundamental. Esse aparato começa a se formar com a Convenção de 1951, passa por revisão em 1967 para a retirada da restrição geográfica relacionada à Segunda Guerra Mundial e chega aos momentos mais recentes de redefinição, como a Declaração de Cartagena (para os países sul-americanos[18]). Somado ao conjunto legislativo está o conjunto operacional da ONU, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), das organizações não governamentais que executam muitas das políticas como terceirizadas da ONU, as tropas de intervenção humanitária e seus dispositivos militares, os campos de refugiados administrados pela ONU, os funcionários etc. Este universo legislativo e institucional gira em torno da definição do refugiado como categoria, mas isso não é suficiente para se saber efetivamente algo a respeito destes coletivos: a tarefa antropológica por excelência é fugir dessa constelação de definições, controle e gerenciamento e dizer algo efetivamente sobre, com e a partir das experiências de refugiados.

    Numa outra perspectiva, parte da bibliografia internacional, segundo Malkki,[19] relaciona diretamente pobreza, terceiro mundo, países subdesenvolvidos e refúgio, o que é uma simplificação de um problema global. Global porque as situações de refúgio são produzidas por conflitos gerados, financiados ou estimulados por países desenvolvidos (como na Síria atual), que receberiam, segundo Nobel,[20] refugiados e migrantes como contraefeitos de sua própria ação global: financiamento de guerras, venda de armas, explorações econômicas etc. A questão é que o efeito bumerangue tem sido combatido com políticas sistemáticas de imposição de dificuldades para a entrada de refugiados em países desenvolvidos.

    Outro fator muito importante na questão dos refugiados refere-se à forma como são pensados pelos grandes media e a que tipo de associação estão expostos. Como afirma Strathern,[21] interessa ver que tipos de ideias são colocadas em conjunto no pensamento de questões contemporâneas (no caso dela, ao pensar as novas tecnologias reprodutivas). Holmes e Castañeda[22] destacam, a partir de uma análise das repercussões na mídia alemã da crise dos refugiados sírios, que há duas tendências: a primeira é ligar o refúgio a uma imagem de necessidade, que implica em criminalizar e discriminar a imigração comum (representando estes como aproveitadores); a outra é a que associa os refugiados com perigos de poluição, de ameaça à cultura nacional e como potenciais agentes de terrorismo. A metáfora da invasão é pervasiva, algo que se nota também na imprensa brasileira.[23] Outro conjunto de metáforas utilizadas são as aquáticas: inundação, onda, fluxo, sempre indicando um descontrole e falta de ordem ou incompetência na contenção dessas ameaças.

    Refúgios no Brasil

    O primeiro fato destacado pelos trabalhos sobre o refúgio no Brasil é a participação modesta no cenário global do refúgio: Navia[24] aponta que em 2011 o Brasil recebia apenas 0,4% da população mundial de refugiados. Essa pequenez histórica não impede, contudo, o destaque crescente que a questão dos refugiados vem amealhando nos últimos anos. As análises sobre o refúgio têm se concentrado na área das relações internacionais, com destaque para os trabalhos de Moulin, Jubilut, Reis e Moreira.[25] Para além da preocupação com as questões normativas do refúgio e da história legislativa do tema, vemos reflexões sobre a relação entre países mediada pelas ações humanitárias como instrumento de comparação de prestígio entre os estados.[26] Isso se reflete, na ponta do atendimento aos refugiados, numa perspectiva de assistencialismo dádiva[27] ou, ainda, no que Hamid chama de dádiva-refúgio,[28] como instrumento ao mesmo tempo de prestígio do estado nacional em comparação a outros e como forma de subordinação do refugiado, objeto de uma dádiva que o torna refém da generosidade estatal (a reflexão maussiana da dádiva é recorrentemente trazida à tona para explicar esse fenômeno que impacta tanto as relações internacionais dos estados como o atendimento humanitário dos refugiados). Moreira,[29] por exemplo, investiga essa relação de produção de prestígio estatal pelas ações humanitárias.

    O Brasil começa a receber refugiados a partir de 1948, provenientes da guerra europeia, por meio de um Comitê Intergovernamental para Refugiados. Em 1960, o país adere à Convenção de Genebra, mas com a condição de reserva geográfica, o que significava aceitar apenas os refugiados gerados pela Segunda Guerra Mundial, além de não permitir o trabalho e o direito de associação ao refugiado. Com a reserva geográfica e a ditadura no Brasil, não se aceitavam os refugiados latino-americanos, por exemplo. Em 1982 instala-se o escritório do ACNUR no Rio de Janeiro, que operava reassentando refugiados sul-americanos no exterior. Em 1986, o Brasil recebe alguns dos primeiros refugiados não previstos na reserva geográfica (iranianos Baha’is). Em 1989 é revogada a cláusula de reserva e em 1990 viu-se a adesão plena à Declaração de Cartagena. É apenas em 1992 que começa a crescer o número de refugiados, principalmente angolanos, fugindo da guerra civil. Vieram também refugiados do Congo, da Libéria e de outros países africanos.[30]

    Em 1997 surge a legislação específica sobre refúgio (Lei 9.474/97), criando o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e institucionalizando a questão do refúgio no Brasil.[31] A regulação do universo do refúgio no Brasil a partir do Conare abre espaço para refugiados em função de grave e generalizada violação de direitos humanos, seguindo a Carta de Cartagena de 1984. Em 2004 foi assinado o Plano de Ação do México, com várias medidas para melhorar as políticas de refúgio na América Latina. O destaque é o plano de reassentamento solidário, proposto pelo Brasil, cujo objetivo era realocar refugiados que não se adaptaram aos primeiros países de refúgio latino-americano, como forma de aliviar também a situação de países como o Equador, que receberam contingentes muito significativos de refugiados colombianos.

    A partir da criação da política de reassentamento solidário (2004) aumenta o número de refugiados colombianos em solo brasileiro. A recepção dos refugiados é feita basicamente por organizações não governamentais, principalmente as religiosas (como a Cáritas), que assinam convênios com o ACNUR e recebem recursos do Estado, do próprio ACNUR e de outras fontes para assistência imediata, em geral com prazo estipulado, a partir do qual o refugiado precisa dar conta de sua própria vida em solo brasileiro.[32] O gerenciamento do refúgio segue um esquema tripartite, como afirma Hamid,[33] envolvendo o Estado brasileiro, a agência internacional do ACNUR e a sociedade civil na forma de ONGs e instituições religiosas como a Cáritas.

    O principal grupo de refugiados no Brasil era o de angolanos, mas em 2012 o ACNUR declarou a cláusula de cessação para angolanos e liberianos: essas nacionalidades não seriam mais consideradas passíveis de refúgio por conta da situação de seus países (casos individuais ainda podem ser avaliados, mas a partir de perseguições específicas).[34] Até 2002, segundo Sprandel e Milesi,[35] 80% dos refugiados no Brasil eram provenientes da África. Em 2005, segundo Milesi,[36] 81,5% dos refugiados no Brasil eram africanos, 8,9% latino-americanos e caribenhos. A segunda década do milênio trouxe aumento relevante do refúgio no Brasil, e entre 2010 e 2014 houve elevação das solicitações de refúgio de mais de 2.000%: de 560 para 12.000.[37] A partir de 2012 cresce o número de refugiados sírios, e o Brasil tornou-se o país que mais acolheu refugiados dessa nacionalidade na América Latina até 2017 (cerca de 2.800). Em 2013, o Conare simplificou a emissão de vistos para sírios e outras nacionalidades afetadas pela crise no Oriente Médio (Resolução 17[38]). Essa mudança implicou a transformação do perfil do refugiado no Brasil, crescendo a importância dos refugiados sírios em relação aos congoleses e colombianos. É de se destacar que muitos obtêm o visto humanitário, originalmente pensado para dar conta da situação dos haitianos no Brasil. De posse desse visto é que muitos solicitam o estatuto de refugiado.

    O caso dos haitianos é exemplar para entender a política discricionária do refúgio no Brasil e no mundo. Começando a chegar ao Brasil após o terremoto de 2010, inicialmente solicitavam refúgio. No entanto, a legislação brasileira não reconhece o refúgio por questões ambientais, e haitianos viram seus pedidos negados. Mas o contínuo afluxo dos haitianos obrigou o governo brasileiro a produzir alguma forma de acomodação, que se deu com a criação do visto de ajuda humanitária (Resolução 97/2012), com uma definição muito ampla, capaz de lidar com a situação dos agora imigrantes haitianos. Esta solução significou a passagem administrativa dos haitianos do Conare para o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que recebeu do primeiro os pedidos de refúgio para que fossem, finalmente, transformados em vistos humanitários.

    Essa passagem também significou, segundo Redin e Bittencourt,[39] um grave retrocesso na política de refúgio no Brasil, uma vez que a lei brasileira poderia facilmente enquadrar os haitianos como refugiados, já que o próprio país comandava uma força de paz na ONU (entre 2004 e 2017) para pacificar o país e reorganizar um estado falido, situação em si geradora de violências passíveis de justificar o direito ao refúgio. Até o final de 2013 havia uma política de cotas e limitação à concessão desses vistos, indicando uma política discricionária de contenção da movimentação haitiana.[40]

    Considerando este conjunto bibliográfico em que prepondera uma análise formal, podemos afirmar que há pouca etnografia produzida sobre refugiados, conferindo mais importância a este livro, cuja intenção primeira é produzir conhecimento antropológico sobre os refugiados no Brasil. Podemos destacar neste cenário de pouca produção antropológica as teses de Navia, Hamid, Mejía, as dissertações de Perin, Gallo e os textos de Lopez, Benevides e Gusmão.[41] Em termos de preocupação etnográfica, os temas em torno da dificuldade em lidar com os órgãos de assistência humanitária ganham destaque nesses trabalhos, passando virtualmente por todas as experiências narradas. A questão da dialética entre o sofrimento e o poder de gerenciar o sofrimento é destacada por Navia. Reflexões sobre a forma de organização religiosa ganham proeminência em Gallo e a discussão sobre a poética do desterro é levada adiante por Mejía. A questão da gratidão e das dinâmicas de dádiva/cobrança entre Estado e refugiados é central para Hamid, mas é também presente nos textos de Navia. A desconfiança cotidiana entre refugiados e na relação destes com os órgãos de assistência é um tema importante nesta pequena bibliografia (Perin, Lopez, Benevides).

    Fato a se destacar é como todos esses trabalhos antropológicos apresentam-se mais como etnografias do refúgio em si, da experiência do refúgio no Brasil. Com esses trabalhos aprendemos muito sobre os meandros das relações entre o Estado e os refugiados, configurando um quadro explicativo e analítico fundamental. Entretanto, mesmo com essas etnografias, sabemos pouco sobre as especificidades de cada coletivo, das dinâmicas e das relações que tecem entre si e outros refugiados, imigrantes ou com os nacionais brasileiros. Essa, nos parece, é a nova etapa a ser desenvolvida nos estudos antropológicos sobre os refugiados no Brasil, e este livro se apresenta como parte desse esforço.

    Contribuições desta coletânea

    Em termos gerais, as pesquisas aqui apresentadas identificam como a presença de refugiados no Brasil enfrenta diferentes e complexas experiências, ao mesmo tempo em que cria novas realidades. As realidades criadas são tanto o esforço de contornar as confusas geografias das burocracias estatais como acordos e meios-termos entre essas forças contrárias. Vemos nos textos do livro um pouco dessa tensão. Alguns casos, como o de Alexandra Almeida e Alexandre Branco, lidam justamente com um ambiente fruto das geografias burocráticas estatais impostas aos refugiados: os lugares por onde devem passar, as redes de suporte com financiamento do Estado – mas terceirizadas – numa estrutura de gerenciamento que, ao mesmo tempo em que afasta do Estado os refugiados, os prende numa teia longa de obrigações e contraobrigações, lógicas de dádiva variadas, formas diversas de criar dependência. Ao mesmo tempo, ao lidar com essas estruturas, refugiados/imigrantes de diferentes destinos são colocados em contato e, nessa experiência, constroem relações que ajudam a superar ou suportar as dificuldades da experiência de refúgio no Brasil, ou ainda criam novas fontes de tensão e conflito. O Estado, poderíamos afirmar, estimula de forma compulsória a criação de redes entre refugiados de diferentes origens, já que são colocados nos mesmos abrigos, dividem experiências comuns, enfrentam situações tensas juntos, veem chegar os prazos finais das pequenas ajudas de custo, juntos buscam alternativas e, em alguns momentos, passam a depender uns dos outros para superar problemas comuns.

    Podemos usar os instrumentos teóricos dos maquinários[42] para pensar o Estado como um produtor de realidades para os refugiados, prendendo-os a redes específicas de relação, circulação, dependência, controle, vigília e mesmo de expulsão, ao mesmo tempo em que podemos olhar para os refugiados como produtores de suas próprias máquinas de vida, com suas realidades autônomas, ainda que tangenciadas pelas máquinas estatais que se criam ao seu redor. Nesse conjunto de maquinários encontramos as experiências particulares de refugiados e possibilidades ou não possibilidades de vida em comum, de experienciar a vida no Brasil, de apropriação dos espaços da cidade, de geografias hostis ou não, a depender de uma série de fatores.

    Já escrevi algo sobre os maquinários[43] como artifício para entender a produção de diferenças em grupos migrantes e agora vou redirecionar a questão para os refugiados, tentando conectar a produção de maquinários com o que chamei, anteriormente, em outro contexto, de hierarquias de alteridade.[44] O que quero dizer com maquinário é apenas uma metáfora para a elaboração da reflexão a partir de modelos teórico-analíticos (organizados a partir de recortes disciplinares). Essa metáfora possibilita encarar os modelos como um conjunto de máquinas, engrenagens e dispositivos que organizam um maquinário geral de pensamento. Esses maquinários são movimentados por nossas explicações sobre os fenômenos, eles servem para nos ajudar a refletir sobre o que pretendemos explicar. Assim, precisamos estar atentos e entender que os maquinários não são coisas em si: são instrumentos que usamos para pensar sobre os eventos e processos que nos interessam. No caso das migrações, temos vários maquinários operando, de forma mais ou menos objetificada. O refúgio é pensado a partir de maquinários analíticos específicos, mas também é pensado por maquinários coletivos, sistematizados em torno de crenças, estereótipos, pensamentos, preconceitos. Estas sistematizações, que poderíamos chamar melhor de condensações, são histórica e socialmente construídas, têm existência organizada ao longo do tempo, mas sempre sujeitas ao jogo da história. Estão em risco na ação, diria Marshall Sahlins, como afirmou em situações semelhantes no seu Ilhas de história.[45] Esses maquinários sociais, que organizam a forma como muitos brasileiros encaram o refúgio, podem ser pensados também como algo que a teoria pós-colonial chamou de hierarquias da alteridade.

    Grosfogel e Georas[46] cunham o termo hierarquias da alteridade para pensar como as diferentes populações migrantes são pensadas pelas sociedades de recepção, em termos do que eu chamaria de um maquinário de ideias que envolvem noções de raça, preconceito, estereótipos, mitificações, impressões difusas etc. Obviamente, estes maquinários não são estáveis, nem ao menos homogeneamente distribuídos pelas sociedades; sofrem deslocamentos e diferenciações a partir dos lugares onde são produzidos (classe, raça, gênero, região e muitas outras variáveis que produzem diferenças). Assim, esses maquinários só são perceptíveis efetivamente a partir de etnografias cuidadosas. No entanto, é possível entender aspectos gerais, constituídos historicamente e atualizados a partir das experiências históricas dos deslocamentos presentes. Isso quer dizer que a experiência de cada grupo, ou conjunto de refugiados/imigrantes (seja de coletivos nacionais ou coletivos de várias nacionalidades colocados em relação pelas máquinas do Estado), é organizada simbolicamente a partir das hierarquias de alteridade presentes em seus locais de vivência. Cidades, bairros, periferias, locais onde determinadas ordens de percepção da diferença preponderam e onde refugiados são inseridos, não sem alguma dificuldade.

    Esses maquinários de percepção da diferença operam, evidentemente, em diálogo com aspectos mais gerais da história brasileira, o que nos permite algum nível de generalização quando falamos em hierarquias da diferença. O conjunto de trabalhos aqui apresentados versa sobre refugiados e serviços de saúde, a ocupação de prédios na cidade, sobre refugiadas africanas nos serviços de assistência e na busca de empregos, sobre as ideias que vemos na mídia dessa população, sobre medo, comida, parentesco, religião, e ainda outras questões. Estas dimensões coletivas de experiência de fala sobre os refugiados (mídia), de percepção do refugiado na cidade (espaço urbano), de entendimento do refugiado como um ser classificado em função da sua cor e de experiência burocrática com os refugiados nos permitem um vislumbre dessas hierarquias sociais operando a partir das experiências aqui relatadas.

    Os maquinários de percepção da diferença não são apenas ideias ou conjuntos de apreensões simbólicas da diversidade. Eles são isto, mas são também formas de conduzir a inserção desses refugiados no tecido social das cidades brasileiras. Os maquinários se transformam também em máquinas de produção de realidade para os refugiados à medida que preceitos, preconceitos, ideias vagas e estereótipos circunscrevem a experiência de forma incontornável. Conforme o conjunto de ideias que o maquinário organiza

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