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"Homens de Ferro, Mulheres de Pedra": O Itinerário de Resistências de Africanos Escravizados entre a África Centro-Ocidental e América Espanhola; Fugas, Formação de Quilombos e Conspirações Urbanas (1720-1809)
"Homens de Ferro, Mulheres de Pedra": O Itinerário de Resistências de Africanos Escravizados entre a África Centro-Ocidental e América Espanhola; Fugas, Formação de Quilombos e Conspirações Urbanas (1720-1809)
"Homens de Ferro, Mulheres de Pedra": O Itinerário de Resistências de Africanos Escravizados entre a África Centro-Ocidental e América Espanhola; Fugas, Formação de Quilombos e Conspirações Urbanas (1720-1809)
E-book644 páginas8 horas

"Homens de Ferro, Mulheres de Pedra": O Itinerário de Resistências de Africanos Escravizados entre a África Centro-Ocidental e América Espanhola; Fugas, Formação de Quilombos e Conspirações Urbanas (1720-1809)

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Sobre este e-book

Homens de ferro, Mulheres de pedra é um livro sobre a luta incessante por liberdade de africanos que foram tornados escravos ainda na África e transportados para o Novo Mundo. Trata-se de um conjunto de histórias sobre persistência, força, paixões e recomeços, que conferiram aos sujeitos analisados a natureza de ferro ou pedra, permitindo, assim, suportar a longa travessia do Atlântico até a fronteira oeste da América portuguesa e depois seguir América espanhola adentro.
Nesta obra, o leitor é convidado a conhecer a complexidade do mundo escravista do Atlântico Sul, povoado por diferentes personagens e espaços. Ganham presença nas suas páginas comerciantes portugueses e brasileiros, pombeiros, sertanejos, chefes africanos, indígenas, quilombolas, itinerários comerciais que ligavam o Rio de Janeiro ao Mato Grosso, atravessando territórios de indígenas Paiaguás, além das rotas de fuga para floresta densa ou território espanhol, especialmente Santa Cruz de la Sierra. Sequestro de navio negreiro, confrontos, alianças entre chefes africanos e portugueses ou negros escravizados e indígenas e insurreição urbana são apenas alguns dos casos que aparecem ao longo das páginas que compõem o livro.
A importância desta publicação não se deve somente ao fato de fazer coro com os esforços nacionais para divulgação da história e cultura afro-brasileira, mas, sobretudo, porque parte do pressuposto de que as desigualdades raciais no Brasil só poderão ser superadas se inicialmente conhecermos a própria história dos afro-brasileiros que aqui viveram como escravos e lutaram pela liberdade.
Ademais, trata-se de um livro endereçado tanto para pesquisadores interessados em compreender o sistema escravista arquitetado entre o continente africano e a América portuguesa, como também para todo e qualquer brasileiro que tenha anseio em se familiarizar com as próprias raízes históricas e culturais. Esperamos que nossos homens e mulheres de ferro e pedra possam fazer o leitor olhar para história brasileira de outro ângulo, do ponto de vista daqueles que se levantaram contra a escravidão e a ela resistiram.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de nov. de 2019
ISBN9788547338787
"Homens de Ferro, Mulheres de Pedra": O Itinerário de Resistências de Africanos Escravizados entre a África Centro-Ocidental e América Espanhola; Fugas, Formação de Quilombos e Conspirações Urbanas (1720-1809)

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    "Homens de Ferro, Mulheres de Pedra" - Bruno Pinheiro Rodrigues

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    "HOMENS DE FERRO,

    MULHERES DE PEDRA"

    O itinerário de resistências de africanos escravizados entre a África Centro-Ocidental e América espanhola. Fugas, formação de quilombos e conspirações urbanas (1720-1809)

    Bruno Pinheiro Rodrigues

    "HOMENS DE FERRO,

    MULHERES DE PEDRA"

    O itinerário de resistências de africanos escravizados entre a África Centro-Ocidental e América espanhola. Fugas, formação de quilombos e conspirações urbanas (1720-1809)

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedico este livro a todos aqueles que acreditam

    que outro mundo é possível.

    AGRADECIMENTOS

    Não poderia iniciar sem agradecer a principal apoiadora deste estudo, a base que me permitiu subir montanhas e sempre olhar à frente: Elzimar Muniz Pinheiro, a minha mãe. Faltam palavras para expressar o tamanho da gratidão por cada palavra de conforto, preocupação e ligação ao longo de todos esses anos. O seu exemplo de vida, mãe solteira que fez todo o possível para não deixar os filhos abandonarem a vida acadêmica, é o maior legado e inspiração da minha trajetória.

    Igualmente, não poderia deixar de agradecer a todo o companheirismo e contribuição de Ernesto Cerveira de Sena, que da graduação ao término do doutoramento participou diretamente do meu crescimento enquanto ser humano e historiador. Sou imensamente grato pelos tantos conselhos, paciência e amizade. Não tenho dúvidas de que sem a sua contribuição esta obra não teria chegado ao ponto que chegou.

    Agradeço também ao Governo Federal, especialmente à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes), que durante todo o percurso deu-me suporte financeiro com bolsas e auxílios diversos para que vivenciasse numerosas experiências de pesquisa, ao ter oportunidade de residir e estudar em outras cidades e no exterior, que enriqueceram e ampliaram consideravelmente o horizonte da pesquisa. Desejo profundamente que outros tantos possam usufruir das mesmas oportunidades.

    Agradeço ao conjunto de professores que estiveram à frente do PPGHIS/UFMT entre 2011 a 2015, sempre solícitos e atentos aos nossos pedidos, auxiliando no que fosse necessário. Outrossim, sou muito grato a toda cobertura proporcionada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PROPG) da UFMT, especialmente à solicitude da professora e pró-reitora Leny Caselli Anzai e Élida Furtado da Silva Andrade, fundamental para concretização do doutoramento sanduíche e manutenção das bolsas.

    Durante a minha estadia em Lisboa, Portugal, a presença constante da minha coorientadora, Isabel Castro Henriques, foi fundamental para a realização da pesquisa e amadurecimento intelectual. Sou grato por toda contribuição e carinho dispensado. Na mesma circunstância, também agradeço as valiosas sugestões das professoras Aida Freudenthal e Ana Paula Ribeiro Tavares, e do professor José da Silva Horta, que me proporcionaram numerosos insights e inspirações; além da amizade do meu amigo angolano, Gime Luís Ibn, e dos brasileiros, Diego Bortoncello, Ricardo Miotto e Raquel Longhi. Certamente, os dias no Velho Mundo não teriam sido tão intensos e inspiradores sem a presença de todos eles.

    Sou muito grato ao conjunto de pesquisadores que muito cordialmente auxiliaram-me para que pudesse desenvolver a investigação junto aos arquivos bolivianos, particularmente a Bismark Cuéllar-Chavez, Paula Peña Hásbun, J. Judith Terán R. (subdiretora do ABNB) e a Luis Enrrique Rivero Coimbra. A orientação e zeloso acompanhamento de todos foram de suma importância para o melhor aproveitamento do tempo e realização da pesquisa.

    Na ocasião em que estive residindo no Rio de Janeiro, numerosas pessoas foram de fundamental importância para o andamento das atividades acadêmicas. De modo especial, agradeço à professora Maria Paula de Araújo, que me proporcionou gentilmente a possibilidade de acompanhar um seminário como aluno externo e realizar o estágio docência; Priscilla Gomes e Agata Gravante, pelo companheirismo e amizade.

    Sou grato também a Monique Lordelo, sempre solícita no compartilhamento de conhecimento; a Suellen Alves e Patrícia Acs que, respectivamente, foram as responsáveis pelo primeiro mapa do livro e revisão ortográfica e gramatical. Thalita Pinheiro Rodrigues, minha querida irmã, concedeu-nos gentilmente a honra de receber produtos do seu singular talento: dois belos desenhos, um sobre o Quilombo Grande e outro sobre a rainha Teresa de Benguela.

    Quero registrar a minha gratidão aos professores João Antônio Botelho Lucídio e Alexandra Lima, que durante a Banca de Qualificação foram determinantes para o repensar da nossa abordagem, organização textual e maior cuidado na indagação das fontes.

    Por fim, agradeço aos meus grandes amigos, Christian Luiz Gomes e sua família, Luiz Rodrigues, Antonio Fernandes, Max Rodrigues, Carol Weiss, Reinaldo Marchesi e Julio Mangini, que durante todo esse percurso sempre me acolheram com alegria e atenção, nos bons e maus momentos.

    APRESENTAÇÃO

    Nossa jornada começou em 1770, na floresta densa localizada no Vale do Rio Guaporé, fronteira entre os atuais Brasil e Bolívia. Lá tomamos nota sobre Tereza de Benguela, descrita como rainha do Quilombo Grande, que mesmo diante da iminente queda, rebelou-se de maneira triunfal. Dizem as fontes disponíveis que após a captura ela foi tomada por uma poderosa fúria e paixão. Amuada, recusou-se à ingestão de alimentos e, assim, encontrou a própria morte.

    Descrita por cronistas ora como governante de mãos de ferro, ora como dona de atributos comparáveis a grandes rainhas da história da humanidade, tais como Cleópatra ou Palmira, Tereza de Benguela foi um ponto de partida singular para entender a história de outros milhares de africanos que atravessaram o Oceano Atlântico e foram levados para fronteira oeste da América portuguesa nos anos setecentos, a fim de assegurar as posses portuguesas e de viabilizar a exploração do ouro.

    Quem era Tereza de Benguela para além do olhar frio do colonizador? Quais conhecimentos políticos, culturais e econômicos trazia consigo, juntamente com todos os outros africanos embarcados do porto de Benguela ou de outras partes da África? Por que os habitantes do Quilombo Grande devotavam tanta disciplina e obediência ao comando de Tereza? Por que a presença de indígenas? Como e por que foi possível a longevidade de tantas décadas de existência do quilombo na região, documentalmente datada de 1730 a 1795?

    Essas e outras indagações nos levaram a percorrer um itinerário de cerca de 10 mil quilômetros, do continente africano ao Alto Peru (atual Bolívia); a caminhar entre 1720, ano da primeira estimativa sobre o comércio e transporte de escravos para o Mato Grosso, a 1809, ocasião em que uma conspiração tramada por negros fugidos dos domínios portugueses, escravos e indígenas foi descoberta em Santa Cruz de La Sierra.

    Durante todo esse itinerário nos foi possível conhecer histórias extraordinárias de busca por liberdade, como a dos africanos que, transportados em navio negreiro que saía de Angola em 1760, tomaram a embarcação, assassinaram quase toda tripulação e desviaram a rota para os domínios do chefe africano Dembo Manicembo, que os abrigou contra os interesses portugueses.

    Em um determinado momento das pesquisas, a história e memória da rainha Ginga também se fizeram presente. Ela, um dos maiores símbolos da africanidade e anticolonialismo, é personagem central para entender a resistência à presença portuguesa e as numerosas dificuldades para organizar o comércio de escravos na África Central-Ocidental, somente possível por meio de guerras justas ou alianças com chefes locais.

    A pesquisa histórica e bibliográfica ainda nos levou ao conhecimento dos temíveis povos Jagas e, principalmente, do que eram e significavam os quilombos entre os povos que habitavam Benguela e o seu sertão – a saber, campo de formação e iniciação militar. Tendo em mãos essas informações, foi-nos possível olhar para o Quilombo Grande, nosso ponto de partida, de outra maneira. Os africanos que lá estavam, em contatos interétnicos com povos indígenas que habitavam a região, não eram papéis em branco; traziam muita história e conhecimentos de ordem econômica, política e cultural, fundamental para luta pela vida além dos grilhões.

    Ao longo do itinerário, outros sujeitos ocuparam espaço nas páginas que compõem o livro. É o caso de Sebastião de Benguela, que transportado para o Mato Grosso em 1733, entrou para as páginas da história ao travar um violento combate com indígenas Payaguás que atacavam a monção que o levava, derrubando vários adversários e arrancando espanto e admiração dos luso-brasileiros presentes.

    Igualmente, digna de nota é a história do negro Félix, que após ter fugido para América espanhola com outra cativa, casou-se. Contudo foi capturado e enviado novamente ao Mato Grosso, a pedido do governador. Não tardou e Félix fugiu novamente. Os registros oficiais indicam que havia partido ao encontro da esposa e continuado a fuga para lugares mais distantes, onde pudesse, finalmente, descansar em liberdade.

    O outro lado da fronteira também é repleto de histórias instigantes. Em Santa Cruz de La Sierra, palco da conspiração de 1809, encontramos, entre os conspiradores, Antonio Gomes, que fugido da América portuguesa tomara parte do conluio que pretendia tomar a cidade. Preso e ameaçado com a devolução aos domínios portugueses e escravidão, em sua defesa lembrou-se de que já havia até mesmo lutado ao lado da coroa espanhola contra indígenas. Em outras palavras, mais uma história fascinante de alguém que saiu de um território na condição de escravo, tentou recomeçar a vida em outro lugar e tomou parte de várias maneiras dos acontecimentos históricos do seu tempo.

    As demais histórias desses homens de ferro e mulheres de pedra deixaremos o leitor descobrir por si mesmo. Acrescentamos apenas que este livro está em sintonia e é sensível com diversas tendências de pesquisa mundo afora, especialmente pelo esforço de dar voz a quem costumeiramente foi silenciado nos documentos que registram a história. Nesta obra são protagonistas das suas próprias vidas as dezenas de cativos fugitivos que encontramos no longo itinerário analisado, os quilombolas articulados com indígenas e assenzalados, assim como negros evadidos aos domínios espanhóis e que, livres, tornaram-se conspiradores. Em suma, esperamos que o leitor possa viajar conosco na magnitude desses sujeitos, mas, principalmente, sentir a força e a paixão que, apesar dos séculos, ainda insiste em ecoar.

    Bruno Pinheiro Rodrigues

    PREFÁCIO

    Ao perceber o quilombo não só como um espaço de resistência, mas de reelaboração cultural e social, Bruno Pinheiro Rodrigues se propôs uma empreitada de pesquisa extremamente desafiadora: investigar o trajeto de escravizados, do interior da África até as áreas centrais da América do Sul. Então, mais surpresas apareceram, tal como é o sabor da pesquisa em história: o autor pôde vislumbrar percursos de escravizados até áreas administrativas da coroa espanhola que tangenciavam o oceano Pacífico. O mundo atlântico dava exemplo de sua excepcional amplitude.

    Se imaginarmos que o percurso dos escravizados na África fosse representado por uma linha vertical, mostrando os espaços e o tempo dos deslocamentos em uma ascendente, temos também várias outras linhas oblíquas (ou quase horizontais), que fazem nós ao encontrar a primeira, e depois continuam o seu desenrolar, indicando, nessas intersecções, séries de cruzamentos dos indivíduos com conjunturas diversas. Nesse sentido, Sabina Loriga¹ aponta a vertigem que muitos historiadores encontram ao perceberem possibilidades de uma enorme variedade de conjunturas, podendo se apresentar quase infindáveis ao longo de um trajeto. Isso os levariam, muitas vezes, por certa prudência, a se limitarem, poupando de se enveredarem em caminhos que desde o início parecem sem fim. Por outro lado, Sabina Loriga propõe tomar partido justamente dessa multiplicidade de situações e processos estruturais. Seria perceber, em outra figura, o círculo, que demonstraria os movimentos circulares entre o geral e o singular, os quais ajudariam a explicar um ao outro e vice-versa. Assim, ela trata do desafio de biografar o indivíduo e as suas várias circunstâncias. Entretanto é justamente aí que está a riqueza do trabalho de Bruno Pinheiro Rodrigues. Trata dos fluxos de muitos indivíduos, destacando parte de trajetórias individuais, principalmente entre o período que marca o apogeu das interferências metropolitanas em suas colônias e o início do fim do chamado Antigo Regime, perpassando discussões historiográficas sobre a África, o tráfico de escravos pelo mar, os caminhos terrestres e fluviais, as linguagens de poder, as lutas por classificações. Para esses trajetos serem mais bem apreendidos, o pesquisador também tratou das resistências sociais e adaptações culturais, das negociações, dos levantes, das fugas, e como uma espécie de síntese da territorialização da África no Brasil, em meio a um regime escravagista, o quilombo, com seu hibridismo e novas significações.

    O que está neste livro é uma abordagem inédita sobre as pessoas que tinham em comum um périplo que as faziam ser vistas como homens e mulheres de ferro ou de pedra. Foram capturadas em outro continente, sendo parte de disputas entre grupos étnico-políticos diferentes, fornecendo lucro para traficantes luso-brasileiros (ou outros com a perspectiva europeia escravagista); e depois, acondicionados em navios propriamente chamados de tumbeiros, faziam a travessia do Atlântico. Chegando a um dos portos do Brasil, eram destinados a várias partes diferentes; os que eram enviados a Mato Grosso faziam uma segunda travessia, em um segundo tumbeiro, pois também estavam sujeitos a uma grande quantidade de mortandade, em precárias condições e percursos extenuantes. Assim, povoavam involuntariamente as fronteiras do império português com a América espanhola. A partir dessa nova localização, muitos africanos e seus descendentes empreenderam fugas, sendo parte para terras castelhanas. Isso colocava à prova os acordos de devolução de fugitivos entre as duas metrópoles, estabelecendo novos pontos de tensão, ao mesmo tempo em que os procurados pelos governos exploravam as margens dos sistemas normativos, procurando e encontrando, muitas vezes, novas possibilidades de sobrevivência e vivências entre dois impérios.

    Nessas fugas, não foram poucos os que conseguiram formar quilombos, tanto na parte pretendida por Portugal quanto pelos espanhóis, fazendo uma nova territorialização e estabelecendo novas fronteiras. Para tanto, Bruno Pinheiro Rodrigues envereda pelas discussões sobre a África, analisando o que seria o Kilombo naquele continente, e a ressemantização do termo no Novo Mundo. Daí, se há diferenças entre os dois lugares, o autor localiza recorrências políticas e sociais, estabelecendo elos entre parte do continente africano e Mato Grosso. O autor, então, localiza hibridações de padrões, salientando adaptações dos fugitivos com grupos indígenas locais.

    A liberdade ao empreender fuga não era garantida nem com a formação de quilombos. Se os mocambos podiam ser destruídos por bandeiras, por outro lado, também não os impedia de como uma hidra recomeçarem novamente (e em vários outros lugares). Por outro lado, em áreas da América espanhola, onde também erigiam comunidades ou se acomodavam às já existentes, após empreenderem fuga, não somente poderiam ser escravizados novamente, deportados, mas também encarcerados e privados mais efetivamente de estabelecerem uma vida sem o encalço de um capitão do mato ou outros agentes escravagistas.

    Então, destaca-se quando o autor abre mais uma nova linha quase horizontal (quase, pois os tempos incidem contra as retas perfeitas que indicariam as conjunturas) de investigação, cruzando os caminhos agora em Santa Cruz de la Sierra, onde alguns africanos já fugidos do império luso se encontravam presos, mas também com uma rede de relações que os fizeram conspirar contra o governo local, dentro do quadro de instabilidade pela qual passava toda a América hispânica, decorrente, principalmente, da invasão napoleônica na Península Ibérica (1807). Debelado o movimento insurrecional, foram novamente detidos e tiveram que subir os Andes para o julgamento, em Chuquissaca (hoje Sucre). Muitos deles já tinham feito travessia em dois tumbeiros.

    Essas sagas são apreendidas por Pinheiro Rodrigues, perseguindo rastros em amplas fontes, construindo um objeto original: a enorme trajetória de escravizados desde a África, localizando vários sujeitos particulares (ou coletividades como quilombos na América), que procuravam decidir seus destinos em meio a um curso contínuo, em pleno vigor, do sistema escravagista.

    Professor doutor Ernesto Cerveira de Sena

    Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso

    LISTA DE SIGLAS

    Sumário

    INTRODUÇÃO 23

    1

    A CHEGADA DO MUNDO ATLÂNTICO E OS POVOS DO

    HINTERLAND DE BENGUELA (SÉCULO XVII-1720) 35

    1.1 O cenário: condições geográficas, climáticas e diversidade etnoliguística

    desde o século XVI 37

    1.1.1 A produção de cativos frente ao universo Ovimbundu

    (1620-1720) 41

    1.2 A Percepção ocidental dos Jagas-Imbangalas: da chegada dos "ávidos

    devoradores de carne humana" às guerras justas 52

    1.2.1 A chegada: relatos orais e produção historiográfica 53

    1.2.2 A rainha Nzinga e os Imbangalas sob o olhar do colonizador 64

    1.2.3 Kilombos: intercâmbios culturais entre Ovimbundu-Imbangalas e

    notas sobre a organização militar 72

    2

    DO HINTERLAND À COSTA: O ESPAÇO E OS PROTAGONISTAS

    NA PRODUÇÃO DE ESCRAVOS EM BENGUELA (1730-1828) 91

    2.1 Benguela-América portuguesa: estimativas de comércio 92

    2.2 A organização do comércio no Hinterland de Benguela 97

    2.3 Entre guerras justas e injustas: jogos de interesses no Hinterland

    de Benguela 133

    3

    UMA DEVASSA NO SERTÃO: PANORAMA DA INSTITUIÇÃO ESCRAVISTA NA FRONTEIRA DO TERRITÓRIO

    LUSO-BRASILEIRO (1720-1795) 157

    3.1 A instituição escravista em região de fronteira 160

    3.2 Da chegada de cativos: monções 176

    3.3 Da procedência étnica 184

    4

    A VIDA PARA ALÉM SOCIEDADE ESCRAVISTA: O TRÂNSITO ENTRE INDÍGENAS, ESPANHÓIS E O RETORNO FORÇADO 199

    4.1 As permanentes e inevitáveis relações entre cativos e indígenas: entre

    as guerras e assimilações 207

    4.2 Fugas e tentativas de recomeço do lado espanhol: da miragem e busca

    incessante pela liberdade 228

    4.3 O retorno é a morte: a volta de cativos fugidos à sociedade

    escravocrata 250

    5

    O QUE ATRAVESSOU O ATLÂNTICO: O QUILOMBO GRANDE

    ENTRE COMEÇOS E RE-COMEÇOS (1730-1795) 271

    5.1 O significado da agência cativa: notas gerais sobre os quilombos na

    américa portuguesa e capitania do Mato Grosso 273

    5.2 O quilombo grande: duração e aruaquização 281

    5.3 O que atravessou o atlântico: das áfricas na organização e resistência

    político-militar do quilombo grande 294

    5.3.1 A África-bantu para além da documentação oficial: congada,

    organização, familiar e traços linguísticos no vale do Guaporé 295

    5.3.2 Fúria e paixão: a organização política e militar do Quilombo Grande

    à luz dos Imbangalas-Ovimbundus 304

    6

    FOGO DA LIBERDADE: DAS FUGAS À CONJURAÇÃO DO

    AGOSTO DE 1809 EM SANTA CRUZ DE LA SIERRA 325

    6.1 O cenário: Santa Cruz de La Sierra e o lugar da mão de obra escrava 327

    6.2 El fuego de la liberdad: a conspiração do agosto de 1809 336

    6.3 Do malogro: as consequências, punições e novos caminhos aos homens

    de ferro 347

    6.4 Recomeços e novas partidas: a agência escrava no alto peru e a vida

    possível aos corações corrompidos 356

    7

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 367

    8

    REFERÊNCIAS 371

    8.1 Referências documentais 371

    8.1.1 Fontes publicadas 371

    8.1.2 Fontes manuscritas 372

    8.2 Referências bibliográficas 376

    8.2.1 Livros, artigos, dissertações e teses 376

    8.2.2 Homepage 390

    ÍNDICE REMISSIVO 393

    INTRODUÇÃO

    [...] Um homem que conduzia seis ou sete escravos recém-chegados da África, meio nus e coberto ainda da sarna que esses desgraçados apanham na viagem marítima, foi surpreendido por um desses nevoeiros no seguir estrada que ele não conhecia bem. Perdeu-se e achou-se no meio dos campos, sem ver nada diante de si e sem saber onde estava. Os negros passaram a noite tolhidos de frio e no dia seguinte estavam tão inanimados e tesos, que o negociante, supondo-os mortos e não podendo mais consigo, montou o cavalo e começou a vagar ao acaso. Andou todo o dia, indo e voltando sobre seus passos. À tarde o tempo clareou e foi o que o salvou, porque viu um sítio e lá chegou mais morto do que vivo e já sem fala. Desceram-no do cavalo, aqueceram-lhe os membros gelados, deram-lhe um caldo de galinha, e pouco a pouco foi voltando a si. Havia dia e meio que nada comera. Foram à procura dos negros e os encontraram sem vida no lugar onde o negociante os deixara.²

    Militando pois todo este tropel de infortúnios, e de desgraças armadas contra o infeliz escravo, a tudo isto ele resiste, vive, e falta, em países americanos. Os escravos que ali aportão vem a ser mais um resto de escravatura, do que de homens. É uma leva de enfermos, que de um hospital se muda para outro, e por isto com uma razão disse, que os escravos eram por natureza fortes, robustos e sadios; e os que escapavam de todas estas calamidades com muita razão se podião chamar de homens de ferro, ou de pedra.³

    Era preciso ter natureza de ferro ou pedra para suportar a longa travessia Atlântica e continental a fim de se chegar ao derradeiro destino. Ao narrar a morte de escravos africanos que chegavam a Serra Acima, um dos distritos de Cuiabá no final da década de 1820, Hercules Florence, que acompanhava a Expedição Langsdorff,⁴ dava dimensão das numerosas dificuldades e infortúnios a que estavam submetidos homens e mulheres que haviam sido transformados em escravos ainda na África. A resistência às condições agravantes da travessia, ao mesmo tempo em que suscitava preocupação, arrancava certa admiração. É o que observamos no relato de Oliveira Mendes, luso-brasileiro que, no final do século XVIII, elaborou uma obra cuja finalidade seria a preservação da vida dos africanos transformados em escravos, motivada pela necessidade de proteção do patrimônio de senhores e Estado e garantia do bom funcionamento da agricultura.⁵

    Aqueles homens e mulheres precisariam estar muito além das condições normais humanas para resistirem à morte que estava à espreita, visível nas tentativas desesperadas de fuga, desidratação, frio, doenças tropicais, nostalgia, inanição e maus-tratos. Muitos caminhos levavam à morte, desde a África até os confins das Américas, mas os sujeitos que trataremos na presente obra optaram pela vida ou por ela lutaram quando assim foi possível escolher.

    Assim, apresentamos no estudo que se segue uma reflexão sobre o papel ativo de africanos escravizados numa das rotas do comércio de escravos, bem como as constantes readaptações identitárias e trocas culturais vivenciadas em diferentes pontos do itinerário. Entre o presídio de Caconda, importante entreposto comercial do hinterland de Benguela,⁶ e Santa Cruz de la Sierra, maior cidade da região leste do Alto Peru,⁷ na América espanhola, o cativo poderia ter percorrido uma distância aproximada de 9.620 quilômetros,⁸ vivenciando numerosas situações que exprimiam, em última instância, a busca constante por uma vida para além do cativeiro (ver Mapa 1).

    Dessa maneira, estaremos defronte a casos de assaltos a navios negreiros, fugas em todos os pontos da rota, formação de ajuntamentos-quilombos e alianças clandestinas com comerciantes da sociedade luso-brasileira, estabelecimento de relações com povos indígenas – conflituosas ou amigáveis –, ou mesmo com tentativas de insurreição em espaço urbano. Apesar da constante vigilância, medo e repressão, em nenhum momento e em qualquer etapa desse percurso, deixaram de aparecer casos em que cativos abandonassem a busca de possibilidades de uma vida melhor fora da sociedade escravista normatizada.

    Todavia é preciso frisar que toda essa agência cativa verificada ao longo do itinerário escolhido se deu em diferentes contextos e temporalidades, a começar por Benguela e o seu hinterland, que vivenciava um novo contexto em termos de inserção na economia Atlântica a partir de 1716, com a liberação gradativa do comércio direto com o Rio de Janeiro sem a necessidade das embarcações passarem em Luanda para o pagamento de direitos. Com a transferência progressiva de comerciantes do Rio de Janeiro para a Baía das Vacas (como também era conhecida Benguela), atraídos pela alta oferta e potencial de mão de obra cativa, motivados pela demanda crescente por escravos das minas de ouro no Brasil, o porto de Benguela em poucas décadas se transformou num grande centro de comercialização de escravos. Como podemos observar na Tabela 2, a quantidade de exportação de cativos aumentaria ao longo das décadas do século XVIII, até chegar ao pico em 1795 – quando, a partir desse ano, passaria a sofrer declínios, chegando ao encerramento em meados do século XIX, ante as pressões inglesas e reorganização da economia na região.

    Do outro lado do Atlântico, com as descobertas das novas minas na América portuguesa e aumento da demanda de mão de obra escrava africana, já nas primeiras décadas do século XVIII, o Rio de Janeiro passaria a se consolidar como o principal fornecedor de cativos, sobretudo, com a abertura da nova rota, que ligava a cidade a Minas Gerais, ao mesmo tempo em que o volume de exportações de africanos escravizados na chamada África Ocidental diminuía e se aumentava o volume comercial dos exportados pelos portos congo-angolanos (ver Gráfico 2).

    As minas de Cuiabá e Mato Grosso, descobertas nas primeiras décadas do século XVIII, inseriam-se nesse contexto. Destarte, por uma rota hegemonizada pela Capitania de São Paulo até finais da década de 1740, que adquiria grande parte da mão de obra cativa do Rio de Janeiro, passou-se a transferir milhares de cativos por longos caminhos fluviais ou terrestres à região que se encontrava no extremo-oeste das possessões portuguesas, a fim de serem empregados na mineração intercalada com atividades agrícolas e domésticas.

    Contudo, contrariando as expectativas senhoriais, uma quantidade considerável desses homens e mulheres se evadiu do cativeiro para os mais diferentes destinos, desde a integração à sociedade indígena, formação de quilombos, até mesmo para missões jesuítas ou cidades localizadas na América espanhola. Entre essas cidades, destacava-se Santa Cruz de la Sierra, que abrigou significativa quantidade de cativos fugidos de Mato Grosso e Cuiabá, cuja economia se concentrava, principalmente, no plantio e cultivo da cana-de-açúcar, local ocupado preferencialmente pelos negros prófugos da América portuguesa, que detinham melhores conhecimentos sobre a cultura agrícola. Apesar dos constantes acordos entre as duas coroas para devolução de escravos fugidos para América espanhola, como Santa Cruz de la Sierra se encontrava distante dos grandes centros urbanos do Alto Peru, era frequente o não cumprimento de determinações provenientes de instâncias maiores para devolução de negros a Portugal. Essa prática possibilitava margens para uma vida possível para além do cativeiro no interior da cidade, mesmo que essa liberdade estivesse constantemente ameaçada.

    Ademais, vale salientar que essa trajetória analisada se deu no interior do seguinte recorte temporal: 1720 a 1809. A primeira data é referente ao mapa geral de importação de cativos às minas do Cuiabá e Mato Grosso, apresentado em 1773, durante o governo do Capitão-General Luiz de Albuquerque. Embora o trânsito e a presença de escravos já fossem uma realidade nas primeiras expedições junto às minas que levaram à fundação do Arraial de Cuiabá, adotamos o ano de 1720 como marco inicial pela necessidade de se atenuar a imprecisão da ausência de registros. O mapa, de maneira geral, contempla a entrada de cativos entre os anos de 1720 a 1772, dividindo esse período em quatro momentos históricos e apontando o primeiro (1720-1750) como aquele em que mais entrou cativos na região – ao todo, 10.775.¹⁰

    Entendemos a passagem por Mato Grosso e Cuiabá como ponto articulador entre os dois lados da economia Atlântica e, principalmente, como um ponto esclarecedor da agência cativa, uma vez que, ao fugir, formar quilombo ou atravessar as fronteiras políticas convencionadas entre as coroas, acabava por romper com toda uma lógica que o deslocara por milhares de quilômetros. A chegada e partida das minas do Mato Grosso e Cuiabá é fundamental para se compreender a monumental estrutura comercial interligada aos diferentes pontos do Império ultramarino lusitano, e, acima de tudo, para se ter clareza da recepção, ruptura e o vislumbrar de novos horizontes além do cativeiro.

    No que diz respeito ao período compreendido entre 1720 e 1809, momento da inserção do extremo oeste das possessões luso-brasileiras no quadro político-econômico atlântico, devemos salientar a existência de três diferentes circunstâncias: 1720-1748, 1749-1778 e 1779-1809. A primeira está relacionada ao momento em que Cuiabá e, progressivamente, o chamado Mato Grosso, são edificados e permanecem sob jurisdição da Capitania de São Paulo. Nesse contexto, africanos foram trazidos para a região por meio de monções que partiam do sudeste (porto de Araritaguaba, atual Porto Feliz) ou aleatoriamente por sertanistas. É um momento de constantes confrontos com diferentes nações indígenas, sobretudo com os Payaguás, que atuavam especificamente no caminho fluvial entre a Capitania de São Paulo e as minas do Cuiabá.

    A segunda circunstância vivida na região é simultânea aos esforços de criação da Capitania do Mato Grosso, em 1748, fundação de Vila Bela da Santíssima Trindade, que viria a ser a capital da nova Capitania (1752), e criação da Companhia Grão-Pará e Maranhão (1755), que permitiu o fluxo de cativos via Norte, pela Capitania do Grão-Pará. Com a sua extinção, em 1778, o comércio de escravos para a região voltou a ser realizado hegemonicamente pelas rotas sul.¹¹ Já na terceira circunstância, entre os anos de 1779 a 1809, com predominância da rota-sul em atividade e com o trânsito esparso via Goiás, por meio de uma estrada terrestre, o fluxo se fez com menos intensidade, verificando-se, em alguns momentos, a baixa disponibilidade de mão de obra para tocar as atividades econômicas na região. Esse também é o momento em que se observa o crescimento da atividade açucareira no final do século XVIII. No período, somente Serra Acima (atual Chapada dos Guimarães), por exemplo, já possuía 22 engenhos, seis monjolos e uma população escrava, entre africanos e crioulos, de 738 indivíduos.¹²

    O segundo marco temporal, o ano de 1809, é quando findamos nosso itinerário, junto à tentativa de uma insurreição conspirada por negros fugidos do Mato Grosso e Cuiabá, escravos e indígenas, contra as autoridades espanholas da cidade de Santa Cruz de la Sierra. A região, naquela altura, enfrentava forte crise política, sobretudo, a partir das invasões napoleônicas e destituição do rei em território espanhol. Assim, formava-se uma crise de legitimidade que abria espaço para germinação de ideias de independência. Cativos e negros livres¹³ que se encontravam na cidade estavam atentos aos acontecimentos e conscientes de que a liberdade só seria assegurada pela própria ação; decidiram-se por tentar a tomada da cidade entre os dias 15 e 20 de agosto de 1809. A análise desse episódio demonstra não apenas a constante busca por liberdade, mas também a participação determinante nos acontecimentos políticos que se passavam no mundo ibérico.

    A despeito de todas as especificidades espaciais e temporais que discriminamos, devemos ressaltar aquilo que une as duas pontas, ou os dois sertões,¹⁴ de Benguela e o do oeste luso-brasileiro: a economia atlântica e a atuação de agentes da coroa portuguesa. A primeira é composta por numerosos agentes, desde funcionários da coroa portuguesa, comerciantes europeus ou americanos, militares, chefes políticos africanos (os sobas),¹⁵ até indígenas – como os Payaguás, que, em suas incursões, ao capturarem africanos, procuravam vendê-los a comerciantes de Assunção, na América espanhola. Por vários pontos, por um imenso trajeto, essa economia atlântica englobou diferentes personagens, que possuíam os mais variados objetivos, que poderiam diferir entre a acumulação de riquezas, poder ou a própria sobrevivência.

    A atuação dos agentes da coroa portuguesa, tanto na América dos povos indígenas como nas territorialidades africanas, obedecia à mesma lógica: acumulação de riquezas para coroa, alianças com chefes locais e guerra justas para aqueles que não se submetessem ou evitassem o contato com o mundo atlântico que chegava. Para africanos, de acordo com teorias raciais que se desenvolviam, estava reservado o cativeiro; aos indígenas, negros da terra, o cativeiro, o aldeamento (conforme a edição do Diretório, em 1757) ou a morte.

    Em suma, investigar o percurso dos Homens de Ferro e Mulheres de Pedra, aqueles que resistiram às penosas condições da travessia Atlântica e cativeiro, ao longo de todo esse circuito que conectava diferentes sujeitos, interesses e processos históricos, é elucidar a própria agência humana, o papel ativo de africanos escravizados que acabava por forçar a alteração de estratégias e, em última instância, frustrava as expectativas coloniais. Em ambos os lados do Atlântico, esperava-se a assimilação pacífica e resignada, o que não aconteceu. As fugas, confrontos, readaptações identitárias e levantes demonstram insistentemente a direção contrária do escravismo.

    ***

    A trajetória que nos propormos a acompanhar no presente livro está dividida em seis capítulos: os dois primeiros referentes ao continente africano; os três seguintes à chegada, emprego e ruptura com a sociedade escravista na América portuguesa; e o último pertinente à fuga e vida na América espanhola. Assim, no primeiro capítulo, intitulado "A chegada do mundo Atlântico e os povos do hinterland de Benguela: entre os Ovimbundus e Imbangalas (século XVII-1720), apresentamos uma abordagem geral da chegada lusitana em Benguela, ao sul de Angola, e sua expansão crescente ao leste do território. O capítulo está subdividido em duas seções, sendo a primeira responsável por apresentar o espaço e os povos que o habitavam (os chamados Ovimbundus e Imbangalas), de acordo com a documentação analisada. Na mesma sessão são arroladas informações sobre a organização política, o caráter militarista e a expansão portuguesa crescente. A segunda seção, por sua vez, trata da percepção acerca dos jagas-Imbangalas, povos militarizados que migraram para a região analisada e se miscigenaram com os Ovimbundus. Entre as principais características que serão destacadas nesse processo de hibridização, destaca-se a recorrência da instituição denominada kilombo, que na região significava campo de iniciação militar".

    No segundo capítulo – Do hinterland à costa: o espaço e os protagonistas na produção de escravos em Benguela (1730-1828) –, tratamos, principalmente, dos mecanismos comerciais que permitiram a realização do comércio de escravos do porto de Benguela para o território luso-brasileiro. O capítulo também está subdividido em três seções: a primeira trata das estimativas de comércio de escravos à luz das recentes produções historiográficas; a segunda discorre sobre a organização do comércio, a partir das Caravanas comerciais, variadas redes comerciais, personagens e instalações portuguesas; e a última traz uma reflexão sobre as guerras justas junto à produção de escravos no hinterland de Benguela, a partir do complexo quadro de alianças e perspectivas de vários sujeitos envolvidos em conflitos que se deram entre as décadas de 1720 a 1730 nos arredores do presídio de Caconda, importante entreposto comercial de escravos.

    A partir do capítulo 3, passamos a acompanhar a trajetória de africanos escravizados nas Américas. Desse modo, o terceiro capítulo, intitulado Devassa no sertão: um panorama da instituição escravista na fronteira do território luso-brasileiro (1720-1809), parte de uma expedição organizada em 1795, para destruição de um quilombo e, por meio dela, assume a proposta de se pensar a instituição escravista de maneira geral na região – desde a chegada dos primeiros cativos, das rotas percorridas, até as assimilações culturais, acima de tudo, entre indígenas e cativos africanos bantus.

    No quarto capítulo, cujo título é A vida para além da sociedade escravocrata: o trânsito entre indígenas, espanhóis e o retorno forçado, apresentamos o percurso daqueles que se dissociaram da escravidão por meio das fugas, que se deram com grande frequência pelos mais diferentes caminhos. O capítulo, de maneira geral, está dividido em três seções, que tratam, respectivamente, do inevitável contato com indígenas que habitavam a região, da fuga para as possessões espanholas e do retorno à sociedade escravista, sob circunstâncias forçosas.

    No quinto capítulo, intitulado O que atravessou o Atlântico: vida e morte do Quilombo Grande (1730-1795), apresentamos uma reflexão em torno do maior e mais famoso quilombo do Mato Grosso e Cuiabá, chamado Quariterê ou Quilombo Grande. A partir de relatos etnográficos realizados pelo antropólogo Max Schmidt sobre a cultura aruaque e os Pareci-Cabixis, junto a documentos históricos que buscaram descrever a organização econômica e política do quilombo, observamos intensos intercâmbios entre aquilombados e indígenas que habitavam a região do vale do Guaporé; assim como a aplicação de possíveis noções políticas Ovimbundus-Imbangalas no que tange à organização, principalmente no que diz respeito à flexibilização para a adesão de novos integrantes.

    Finalmente, no sexto e último capítulo da obra, apresentamos a conspiração tramada na aliança entre negros livres, cativos e indígenas na cidade de Santa Cruz de la Sierra, em agosto de 1809. O capítulo em si está dividido em quatro seções, sendo a primeira dedicada a apresentar o lugar da mão de obra escrava em Santa Cruz de la Sierra e Alto Peru; a segunda, concentrada na conspiração negro-indígena; a terceira, referente ao malogro da rebelião, possíveis alianças com setores que começavam a amadurecer a ideia de independência no Alto Peru e o destino dos conjurados aprisionados; e, por fim, a última, dedicada a pensar as diferentes estratégias lançadas por cativos na região para uma vida além do cativeiro, desde formação de quilombos a disputas na Justiça.

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    A CHEGADA DO MUNDO ATLÂNTICO E OS POVOS DO HINTERLAND DE BENGUELA (SÉCULO XVII-1720)

    [...] Nossos pais viviam numa grande planície junto ao mar...

    Tinham animais e culturas. Tinha salinas e bananeiras...

    De repente viram sobre o mar surgir um grande barco...

    Este barco tinha asas muito brancas, brilhantes como facas...

    Os homens brancos saíram da água e ficaram imóveis na praia...

    Os nossos antepassados tiveram medo. Disseram que eram os ‘vumbis’, os espíritos que regressam...

    Repeliram-nos para o mar com frechadas...

    Mas os ‘vumbis’ vomitaram fogo com um barulho de trovão...

    Muitos homens foram mortos. Muitos fugiram. Outros ficaram junto do grande mar...

    Então os homens brancos desembarcaram de novo. Pediram galinhas e ovos. Davam tecidos e missangas...

    Pediram ouro, marfim, escravos!¹⁶

    A compreensão do Outro possivelmente seja o elemento mais relevante para se entender o comércio atlântico de escravos e o papel desempenhado por diferentes sujeitos. Entender o ponto de vista do comerciante de escravos é tão importante quanto perceber o possível significado atribuído à atividade pelo chefe africano – que se opôs ou negociou com europeus –, o pombeiro ou ao próprio africano escravizado. Assim, partindo dessa necessidade, nas últimas décadas têm se realizado investigações não somente centradas em fontes oficiais – estas que em larga medida apresentam a leitura dos processos históricos a partir de concepções não africanas –, mas em relatos orais, descrições etnológicas e de outras memórias, como aquelas produzidas por religiosos ou militares. Contudo, trechos que demonstram as impressões africanas durante os primeiros contatos com o homem europeu, como o que está transcrito no início do capítulo, ainda são raros e escassos.

    Adaptado de uma tradição oral dos povos Bapende, que habitavam o atual território do Congo, foi transcrito e publicado por José Mena Abrantes, na obra Ana, Zé e os escravos,¹⁷ em que aborda o exato momento de chegada das frotas portuguesas na costa africana durante o século XV. Embora esteja relacionado a um contexto específico, de maneira geral, remete-nos às primeiras impressões africanas acerca do homem europeu que chegava em grandes barcos: pensavam que eram espíritos, e por isso deveriam ser repelidos (versos 7 e 8). Após os primeiros ataques dos Bapendes, motivados por certa confusão ao que era completamente desconhecido, veio a reação portuguesa, que culminou em mortes, exploração dos recursos naturais e, finalmente, em escravidão.

    O capítulo que se segue, portanto, constitui uma apresentação do mundo existente no atual sul da Angola, no momento da chegada e expansão lusitana, assim como os diferentes lugares ocupados por africanos, para, mais adiante, refletirmos a possível percepção africana de todo esse processo. Grosso modo,

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