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Viver da Morte
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E-book109 páginas1 hora

Viver da Morte

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Sobre este e-book

No nosso país, existem mais de 1000 funerárias e o negócio lutuoso emprega 6000 pessoas, mas quase ninguém conhece os bastidores da indústria dos óbitos. Serão os agentes funerários aproveitadores ou uma ajuda preciosa num momento difícil? Qual o custo médio de um funeral? Que produtos e serviços existem no mercado? Há monopólios nesta área? E como é lidar diária e profissionalmente com a morte? Dos aspectos caricatos às histórias que ninguém quer contar, este é o retrato de um sector desconhecido e desconcertante, que revela o lado humano, mas também empresarial, de Viver da Morte em Portugal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de set. de 2018
ISBN9789898943026
Viver da Morte
Autor

Rita Canas Mendes

Rita Canas Mendes é formada em Filosofia e gosta tanto de estar viva que dá por si a pensar na morte com alguma frequência. Ao longo dos anos, tem lido bastante sobre o tema, que continua a intrigá-la. Além deste, possui muitos outros interesses, que vão da tradução literária à tipografia artesanal. Este é o seu quarto livro, havendo outras obras em preparação

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    Viver da Morte - Rita Canas Mendes

    Pó, mas ainda assim…

    Como quase toda a gente, já fui a mais funerais do que gostaria. E em praticamente todos eles se passou qualquer coisa de insólito. Vendo bem, quem não tem histórias de funerais? Sendo ocasiões solenes, a probabilidade de acontecer algo trágico ou cómico dispara. Há sempre um padre que aproveita o sermão para criticar as escolhas de guarda-roupa dos enlutados, ou dois coveiros alcoolizados que resmungam palavrões enquanto abrem uma nova sepultura depois de se terem enganado ao cavar a primeira, ou um ente querido que era ateu militante mas que acaba velado numa igreja, ou um par de cangalheiros que contam anedotas à porta da capela, ou ramos de flores caríssimos atirados à bruta pelos funcionários para a parte de trás da carrinha funerária, e assim por diante. Não julgue o leitor que invento ou exagero. Tudo isto são histórias reais, passadas em cerimónias fúnebres no Norte, no Centro e no Sul do país, a que eu ou alguém próximo assistiu.

    Num dos funerais a que fui nos últimos anos, em Lisboa, correu tudo com tranquilidade e os representantes da agência portaram-se com eficiência e discrição. Porém, na capela mortuária, o logótipo da funerária estava por todo o lado. Para onde quer que nos virássemos, lá estava ele, em canetas, em cartões-de-visita, em folhetos, numa grande faixa à entrada. Senti-me num evento de team building. E havia coffee break, igualzinho ao de uma conferência, café de cápsulas, água engarrafada e biscoitos secos comprados no supermercado. Estávamos perante um «serviço completo» e muita publicidade dentro das instalações religiosas. Fiquei a matutar que negócio haveria entre a paróquia e a dita agência. Além disso, todas aquelas cortesias deviam sair caras. Um facto da vida de que cedo tomamos conhecimento e que aceitamos sem questionar é que um funeral pode custar tanto como um casamento, só que sem o DJ e a cascata de camarão.

    Depois desse funeral, e à luz dos restantes a que já tinha ido, comecei a interrogar-me: quanto custam as exéquias, em média, e porquê? Quanto custa uma campa? A pessoa é cremada com o caixão? Se sim, separam-se as cinzas da pessoa das do caixão? E se eu não quiser levar as cinzas comigo, o que lhes acontece? É sempre necessário haver um agente funerário, ou um cidadão pode proceder ao próprio funeral e enterro sem esse mediador? Quanto ganham as igrejas com os velórios e as missas? O que é mais ecológico: cremar ou enterrar? Quantas agências funerárias há no país? O mercado está a crescer? As funerárias são honestas ou aproveitam-se do sofrimento e da desorientação das pessoas? Como é uma agência funerária por dentro? Os agentes funerários tornam-se insensíveis à morte e ao sofrimento?

    Nos anos que se seguiram, descobri o ensaio de Jessica Mitford que daria origem à sua obra mais célebre, The American Way of Death (de 1963, o livro denuncia as más práticas do sector funerário dos Estados Unidos); encomendei Smoke Gets in Your Eyes, de Caitlin Doughty, que relata a sua experiência profissional numa agência funerária norte-americana; e sublinhei profusamente The Undertaking, do poeta e agente funerário Thomas Lynch. Por interesse e por acaso, tenho lido bastante sobre o tema do envelhecimento, da morte e do sector fúnebre. No entanto, as fontes são quase sempre estrangeiras. Fazem falta abordagens nacionais a esses temas. Sem dúvida que há notícias de jornal e algumas teses de Sociologia, História e Antropologia relacionadas com o assunto. Temos legislação ao dispor e, até, publicações da área que levantam um pouco o véu. Mas onde encontrar informações concretas que tracem um retrato do actual panorama e mostrem o que tem o cidadão português ao seu dispor? A curiosidade foi aumentando e, como não encontrei nenhum livro com as respostas que procurava, decidi escrevê-lo.

    A morte é um dos grandes temas da vida. Pensar numa coisa é necessariamente pensar na outra. Mas o leitor não se assuste, este não é um livro sobre A Morte. Este é um livro sobre a morte, com minúsculas, o acontecimento corriqueiro que se dá todos os dias à nossa volta e do qual alguém tem de tratar. Assim, este retrato não aborda a morte do ponto de vista filosófico, jurídico, médico, estatístico ou psicológico, e também não é um ensaio sobre o luto, nem um guia prático. É antes um instantâneo – breve e necessariamente pessoal – de uma actividade importante que a maioria desconhece. Esta reportagem-reflexão não pretende fazer troça da indústria nem denunciar as suas más práticas, embora existam. O objectivo é olhar para questões de que costumamos fugir, derrubar alguns mitos e dar crédito a quem o merece.

    À excepção de quem trabalha no sector, praticamente ninguém sabe como funcionam as agências funerárias. Das áreas de negócio legais, esta será a mais secreta de todas porque ninguém quer pensar nela. A morte é um assunto desconfortável. Ou fugimos dele a sete pés, ou nos atrapalhamos, ou recorremos a lugares-comuns desagradáveis e um tanto ocos. Além disso, o Ocidente atravessa uma fase de negação da morte. A concórdia entre os povos e os progressos tecnológicos tornaram a vida humana bastante mais próspera e longa do que alguma vez foi. Em Portugal, a esperança média de vida passou de 63 anos em 1960 para os actuais 82 anos; a taxa de mortalidade infantil era de 8 por cento, sendo actualmente de 0,3 por cento. Hoje, a velhice é passada num lar e a morte ocorre sobretudo em hospitais. O facto de o morrer não ser tão frequente e visível permitiu que omitíssemos para nós mesmos, como indivíduos e como sociedade, aquilo que teremos de enfrentar mais tarde ou mais cedo, o que só contribui para tornar a morte mais assustadora e misteriosa. De acontecimento doméstico, a morte passou a ser um acontecimento muito chocante na vida da família e da comunidade, tão traumático que o melhor é não falar dele. Hoje, de facto, é possível não pensarmos na morte e nas suas implicações, mas não é saudável que o façamos. Temos todos um esqueleto e uma caveira dentro de nós. Fingir que não obriga-nos a grandes acrobacias sociais e emocionais e impede-nos de usufruir verdadeiramente da vida. Somos o único animal com consciência da sua finitude. Em vez de recusarmos a nossa natureza, podemos

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