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O Jardineiro de Napoleão: Alexander Von Humboldt e as Imagens de um Brasil/América (Séculos XVIII e XIX)
O Jardineiro de Napoleão: Alexander Von Humboldt e as Imagens de um Brasil/América (Séculos XVIII e XIX)
O Jardineiro de Napoleão: Alexander Von Humboldt e as Imagens de um Brasil/América (Séculos XVIII e XIX)
E-book371 páginas4 horas

O Jardineiro de Napoleão: Alexander Von Humboldt e as Imagens de um Brasil/América (Séculos XVIII e XIX)

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Sobre este e-book

Os estudos aqui reunidos, organizados em torno do interesse pela iconografia de viajantes e pelas experiências de deslocamento pelo largo continente americano, tratam, sob diferentes perspectivas, da prática da viagem, do exercício da observação e do registro, das redes de sociabilidade e dos materiais e técnicas empregados. Fazem emergir as idiossincrasias dos espaços percorridos e chamam atenção sobre as apropriações historiográficas das experiências de viagem. Abordam, enfim, uma gama bastante diversificada de temas, provocando corações e mentes dos apaixonados pelo tópico das viagens e dos discursos produzidos a partir delas. Iniciativa louvável e de grande utilidade para estudiosos mais ou menos experientes, unidos pelo desejo constante de autoconhecimento e reconhecimento dos discursos sobre o "Brasil/América".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de nov. de 2019
ISBN9788547339234
O Jardineiro de Napoleão: Alexander Von Humboldt e as Imagens de um Brasil/América (Séculos XVIII e XIX)

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    O Jardineiro de Napoleão - Thiago Costa

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Agradecimentos

    Pela liberação para o uso das imagens que reproduzimos aqui, agradecemos ao Museu Histórico Nacional e ao Museu Dom João VI da Escola de Belas Artes/UFRJ, Brasil; ao Stadtmuseum München, Museu da Cidade de Munique; ao Kunstsammlungen und Museen Augsburg, Coleções de Arte e Museus, da cidade de Augsburgo ‒ ambos na Alemanha; e ao Kunstimuuseum, KUMU Art Museum, da cidade de Tallinn, na Estônia. Agradecemos também a Maria Isabel Giraldo, Pablo Santamaría e Pablo Diener, pelo auxílio nas traduções dos textos em espanhol e alemão.

    Então, monsieur, você coleciona plantas?... Minha esposa também.

    Únicas palavras de Napoleão para Humboldt, em 1804.

    Prefácio

    No amplo quadro da história da humanidade, capítulo à parte está reservado aos eventos da expansão moderna europeia e aos desdobramentos que tal movimento iria provocar, dentro e fora do Velho Continente. Ainda que os deslocamentos sejam prática humana desde tempos mais remotos, é incontestável que o movimento sistemático das potências europeias em direção ao Oriente e ao Ocidente, verificado a partir do século XVI, adquire vulto destacado nesse panorama. Em grande parte, isso se deve ao fato de que, a partir de então, a história seria representada e visualizada de forma inédita, qualitativa e quantitativamente falando.

    Entre os séculos XVI e XIX, mudanças significativas marcaram os encontros entre os povos, no enorme tabuleiro em que se transformou o globo terrestre. No que se refere, especificamente, à constituição do corpus documental que registrou esses encontros, podemos citar alguns marcos importantes, tais como: o surgimento da imprensa e a evolução das técnicas tipográficas; o enriquecimento das Cortes e a organização dos Estados, bem como seu reflexo no âmbito da cultura, da ciência e das artes; a revolução nas técnicas agrícolas e industriais; o incremento do comércio e, por fim, a evolução da ciência náutica (Bourguet, 1997), que permitiu deslocamentos cada vez mais longínquos e demorados. A economia em crescente processo de industrialização, o comércio a definir estratégias políticas de aproximação e alianças, os governos financiando viagens e pesquisas em paragens distantes, a imprensa ajudando a fazer circular informações e os produtos desses deslocamentos, enfim, uma lista numerosa de aspectos que se relacionam, em maior ou menor grau, com o objeto desta coletânea: a iconografia de viajantes.

    Antes de entrar no debate sobre sua apropriação pelos estudiosos, algumas palavras sobre a sua constituição enquanto materialidade se fazem necessárias. Relatos de viagem, em suas mais diversas configurações, são registros de experiências vividas e elaboradas mentalmente em função de intenções particulares, projetos coletivos e condições materiais específicas. Diários, cartas, relatórios, narrativas escritas e imagéticas, dentre um conjunto tipológico diverso, materializavam as experiências vividas pelos viajantes que, por motivações várias, participavam dos empreendimentos europeus rumo aos quatro cantos do mundo. A partir do século XVI, um grande número de publicações circulou nos meios intelectuais europeus, atendendo à curiosidade de muitos, servindo aos projetos de dominação de outros e alimentando as percepções e reflexões a respeito dos encontros entre culturas distintas.

    O que hoje identificamos como literatura de viagem¹ é, de fato, um complexo gênero literário que, como tal, compõe-se de registros feitos em/a partir de situações de viagem, seja pelo próprio viajante ou por intérpretes autorizados². Tomando como marcos temporais o período entre os séculos XVI e XIX, destacamos que esse corpus, composto por registros textuais e imagéticos, reflete concepções particulares de mundo, ao mesmo tempo em que contribuiu para reforçá-las. Das percepções movidas pelo sentido do maravilhoso e do extraordinário, típico dos registros elaborados no século XVI, passamos no século XIX às narrativas de caráter mais político e pragmático. O caminho, porém, para essa transformação, foi lento e complexo, assim como é complexa a tarefa de entender esse corpus em todos os seus aspectos: produção, circulação e recepção. Daí que a iniciativa deste volume deva ser celebrada pelos estudiosos e interessados pelo tema, uma vez que apenas estudos pontuais podem fazer avançar as interpretações a respeito desse vasto universo documental, seja ele composto por relatos de viajantes estrangeiros ou habitantes locais, dedicados à inquirição de territórios e gentes.

    Os artigos aqui reunidos tratam, assim, de experiências de deslocamento e indagação. Privilegiou-se o continente americano e a figura de Alexander von Humboldt, seja como promotor de uma nova visualidade das terras americanas, como impulsionador das relações entre arte e ciência ou como homem de letras, ativo nos círculos eruditos europeus. Privilegiou-se, ainda, o papel das imagens e a constituição de uma arte que, gestada nas experiências de viagem, teria papel fundamental na definição das culturas visuais no continente.

    A constituição de um corpus elaborado por artistas estrangeiros, bem como por profissionais de diversas áreas que acabaram por deixar registros visuais de suas estadas no território americano, permitiu que se configurasse uma nova tipologia de imagens: a iconografia de viajantes. Durante muito tempo, sua abordagem esteve predominantemente marcada pelo evidente aspecto documental desse material,³ produzido pelos viajantes que circularam por distintas áreas do território, querendo saber, querendo ver... Nessa chave, escapava a muitos investigadores o seu caráter cultural de representação, pensando aqui no sentido do termo em Roger Chartier (CHARTIER, 1990), para quem representação é um discurso sobre a realidade. Extraía-se das imagens deixadas pelos viajantes, sobretudo, informações dadas como objetivamente elaboradas, atribuindo e reforçando a natureza documental desse conjunto de composições. Aos poucos, porém, a partir de estudos realizados nas últimas décadas, foram ficando evidentes os limites dessa abordagem e ampliadas as maneiras de explorar tão complexo acervo. Lentamente, o vasto e diversificado universo da produção dos viajantes foi insuflado por novos ares, marcados pela preocupação dos estudiosos em explorá-lo a partir dos pressupostos epistemológicos e marcos teórico-metodológicos próprios às suas áreas de investigação.⁴ Compreendidos, a partir, sobretudo, das reflexões promovidas pelos estudos culturais, como dispositivos discursivos, os registros de viajantes são então reconhecidos como lugares de enunciação (FOUCAULT, 1996), exigindo que lhes seja dada a palavra.

    No caso brasileiro, a inquirição mais ampla e sistemática desse corpus há que ser creditada ao emblemático projeto dirigido por Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes (BELLUZZO, 1994). A partir dessa iniciativa, a iconografia de viagem tem seguidamente despertado a atenção de pesquisadores cada vez menos contaminados por sua natureza documental strictu sensu e mais voltados à percepção artístico-estética desses registros e à sua condição de dispositivos discursivos. Pouco a pouco, nota-se que esse corpus deixa de ser visto prioritariamente como criações que dão a ver realidades, passando a se constituir enquanto realidades que se dão a ver. No âmbito local, uma série de exposições e publicações divulga e discute sistematicamente esse conjunto de imagens a partir da década de 1990. Exemplar notável dentre elas, O Brasil redescoberto (MARTINS, 1999) mostra apresentada no Paço Imperial em 1999, com curadoria geral de Carlos Martins e a colaboração de Dawn Ades e Jorge Coli, traduz esse novo cenário. Seu catálogo apresenta densas reflexões, elaboradas por especialistas a partir dessa iconografia.⁵ A mesma densidade de análises seria, a partir de então, identificada em grande parte dos estudos na área.

    Abordada por diferentes campos disciplinares – História, História da Arte, Antropologia, Sociologia, Estudos Visuais, Estudos Literários –, a iconografia de viajantes, assim como os relatos escritos, deixa de ser tomada como instrumento para acessar realidades históricas específicas, sendo essas obras cada vez mais reconhecidas como construtos culturais.⁶ Elaborações capazes de falarem de si, ao mesmo tempo em que falam do outro, seja este um território, um povo, um hábito cultural ou a natureza.

    No que tange ao recorte espacial definido na presente coletânea, qual seja, a iconografia de um Brasil/América, vale destacar alguns pontos. Desde o início dos tempos modernos, a América ofereceu aos europeus a possibilidade de buscar, nesse novo espaço, a realização dos mais diferentes projetos, desde aqueles relacionados com a busca do Eldorado, passando pelas projeções do imaginário medieval, atravessando o empenho científico dos séculos XVII e XVIII para, por fim, alcançar os ideais civilizadores prontos para serem exportados pelas experientes nações europeias. A América, ou as Américas, ofereciam-se, assim, como campo fértil, onde jamais deixaram de atuar conjuntamente fatores externos e internos, a despeito de uma tradição que insistiu, por muito tempo, na condição aculturada deste largo continente. Tais reflexões estendem-se ao campo da experiência artística, lugar onde ficam evidentes as intrínsecas relações entre saberes que chegam e saberes que aqui estavam, entre homens, ideias e práticas que foram paulatinamente afirmando-se e reconfigurando-se, mediados pelos complexos processos de ocupação e organização do espaço americano, desde a sua configuração nos quadros coloniais até o contexto dos movimentos de autonomização política, potencializados ao longo do século XIX.

    Aos artistas estrangeiros que circularam pelo continente entre o final do século XVIII e ao longo de grande parte do XIX, o espaço americano representava, em grande medida, a superfície movediça onde velhos padrões poderiam ser deixados de lado, novas experiências poderiam ser vividas, identidades poderiam ser reconstruídas, padrões poderiam ser reinventados.⁷ Para muitos, foi a América a terra do recomeço, da sua própria reinvenção, possibilidade a que submetiam muitas vezes os projetos de modernidade de que eram, a princípio, portadores. Nesse sentido, as experiências abordadas nos artigos aqui reunidos nos permitem formular algumas indagações. Entre elas, de que maneira os intérpretes desses encontros inventaram os contextos visitados e, ao mesmo tempo, reinventaram-se? Como confrontaram os seus saberes e crenças com o repertório que aqui encontraram? Quais os mecanismos de aproximação e apropriação do universo observado? Em que medida os produtos de suas viagens e experiências modificaram o cenário intelectual e material, seja nos espaços visitados ou em seus países de origem?

    Se, por um lado, as temáticas abordadas pelos autores deste volume despertam tais questionamentos, ao mesmo tempo oferecem caminhos para solucioná-los. Sinal evidente nesse sentido é o questionamento a respeito de categorias conceituais para tratar da produção dos viajantes na América. No artigo que abre esta coletânea, Alexander von Humboldt e a arte de viajantes, Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, seguindo a profícua tradição que já instituíram no âmbito de estudos sobre viajantes,⁸ retomam o papel de Alexander von Humboldt para a criação de uma escola de pintores viajantes, considerada pelos autores como uma das aspirações do naturalista alemão. Mais uma vez,⁹ creditam a Humboldt a responsabilidade por ter elevado a arte de viajantes ao estatuto de um gênero das artes plásticas, o que é, em si, um dos temas mais instigantes e relevantes para os debates sobre a iconografia de viagem no momento. De particular interesse no artigo que ora apresentam, no entanto, é a investigação sobre o gosto artístico de Humboldt, realizada a partir da análise da coleção que foi a leilão após a sua morte. As reflexões dos autores abrem novos caminhos para o estudo de temas relacionados a viagens, relatos e imagens, bem como às teorias estéticas no contexto das viagens de Humboldt.

    A primeira parte deste volume traz, ainda, os artigos de Sonia Gomes Pereira, Thiago Costa e Ariadne Marinho, e Christin Conrad. Direta ou indiretamente, esses estudos abordam mais uma das indagações a respeito do grande tema da iconografia de viagem, leitmotiv dessa coletânea, e que consiste nas relações entre a produção visual dos viajantes e o gênero da pintura de paisagem. Recentemente, em texto introdutório ao catálogo da exposição Paisagem nas Américas: pinturas da Terra do Fogo ao Ártico, os curadores explicitam essa relação, ao destacar o papel da iconografia de artistas-viajantes que deram forma às escolas nacionais de pintura de paisagem em todas as Américas (BROWNLEE; PICCOLIYARIK, 2016, p. 14). A circulação de artistas pelo continente e sua estreita participação nos projetos emancipatórios ocorridos nas décadas iniciais do século XIX deve, portanto, ser reconhecida e investigada, em diferentes âmbitos. Desde a visualidade¹⁰ da terra e dos homens, promovida pelos mais diferentes tipos de registros, até a instalação de escolas de ensino artístico ou ao exercício particular de seus ofícios, os artistas-viajantes ocupam lugar incontornável na história das jovens nações americanas.

    É nesse sentido, de resto, que opera Sonia Gomes Pereira, estudiosa da arte brasileira no século XIX e da tradição artística acadêmica, no artigo intitulado Repensando a pintura de Paisagem no século XIX: o caso da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nele, ainda que não seja seu foco específico, a autora referenda o papel da pintura de paisagem na constituição das identidades nacionais americanas, ao mesmo tempo em que chama atenção para um importantíssimo debate no âmbito da Academia Imperial das Belas Artes (Aiba), qual seja, o da polêmica em torno de seu engessamento didático e pedagógico. Destaca, ainda, a estreita relação entre artistas e naturalistas no âmbito acadêmico, confirmando que o debate sobre a pintura de paisagem na Academia está diretamente relacionado à tradição de registro dos pintores viajantes e da atuação de alguns deles no interior da instituição.

    Ao tratar das relações entre Debret, Humboldt e as Ciências Naturais em Debret, Humboldt e o Brasil. Arte e ciência no Voyage Pittoresque et historique, Thiago Costa e Ariadne Marinho dão continuidade aos debates em torno do papel da iconografia de viajantes para a constituição de uma tradição artística no continente. Investigando os volumes da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret, nos quais identificam o projeto do autor de unir arte e ciência, Costa e Marinho pretendem demonstrar como a tradição científica está presente na produção de um dos artistas mais influentes da história da Aiba. Vale destacar, nesse sentido, a provocativa argumentação, construída pelos autores, de uma linhagem de pensamento científico, identificável nos volumes de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, qual seja: Alexander von Humboldt ‒ Jean-Theodore Descourtilz – Jean-Baptiste Debret.

    Questões muito relevantes, indiretamente relacionadas aos estudos mencionados, foram abordadas por Christin Conrad no artigo O caso de Rugendas: lembranças da América e amizade com Julie Hagen. Ao focalizar um aspecto idiossincrático da vida de Johann Moritz Rugendas, a autora dá visibilidade a uma questão pouco contemplada nos estudos sobre os artistas europeus que circularam pelo Brasil/América e que tiveram uma atuação reconhecida nos espaços sociais e artísticos locais: a rotina desses personagens após o seu retorno à Europa. Vale mencionar, ainda, a atenção dada por Conrad à diferenciação entre Rugendas-cronista e Rugendas-artista, tema de interesse particular para as análises de viajantes que, como Debret e Rugendas, tiveram uma atuação destacada nesses dois âmbitos.

    A segunda parte desta coletânea reúne trabalhos que versam sobre a relação entre arte, ciência e representação. Questões metodológicas e epistemológicas, bem como análises pontuais de obras e autores, oferecem ao leitor a possibilidade de compreender a produção de viajantes como dispositivos discursivos.

    O ato de viajar, experimentar, sentir e produzir sentido a partir dessas experiências, seja por meio de relatos escritos ou imagéticos, motiva os estudos de Elisa Garrido e Juan Ricardo Rey Márquez. Em Descrever, registrar e sentir: ciência e arte nas vistas orientais, Elisa Garrido explora o papel das imagens no contexto das expedições científicas do século XVIII ao Oriente. Ao desenvolver o argumento de que a iconografia produzida por artistas viajantes na Índia respondia, no século XVIII, à demanda da burguesia intelectual europeia e que o olhar dos artistas estava, segundo a autora, determinado pelos círculos artísticos ingleses, chama atenção sobre as condições de produção dos relatos de viagem, outro item de suma importância na análise desse corpus documental. Vale destacar ainda, no artigo de Garrido, a atenção dedicada a William Hodges e ao papel que o artista inglês, famoso por sua participação na segunda viagem de James Cook ao Oceano Pacífico como artista de expedição, teve na formação de Humboldt. Registra, a esse respeito, que os estudos sobre o naturalista alemão pouco mencionam os contatos que Humboldt teria tido com artistas do seu círculo, antes de efetuar suas próprias viagens, indicando mais uma lacuna a ser preenchida por estudos futuros.

    A questão da epistemologia visual alimenta as reflexões de Juan Ricardo Rey Márquez em Leitura, experiência e visualidade. Problemas de epistemologia visual na Real Expedição Botânica do Novo Reino de Granada. Nesse artigo, o autor acompanha as ações – individuais e coletivas – de José Celestino Mutis y Bossio, naturalista que dirigiu os trabalhos da expedição científica espanhola e teve especial atuação na defesa da imagem para a construção do conhecimento científico. Juan Rey Márquez realiza acurada análise documental, produzindo uma narrativa histórica que acompanha a elaboração de uma epistemologia visual multisiana. Vale destacar a abordagem do autor, que privilegia as ações individuais de Mutis e sua inserção na comunidade científica da época, recuperando para a História o agenciamento de indivíduos que operam no âmago dos Estados imperiais, dividindo com os monarcas os resultados das iniciativas de expansão colonial, mas geralmente ofuscados pela historiografia.

    O estudo de Katia Hartmann, O viajante Bartolomé Bossi e seu legado na América do Sul, ilustra a questão da circulação de estrangeiros em diferentes regiões americanas e seu papel para a construção de representações do continente. O artigo se dedica a apresentar a produção intelectual de Bossi, a fim de identificar sua colaboração para o conhecimento científico dessas regiões. Mais especificamente, aborda a viagem do genovês Bossi ao Mato Grosso, em 1862, da qual resultou um livro, publicado em 1863, composto por textos e imagens. Entre as questões sugeridas por Hartmann nesse estudo estão o uso e as funções das imagens nos relatos de viagem e a classificação dos viajantes do século XIX.

    O papel da iconografia nos relatos científicos é também a preocupação de Nya Kawakami, em Natureza e cultura nas imagens da Comissão Científica do Império: a carnaúba como emblema regional. Analisando os resultados da viagem organizada pela Comissão Científica do Império, criada em 1856, indaga-se a autora sobre o papel da iconografia para os resultados pretendidos pela expedição, primeira iniciativa nacional dessa natureza. Promovida e apoiada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pelo próprio Imperador, a viagem da Comissão Científica do Império visava a corrigir erros supostamente cometidos por naturalistas estrangeiros e, nesse sentido, o artigo de Kawakami assume lugar especial nesta coletânea, ao tratar de iconografia elaborada no âmbito de uma iniciativa nacional, ainda que atravessada pelas experiências anteriores protagonizadas por viajantes estrangeiros.

    Os artigos de Igor Paiva e Igor Lima abordam a temática da representação dos indígenas nas terras brasileiras e da territorialidade dessas populações. Em A antropologia de Carl F. von Martius a partir do ensaio ‘Natureza, doenças, e remédios dos índios brasileiros’ (1844), Paiva dá destaque ao interesse específico do cientista bávaro pelo estudo das plantas medicinais brasileiras. Interessante é o argumento de que o estudo teria dado vazão à abordagem antropológica de von Martius, que associou o estudo das plantas medicinais e dos saberes médicos indígenas com a noção de raça e meio ambiente. Mais acostumados a ler sobre von Martius da Viagem ao Brasil, esse artigo certamente aumenta nosso repertório a respeito do naturalista alemão, além de novamente chamar atenção para a rede de sociabilidade construída em torno do interesse científico no século XIX.

    Igor Lima, por sua vez, faz novo uso dos relatos do nobre naturalista Maximilian zu Wied-Neuwied, que esteve no país nos anos imediatamente anteriores a von Martius. Seu interesse está voltado para as representações cartográficas dos espaços indígenas, abordadas no artigo Cartografia de um conflito: representação visual e territorialidade indígena em Wied-Neuwied. Nele, o autor explora especificamente um registro cartográfico, intitulado Ostküste von Brasilien (Costa Leste Brasileira), incluído nas versões alemãs de 1820 e 1821 de Reise nach Brasilien. Merece atenção especial no artigo o destaque dado aos esforços de Wied-Neuwied em associar registros textuais e visuais em seu relato.

    O artigo que fecha esta coletânea dialoga diretamente com as questões tratadas no volume. Em A Comissão Científica do Pacífico no Brasil (1862), Miguel Angel Puig Samper apresenta e analisa os objetivos e resultados das diferentes seções da Comissão Científica do Pacífico, parte da Expedición al Pacífico (1862), empreendimento espanhol de caráter diplomático-militar, última grande expedição espanhola ao continente. Mais especificamente, descreve as atividades da Comissão em Salvador, no Rio de Janeiro, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, destacando o interesse de seus membros pela descrição das populações indígenas e pela mestiçagem no Brasil. No que tange à relação dessa expedição com uma iconografia de viagem, é preciso citar a presença, dentre seus membros, de um desenhista-fotógrafo, Rafael Castro Ordóñez, que produziu uma grande coleção de fotografias a partir das viagens da Comissão.

    Os estudos aqui reunidos, organizados em torno do interesse pela iconografia de viajantes e pelas experiências de deslocamento pelo largo continente americano, tratam, sob diferentes perspectivas, da prática da viagem, do exercício da observação e do registro, das redes de sociabilidade e dos materiais e técnicas empregados. Fazem emergir as idiossincrasias dos espaços percorridos e chamam atenção sobre as apropriações historiográficas das experiências de viagem. Abordam, enfim, uma gama bastante diversificada de temas, provocando corações e mentes dos apaixonados pelo tópico das viagens e dos discursos produzidos a partir delas. Iniciativa louvável e de grande utilidade para estudiosos mais ou menos experientes, unidos pelo desejo constante de autoconhecimento e reconhecimento dos discursos sobre o Brasil/América.

    Valéria Lima

    Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2003), é autora da obra J.-B. Debret - Historiador e pintor (Campinas, 2007).

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    Humboldt como modelo 24

    Thiago Costa e Ariadne Marinho.

    cap 1

    ALEXANDER VON HUMBOLDT E A ARTE DE VIAJANTES 32

    Pablo Diener/Maria de Fátima Costa

    cap 2

    Repensando a pintura de paisagem no século XIX:

    o caso da academia imperial de belas artes do

    Rio de Janeiro 52

    Sonia Gomes Pereira

    cap 3

    Debret, Humboldt e o Brasil Arte e ciência no

    Voyage pittoresque et historique 66

    Thiago Costa/Ariadne Marinho

    cap 4

    Ocaso de rugendas: lembranças da

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