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Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum": 10 Anos ao Encontro dos Portugueses
Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum": 10 Anos ao Encontro dos Portugueses
Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum": 10 Anos ao Encontro dos Portugueses
E-book731 páginas8 horas

Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum": 10 Anos ao Encontro dos Portugueses

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Sobre este e-book

Colecção 10 anos - Pensar o tempo comum. Cinco Encontros, cinco temas cruciais dos nossos tempos, 10 anos ao Encontro dos Portugueses. Ao longo de 2019, a Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu o debate sobre o papel da mulher na sociedade, a sustentabilidade do sistema de pensões, os desafios da ética, o futuro do planeta e a urgência da crise climática, e o impacto do avanço da ciência para a Humanidade. Com estes temas, que trouxeram a Portugal especialistas de renome internacional, publicamos cinco ensaios que propõem uma reflexão sobre o país e o mundo no século XXI.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de jul. de 2021
ISBN9789899004948
Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum": 10 Anos ao Encontro dos Portugueses
Autor

Vários Vários

Sebastião Almeida estudou Comunicação Social, foi jornalista no «Público» e na «Time Out Lisboa». Escreve agora na revista «Sábado», mas quando entrou pela primeira vez numa redacção fê-lo de câmara fotográfica ao pescoço. O destino trocou-lhe as voltas, mas o gosto pela imagem não se dissolveu. Margarida David Cardoso nasceu em 1995, numa Europa que acabava de perder as fronteiras internas. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, foi jornalista no «Público» em Lisboa, e agora no podcast de jornalismo de investigação «Fumaça». Talvez um dia seja psicóloga. Sara Beatriz Monteiro nasceu no Porto, cresceu em São João da Madeira e vive em Lisboa. Queria ser atriz, professora ou advogada, mas o gosto pela escrita levou-a para o jornalismo. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, foi jornalista na Renascença, no ciberjornal «JPN» e trabalha há três anos na TSF. Depois de escrever este livro, está empenhada em ser jovem para sempre.

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    Conjunto "10 anos - Pensar o tempo comum" - Vários Vários

    Colecção 10 anos

    Pensar o tempo comum

    Cinco Encontros, cinco temas cruciais dos nossos tempos, 10 anos ao Encontro dos Portugueses.

    Ao longo de 2019, a Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu o debate sobre o papel da mulher na sociedade, a sustentabilidade do sistema de pensões, os desafios da ética, o futuro do planeta e a urgência da crise climática, e o impacto do avanço da ciência para a Humanidade. Com estes temas, que trouxeram a Portugal especialistas de renome internacional, publicamos cinco ensaios que propõem uma reflexão sobre o país e o mundo no século XXI.

    Fundação Francisco Manuel dos Santos

    10 Anos ao Encontro dos Portugueses

    Índice

    MULHERES, HOJE

    Introdução

    1. Juventude

    Levantar do sofá e gritar

    MATILDE ALVIM, 17 ANOS

    2. Sexualidades

    Este é o meu corpo

    DANIELA BENTO, 32 ANOS

    3. Educação

    O pé na terra, a mão no mar e a cabeça no espaço

    ANA PIRES, 39 ANOS

    4. Emigração

    Alguém devia dar uma oportunidade

    SÍLVIA NUNES, 33 ANOS

    5. Imigração

    Aqui, a empregada sou eu

    ADÉLIA COSTA, 59 ANOS

    6. Trabalho

    Ninguém faz nada sozinho

    HELENA RODRIGUES

    40 ANOS, EMPRESÁRIA

    7. Família

    À espera do tempo

    SUSANA BRÁS, 44 ANOS, LOULÉ

    8. Violência Doméstica

    Vou matar a tua família inteira e tu vais ser a última

    AMÉLIA SANTOS, 69 ANOS

    9. Envelhecimento

    Não acredito na minha idade

    CONCEIÇÃO NEVES

    10. Feminismo

    Onde estão as mulheres?

    FILIPA LOWNDES VICENTE, 47 ANOS

    Entrevista: Laura Sagnier

    Tem de ser socialmente inapropriado ser-se machista

    Infografia

    SEGURANÇA SOCIAL

    Introdução

    1. O Inverno demográfico chegou

    2. A sustentabilidade do sistema de pensões

    3. As medidas tomadas e as mudanças futuras possíveis

    4. Um novo contrato social

    5. Entrevista: Joakim Pälme

    Um Estado social que apenas se preocupa com os pobres tende a ter políticas pobres

    6. Como é que a Europa está a lidar com o problema?

    7. Entrevista: Bruno Palier

    A primeira coisa que é preciso fazer para lidar com o envelhecimento é tratar das crianças

    8. Como reagir a um mercado de trabalho em mudança? Este sistema é mesmo para todos?

    9. O desafio da longevidade: o que fazer com uma sociedade envelhecida?

    10. Entrevista: Sibila Marques

    O principal risco em Portugal é perder a sabedoria das pessoas mais velhas

    Infografia

    ÉTICA, VALORES E POLÍTICA

    Introdução

    1. 00h

    Falta de ética versus flauta ética

    2. 7h

    Dormir com luzes de standby

    3. 7h30

    Ler notícias em troca dos dados pessoais

    4. 7h40

    Nove minutos e 13 segundos para entrar num jornal

    5. 8h

    Sair de casa

    6. 9h

    Dentro do carro

    7. 13h

    Um bife no avião

    8. 15h

    Imperativo da política

    9. 21h

    Viver com robôs

    10. 23h

    A era digital não está a ser boa para a democracia

    Entrevista: Michael J. Sandel

    Bibliografia

    Infografia

    O FUTURO DO PLANETA

    Introdução

    1. O tio Wally tinha razão

    2. Antropocénico, a nova época geológica da Terra?

    3. O futuro de Portugal

    (em três variações)

    4. Dr. Jekyll no Planeta Plástico

    5. Mr. Hyde no Planeta Plástico

    6. O oceano entre diagnósticos e prognósticos

    7. 2020, um super­-ano do oceano?

    8. Entrevista: Carlos M. Duarte

    Os oceanos podem ter um papel na solução das alterações climáticas

    9. Açores, um jardim das maravilhas

    10. Entrevista: Sylvia Earle

    Sem os oceanos não há vida, não há azul nem verde

    Infografia

    CIÊNCIA E UNIVERSO

    Agradecimento

    Introdução

    1. Como é que tudo começou?

    Big Bang or not Big Bang, eis a grande questão. As apostas ainda não estão fechadas.

    2. O que é o espaço­-tempo?

    Quando olhamos para o espaço e para o tempo pela lente da física moderna — que os funde numa única entidade, o espaço-tempo — tudo se complica.

    3. O que há do outro lado de um buraco negro?

    Os buracos brancos ainda são objectos hipotéticos, mas talvez já tenham sido observados sem que ninguém tenha dado por isso.

    4. Há outras Terras no Universo?

    Talvez sim. Mas as possibilidades mais próximas são demasiado inóspitas e as mais distantes podem ser mais acolhedoras mas… são muito distantes.

    5. Há outras formas de vida no Universo?

    Durante séculos sonhámos com sofisticadas civilizações extraterrestres. Hoje, os cientistas procuram sinais noutros astros mas contentam-se com vestígios microscópicos de vida.

    6. Por que é que o Universo existe?

    Nos primeiros instantes de vida do Universo, a matéria e a antimatéria deveriam ter-se aniquilado mutuamente. Mas a matéria prevaleceu. Como explicar este enigma?

    7. O que é a matéria escura?

    Está por todo o lado, representa a maioria da matéria do Universo, é exigida pela Teoria da Relatividade Geral mas não se sabe de que é feita nem se sabe se existe.

    8. Entrevista: Carlo Rovelli

    O tempo existe à nossa escala mas deixa de existir a certas escalas

    9. O que é a energia escura?

    A sua existência foi teorizada há 20 anos para explicar uma observação surpreendente: a expansão do Universo está a acelerar.

    10. Como é que tudo vai acabar?

    São vários os cenários da morte anunciada (e do recomeço) do Universo propostos pelos cosmólogos. Mas ninguém sabe qual será o verdadeiro.

    Infografia

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    Largo Monterroio Mascarenhas, n.º 1, 7.º piso

    1099-081 Lisboa

    Portugal

    Correio electrónico: ffms@ffms.pt

    Telefone: 210 015 800

    Director de publicações: António Araújo

    Título da colecção: 10 Anos — Pensar o tempo comum

    Portfolio: Augusto Brázio

    Fotografia de entrevista a Sibila Marques e Laura Sagnier: Miguel Valle de Almeida

    Fotografias das restantes entrevistas: Augusto Brázio

    Coordenação editorial: Maria Paula Barreiros

    Infografia: Célia Rodrigues

    Revisão: Florbela Barreto

    Validação de conteúdos e suportes digitais: Regateles Consultoria Lda

    Design e paginação: Sónia Teixeira Pinto

    Título: Mulheres, Hoje – Que a revolução seja maior

    Autor: Francisca Gorjão Henriques

    Título: Segurança Social — Construir um presente para ter futuro

    Autores: Raquel Martins e Sérgio Aníbal

    Título: Ética, Valores e Política — Um dia normal na era digital

    Autor: Bárbara Reis

    Título: O Futuro do Planeta – Tanto que está nas nossas mãos

    Autor: Teresa Firmino

    Título: Ciência e Universo — Dez grandes mistérios do cosmos

    Autores: Ana Gerschenfeld e José Vítor Malheiros

    Os autores desta publicação não adoptaram o novo Acordo Ortográfico.

    As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade dos autores e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

    A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada aos autores e ao editor.

    ISBN 978-989-9004-94-8 

    Conheça todos os projectos da Fundação em www.ffms.pt

    MULHERES, HOJE

    Que a revolução seja maior

    Francisca Gorjão Henriques

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    Introdução

    Matilde, Daniela, Ana, Sílvia, Adélia, Helena, Susana, Amélia, Conceição e Filipa. As dez mulheres que aqui nos deixam a sua história contam, de uma forma ou de outra, muito mais do que as suas próprias vidas. Todas trazem a vida do seu tempo — deste tempo. São o que se convencionou chamar mulheres comuns: tratam da casa, levam os filhos à escola, olham pelos netos, estudam, trabalham, trabalham, trabalham.

    O 25 de Abril vai a caminho do meio século, mas continuamos presos a modelos que não temos conseguido transformar com a aceleração necessária. Igualdade? Em Portugal, como noutras partes do mundo, as mulheres são menos contratadas do que os homens, ganham menos (às vezes, muito menos) pelas mesmas funções, realizam mais tarefas domésticas, são muito mais vítimas de violência, têm maiores dificuldades em fazer-se ouvir... Não foi preciso procurar agulhas no palheiro para encontrar testemunhos de tudo isto. Basta olhar para o lado para ver que estas discriminações persistem. Como comentou uma das entrevistadas quando falámos sobre este tema: Que a revolução seja maior. O eco dessa frase ficou e por isso escolhi-a para título deste ensaio.

    Cada capítulo parte de uma história de vida, e cada história de vida é uma ponte para um tema diferente (juventude, sexualidades, educação, emigração, imigração, trabalho, família, violência doméstica, envelhecimento e feminismo). Nas entrevistas, que decorreram entre Março e Agosto de 2019, liguei o gravador, fiz as perguntas necessárias, e deixei a conversa correr com o mínimo de interrupções e sem olhar para o relógio. Na transcrição, tentei também eclipsar-me o mais possível para deixar o foco apontado para quem está a falar. Daí a opção pelo discurso directo, com o mínimo de intromissões além das essenciais (seleccionar, cortar, clarificar...).

    A seguir a cada testemunho, apresento o contexto mais alargado do tema, entrevistando especialistas. O que começou por um acaso, acabou por se tornar um critério: todas as pessoas ouvidas são mulheres. Não foi sequer necessário fazer concessões. Pode parecer um ponto de vista inquinado, mas este não é um ensaio académico. É um ensaio em que se vai à procura de vozes de mulheres e das várias formas pelas quais essas vozes se expressam.

    Em todo o caso, este é um trabalho falhado. Nem poderia ser de outra maneira, porque as mulheres, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, não se resumem numas dezenas, centenas ou milhares de páginas. Não são um tema. Tudo o que fica de fora será sempre muito mais interessante, complexo e misterioso do que aquilo que se optou por escrever.

    1. Juventude

    Levantar do sofá e gritar

    MATILDE ALVIM, 17 ANOS

    Prefere a expressão crise climática a alterações climáticas porque passa melhor a ideia de contra-relógio. Matilde Alvim frequentava a Escola Secundária de Palmela quando co-organizou a Greve Climática Estudantil, para levar o Governo a fazer do clima uma prioridade. Foi a 15 de Março de 2019 e fez sair à rua 20 mil jovens de todo o país. Outras greves vieram depois.

    Encontramo-la em sua casa, na Quinta do Anjo, Palmela, atarefada a escrever um comunicado sobre uma lei aprovada na véspera pelo Parlamento, e a preparar uma intervenção para uma conferência do Conselho Nacional de Educação, sobre Educação e ambiente — uma agenda para o futuro. Oxalá tenha sido ouvida com atenção, porque ela tem muito a dizer sobre o assunto.

    Tem cartazes pendurados nas paredes do quarto, e o gira-discos que era do avô, com alguns vinis. The Doors, Pink Floyd há dois anos eu era muito mais actualizada na música, agora desliguei. Isso é mau. Também gosta de música cubana — como da cultura da América Latina em geral.

    Quer ter a certeza de que vai aproveitar a vida, divertir-se, não levar tudo demasiado a sério. Quando falámos, estava a terminar o 12.º ano sem saber ainda que curso tirar. Antropologia, se calhar. Ou talvez Comunicação Social. Num artigo publicado no P3 (Público) no dia da greve, Matilde Alvim escrevia: "Temos direito a exigir a quem está no poder que nos assegure um futuro sustentável para viver. Afinal, somos a geração sobre a qual caiu em cima o mais pesado dos fardos: herdar um planeta quase morto.

    E mais à frente: É agora ou agora."

    Mais rural ou mais urbana? Faço muitas vezes essa pergunta a mim mesma. Nasci aqui na Quinta do Anjo, em Palmela. Uma aldeia. As pessoas vivem da terra (há muitos pastores e dantes havia ainda mais, por causa do queijo), estão ligadas aqui, e eu também. Mas sempre tive muito acesso a Lisboa, mais do que a maior parte dos que moram cá. A minha mãe esteve lá a fazer a universidade e trabalha [na câmara municipal] — não quis trabalhar aqui porque achou que seria redutor.

    Não temos um sítio que possamos dizer hoje à noite vamos ali. Tenho muita inveja das pessoas de Lisboa que podem fazer coisas, dar uma volta, apanhar o metro e ir àquele bar, àquele museu ou exposição. Aqui não há nada disso. Vamos ao café — que não é o café alternativo, é o café. Temos de ser criativos: uma mesa no parque, um passeio pela serra...

    Quando vou para Lisboa, eles sentem um bocadinho a diferença. Tenho algumas expressões que os fazem rir-se. Ainda ontem numa reunião: Não temos de ir como ovelhas. Eles riram-se. Gosto muito da ideia de ser da aldeia e de estar na Quinta do Anjo a passear, de conhecer toda a gente, do sentimento de comunidade. Depois há o outro lado: não tenho nada para fazer. Cada vez que tenho de ir a Lisboa, pago sete euros, mais metro. São só quarenta e tal minutos, mas é caro.

    Sempre estive preocupada com o ambiente. A primeira vez que participei politicamente contra as alterações climáticas foi numa manifestação contra o furo de Aljezur, em Abril de 2018. Gostei de lá estar, de ver muitas pessoas a mobilizarem-se por uma coisa em que eu acreditava. Nunca tinha ido a uma manifestação na minha vida e pensava que estava sozinha [nas preocupações sobre o clima]. Foi convocada pela Climáximo [entre outros], eu não sabia quem eles eram, não sabia de política, só sabia que não queria petróleo em Portugal. Foi uma marcha do Largo Camões até à Assembleia. Por isso é que a greve climática [estudantil de Março de 2019] foi do Largo Camões até à Assembleia. Lembrei-me do percurso!

    Os meus pais vêem o telejornal e falam sobre isso. A política não é [um assunto] apagado, mas também não é a toda a hora. Eu só sabia que não queria petróleo e gostei de estar a lutar contra isso e de expressar a minha voz sem ser no sofá. Depois comecei a ver que havia mais manifestações. Fui seguindo páginas [no Facebook]. Havia um mundo de activismo climático que eu nem sequer sabia que existia. Estava completamente a leste, achava que ninguém estava a fazer nada. Ninguém à minha volta ia a manifestações nem se envolvia. Eu pensava: Como é que isto está a acontecer e ninguém está a fazer alguma coisa gigante? Como [antes] eu não seguia nenhuma página do Facebook, nunca me aparecia essa informação, porque se seguirmos uma página depois começam a aparecer outras semelhantes.

    Fui-me envolvendo, informando sobre o que havia para fazer. À terceira manifestação que fui já começava a perceber mais da coisa. Comecei a ver que eram sempre as mesmas pessoas nos tambores e sempre as mesmas a falar. Já sabia o que íamos fazer, porque é que era naquele sítio...

    Em Novembro [de 2018] vi a Greta [Thunberg, jovem activista sueca]. Nessa altura tive a ideia de fazer uma greve. Estava insegura porque não sabia como fazer. Vai cada um para o seu sítio? Marcamos tudo em Lisboa? Como é que isto vai acontecer? Comecei a ver mais fotos da Greta, porque ela posta todas as semanas. Estava de férias e pensei: Vou começar a fazer greve às aulas, fazer igual à Greta! A minha mãe não ficou muito contente com isso! Mas eu tinha realmente de fazer alguma coisa. Duas ou três pessoas, a minha escola toda em frente do Parlamento, o que fosse. Estava a ficar desesperada por não estar a fazer nada. Já andava a seguir [nas redes sociais]: os australianos fizeram uma manifestação, depois os belgas. Temos de fazer isto! Pus uma história no Instagram e depois uma menina, que por acaso também é da Quinta do Anjo, a Beatriz, mandou-me uma mensagem a dizer: Vamos fazer isto em Portugal. Foi aí que nasceu a greve [de 15 de Março de 2019].

    Começámos a ver: temos de ter reivindicações, temos de ter as funções definidas. E aquilo começou a estruturar-se. Primeiro falei com algumas pessoas de Lisboa, que andam na faculdade, depois uma amiga do Porto começou a falar com mais pessoas, os amigos da Universidade de Coimbra foram adicionados ao grupo, e a partir daí criaram-se três focos. Foi-se desenvolvendo até se tornar esta coisa monstruosa de 30 e tal focos! Não fazia ideia! Foi em todos os distritos, alguns com quatro ou cinco [focos].

    Começámos a pensar que não podíamos fazer isto tipo coletes amarelos [movimento de protesto espontâneo em França, que começou com manifestações em Outubro de 2018], sem nenhum fundamento ou nenhum manifesto, ou objectivos concretos que pudessem ser atingidos. Pensámos: Temos de ter um cartaz a indicar o que vamos fazer, temos de ter um manifesto e temos de criar um WhatsApp. Depois falei com um da greve climática da Suíça a perguntar como é que se fazia isto, e eles puseram-me em contacto com um rapaz que me pôs em contacto com uma rapariga que me pôs em contacto com o grupo internacional de greve às aulas pelo clima. OK, precisamos de mais pessoas. Precisamos de um designer gráfico, de alguém que perceba de tecnologia para fazer um site... começámos a fazer uma lista. Foi-se montando: as pessoas conheciam outras pessoas, que conheciam outras pessoas, que conheciam outras pessoas. Não sabia que ia ficar tão grande. Coimbra, Porto, Faro, Braga... Há mais de 500 pessoas só no [grupo do] WhatsApp.

    O objectivo é não haver hierarquia. Não há ninguém que tenha mais poder do que outro, só existem pessoas cuja voz tem mais preponderância. Mas lá porque a pessoa diz não está escrito que tem de ser. Se a maioria disser não, é não. O objectivo é sermos horizontais, quem quer começar uma coisa começa. É sempre difícil organizar internamente as coisas. Supostamente, isto funcionava com representantes: uma pessoa de Viana representava a vontade do núcleo de Viana, mas isso acaba por não funcionar, como estamos agora a descobrir. Toda a gente deve poder entrar na coordenação nacional. Mas e se fica muito cheio? E se há mais pessoas de Lisboa do que de Braga? Os de Lisboa ficam favorecidos. É um grande dilema, [sobre o qual] estamos sempre a pensar e a batalhar, porque nunca há uma solução.

    Há problemas internos e faltas de comunicação, e quando isso acontece as coisas complicam-se. Há zangas, há choques frontais e divergências brutais, como é normal e saudável. Há pessoas que não sabem distinguir o levar a peito do que é trabalho. É normal, essas coisas acontecem. Estamos a organizar-nos para que haja cada vez mais comunicação e para que as vias de comunicação sejam abertas. A informação tem de estar sempre a passar. Estamos a tentar descobrir em conjunto como é que vamos fazer isto. O WhatsApp não tem tanta eficácia quanto pensávamos porque fica um grande amontoado de mensagens. Queremos abrir uma nova plataforma que é o Discord, para jogos, mas que funciona bem, supostamente. Todas as pessoas que quiserem envolver-se na coordenação nacional podem envolver-se desde que ponham os seus dados numa ficha para sabermos quem está ali. A vantagem é haver um moderador e vários canais, e se estiver alguém a fazer spam, as pessoas podem cortar e dizer chega.

    Toda a gente está motivada para continuar a lutar, mas há momentos em que estamos todos na mesma página e há outros em que só nos apetece esfaquearmo-nos uns aos outros! Como somos jovens, existe discordância em tudo, queremos debater tudo. São muitos meses de choques frontais, e então uma pessoa ganha imunidade. Vamos lá ter calma.

    Temos um problema: nunca decidimos formalmente como é que se tomam decisões. Temos reuniões semanais [virtuais] à sexta-feira, às 18h. Mas é muito fácil haver alguém que depois quer voltar atrás. Não podemos obrigar ninguém a ir às reuniões e, se está pouca gente, não sabemos se temos legitimidade para tomar decisões; e durante quanto tempo se pode revogar essa decisão? E quem? Temos moldes, mas não há nada escrito. Vamos fazer isso agora. Quem quiser trabalhar para fazer os estatutos trabalha. Eu já estou desde o início e às vezes estas tensões amolecem-me. Percebo que é normal, mas depois de tanto tempo... Cai uma grande responsabilidade sobre mim porque, como fui uma das pessoas que começaram [o grupo], a minha voz sempre teve grande preponderância. Uma pessoa começa a ficar OK, eles que façam. Prefiro não me envolver e dar depois a minha opinião sobre o que for decidido. Há dois meses estaria lá, mas agora prefiro deixar. É bom confiar nos outros, confiar que vão fazer bem a tarefa, e respirar.

    Este movimento é apartidário mas é político, de política cidadã. Acho importante dar atenção e seguir [política partidária], mas sou mais de movimentos de cidadãos, estudantis. É um trauma da sociedade portuguesa: depois do 25 de Abril, a política foi dominada por partidos. Quando surgem movimentos cívicos, dizem: Aposto que estão a ser financiados por um partido. Também já nos aconteceu. Fomos abordados pelos Verdes, pelo Bloco, pelo PS. Dissemos muito obrigada, mas não. Claro que temos pessoas envolvidas que pertencem a um partido — e cada um tem o direito de militar onde quiser —, mas colectivamente somos apartidários e a nossa força está aí. Ficamos independentes e não temos de nos prender a nada; é mais plural. A maioria é de esquerda, como era expectável, mas também existe pessoal de centro e centro-direita. Também tenho uma opinião política, sou de esquerda, mas nunca viraria o movimento para um partido. Nem sequer é uma hipótese.

    Sem os partidos não há democracia, mas tem de haver um equilíbrio entre sociedade civil e partidarismo. Quando se faz um movimento apartidário, ele não pode ser antipartidário. Isso é populista. Nem se pode dizer que não tem ideologia e que não tem política. Tudo tem de ter uma ideologia e tudo é política. Fazer uma greve é a coisa mais política que existe. Por isso, não se pode dizer nós não gostamos de política nem de políticos. Calma. Mas os partidos também não podem chegar aqui e tomar conta, como já tentaram fazer.

    As pessoas da sociedade civil têm de se mexer. A escola tem de dar as ferramentas e desenvolver as competências para que os alunos desenvolvam o espírito crítico, para que sejam curiosos e vão pesquisar por eles, fazer as coisas por eles, mas depois não pode vir dizer que isto é uma iniciativa escolar, nem burocratizar movimentos de rua. Tem de fazer o seu papel e deixar voar. Passa por formar os professores, as direcções e os coordenadores de áreas. É só pôr quatro ou cinco frescos de cabeça que eles depois influenciam os outros. Também passa por dar mais tempo aos professores, que estão assoberbados. E tirar peso aos exames — na escola é tudo para o exame, para o exame, para o exame, e isso tira muita riqueza ao que poderia ser a educação.

    Uma coisa que me chocou foi haver escolas que proibiram os alunos de ir à manifestação de dia 15. Quase todos os dias recebemos mensagens a dizer isso. As escolas omitem os direitos dos alunos; a minha omite. Ninguém sabe que temos direito de fazer greve, de fazer uma RGA [reunião geral de alunos]. Só descobri há pouco tempo porque fui pesquisar ao Diário da República. Mandei as leis para a direcção, senão eles iam resistir.

    Fui a Lisboa mobilizar para a greve e descobri um mundo novo! Pessoas em associações de estudantes que levam aquilo mesmo a sério — no [liceu] Camões, na [escola António] Arroio, são altamente politizadas. Vou a palestras e há perguntas políticas: Qual é o vosso programa? Quando é na Escola Secundária de Palmela: Ah, e então a polícia? Há segurança? Quase ninguém está envolvido, está toda a gente alienada e ninguém sabe de nada. Até há sítios no interior que são bastante politizados, mas em Palmela estão completamente às escuras. O pessoal que está em Lisboa às vezes não tem noção do quão privilegiado é nesse sentido. Eu aprendi de choque frontal como se fazem as coisas! Para mim, era um bocado à toa. Só quando comecei a dar-me com pessoas do Camões, ou que já tinham estado envolvidas na militância, é que percebi: tem de haver uma ordem de trabalhos, tem de haver votação, tem de haver actas, as actas têm de ser publicadas.

    Dizia-se: Os jovens não fazem nada, só estão no telemóvel e não querem saber. Depois, os próprios adultos inverteram [essa generalização]. O problema é que o que nos disseram passou para nós. Agora, quando vamos fazer uma greve em Bragança e dizemos vamos publicitar, alguém diz de certeza que ninguém vem, ou aqui ninguém se interessa por isso. Nem sequer é necessariamente verdade, mas toda a gente encaixa como verdadeiro. E como toda a gente está nessa mentira, nem falam uns com os outros porque acham que não vão conseguir. Mentiram-nos e nós ficámos envenenados.

    A greve de 15 de Março teve impacto directamente em muita gente que estava intoxicada e que acordou. As pessoas mandam para a nossa página coisas que estão a acontecer na sua rua, denúncias, mesmo. Querem denunciar as coisas e olham para nós como uma plataforma que lhes dá voz. Acho isso importante.

    Não sei se tem que ver com o protestantismo — tenho de ir investigar isso melhor — o facto de as pessoas no Norte da Europa se chegarem mais à frente. Se calhar também passa por terem mais tempo para si. Os portugueses trabalham muito, chegam a casa cansados, não há tempo nem energia para isso [activismo, voluntariado] ou para prestarem atenção. Se calhar, passava por uma mudança mais estrutural, para as pessoas terem mais tempo livre, sentirem-se mais felizes, menos sobrecarregadas e depois terem energia para dedicar. Não se sentirem tão perdidas ou esmagadas.

    Acho que nós trabalhamos mais rápido [do que a geração anterior], mas não sei se necessariamente melhor. Somos mais impacientes — tem de ser feito agora. Somos mais tolerantes do que muitos adultos — às vezes, alguns têm nostalgia da ordem, da homogeneidade — e, de certa forma, mais sensíveis, para a causa LGBT, ou outras. Já tirámos a ideia da masculinidade tóxica, já temos a ideia do fluir de géneros, já não temos tanto o preconceito de rapaz veste-se assim, rapariga veste-se assim. Isso já quase não existe, o que é bom. Somos mais abertos.

    Acho importante ter alguma experiência no estrangeiro, não sei onde, mas quero ajudar a desenvolver o meu país. Ainda falta aqui muita coisa e temos de ter pessoas a pensar.

    Depois de ver o que a Europa me deu (tive de estudar os programas da UE para o ambiente, e isso foi uma maneira de aprofundar os meus conhecimentos), considero-me mais pró-Europa. Precisamos da UE e é importante que não seja apenas um bloco económico, mas também de valores, de solidariedade, um bloco cultural. Acredito no projecto europeu, sobretudo com a crise climática, com a questão dos refugiados climáticos: a UE é um dos blocos que lideram o mundo em termos ambientais. A minha opinião é que nem os melhores estão a fazer o suficiente, mas a UE puxa uma série de países.

    A justiça climática implica justiça social — à medida que as alterações climáticas se vão agravando, a injustiça social também se vai agravando. A crise climática traz escassez de recursos, a escassez traz instabilidade política, e por aí fora. As primeiras vítimas vão ser os países em desenvolvimento, e, mais do que isso, vão ser as mulheres. É sempre mais dificultado o acesso das mulheres à educação, à saúde, tudo isso. A causa ambientalista e a justiça climática também passam muito pelas mulheres: a verdade é que, muitas vezes, elas é que dão corda à sua família e, por consequência, à sua comunidade. Empoderar as mulheres é mesmo empoderar as comunidades. Ainda tenho de ler mais e pensar mais nisso, mas uma ecologista tem de ser feminista. Tem de passar por aí.

    * * *

    O que significa ser jovem? A pergunta é lançada para início de conversa pela politóloga Marina Costa Lobo, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. Hoje em dia, os limiares da juventude estão muito estendidos, afirma. Se é jovem quem ainda estuda, não está num emprego fixo e vive com os pais, então podemos considerar que a juventude poderá arrastar-se até aos trintas. Foi o que optou por fazer num estudo que conduziu em 2015, Emprego, Mobilidade, Política e Lazer, criando dois grupos distintos: jovens dos 18 aos 24 anos e jovens dos 25 aos 34 anos (ou seja, jovens adultos).

    Posto isto, podemos dizer com à-vontade que os jovens não se interessam por política? Sim e não, dependendo de qual dos grupos estamos a falar.

    Efectivamente, mais de 57% dos que têm entre 15 e 24 anos não revelam qualquer interesse na política, só 5,1% colaboram com associações estudantis, 1,7% integram associações ou ordens profissionais e apenas 1% pertence a um partido (uma queda em relação a 2007, quando outro estudo apontava para 5,2%).

    No entanto, a situação altera-se substancialmente quando passamos a analisar a faixa etária a seguir, entre os 25 e os 34 anos, aponta a politóloga. Eles são o grupo social mais interessado: consomem o dobro das notícias sobre política do que os outros jovens e estão acima dos restantes adultos, e acima da média nacional, na pertença a partidos políticos, sindicatos, associações. Ou seja, o efeito educacional não se sente inicialmente, mas acaba por se fazer sentir. Não é uma questão estrutural, é uma questão de ciclo de vida.

    E não vale a pena culpabilizar os mais novos pela sua apatia, pois parte da responsabilidade será até dos mais velhos e de como estes falam (mal) da política e manifestam a sua insatisfação com a democracia. Não podemos dissociar os jovens das famílias em que estão inseridos e da forma como os portugueses vêem a política. O resultado disso, e de um contexto mediático adverso, é que os jovens ficam rodeados de sinais negativos e pessimistas.

    Não tem de ser assim e, para mudar esta percepção, a escola deve assumir o seu papel. O envolvimento político aprende-se. Da mesma forma que aprendemos a participar, também aprendemos a abster-nos, dependendo dos contextos em que crescemos. Esses estímulos iniciais são muito importantes porque acabam por ser reforçados ao longo da vida, e essa primeira fase poderia ser uma fase de mobilização maior.

    Convém esclarecer também que, quando falamos dos jovens portugueses, estaremos sempre a falar de um grupo muito desigual, com experiências de vida muito distintas. O exercício da cidadania está associado aos recursos cognitivos socioeconómicos. As pessoas com mais escolaridade e mais recursos socioeconómicos são também aquelas que depois vão ler notícias sobre política, vão ser mais associativas, com mais participações cívicas, interesse pela política, participação partidária. Isto marca imenso os jovens.

    Os media têm referido com frequência que a camada mais jovem tem substituído as causas políticas pelas causas cívicas e, sobretudo, ambientais. No Dia Mundial do Ambiente, a 5 de Junho de 2019, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, declarou até: Em nome de Portugal, agradeço o extraordinário inconformismo das gerações mais novas — e espero que todos saibamos estar à altura do seu admirável exemplo.

    Mas será que a generalidade dos jovens, apesar da desconexão política, se empenha a fundo nas causas? Marina Costa Lobo considera que não, pelo menos a julgar pelos números. Se fosse assim, estariam em grande presença e participação em associações cívicas, e não é isto que vemos nos inquéritos. Não está lá. Em todo o caso, ressalva que os dados do seu estudo são de 2015, "que é um ano difícil, de saída da crise: a troika saiu em 2014, a satisfação com a democracia em Portugal era, em geral, muito baixa. Hoje em dia está bastante mais alta".

    A politóloga reconhece que, recentemente, as causas ambientais atraíram a atenção dos jovens escolarizados e suscitaram uma mobilização surpreendente e positiva. Isso também terá que ver com a forma como a escola promove essas questões: as gerações mais jovens foram escolarizadas num contexto de defesa do ambiente. As greves pelo clima foram um movimento muito interessante de mobilização, mas se isso vai levar a uma maior participação [política ou associativa], não sei.

    A investigadora Magda Nico, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-UL), chama a atenção para outro aspecto: não vale a pena estudarmos a participação cívica se não percebermos em que é que as pessoas acreditam, o que querem mudar, quais as crenças e quais os valores, afirma. Ninguém vai participar na sociedade só por participar. No entanto, está convencida de que a participação na sociedade através das causas, e não através dos partidos políticos, deveria ser mais estudada. Pelo menos em termos de visibilidade mediática, esta geração está a tomar conta [do tema das alterações climáticas] e a agarrá-lo como a sua causa, considera. Não é a única, porque vejo também que está muito envolvida nos movimentos sobre as mulheres. Muito mesmo.

    Além de um mal-estar generalizado em relação à democracia, há números que podem ajudar a perceber melhor as raízes da apatia política: segundo um estudo do Eurobarómetro de 2016, 86% dos jovens portugueses (entre os 16 e os 30 anos) sentem-se à margem da vida económica e social — a percentagem mais alta da União Europeia logo a seguir à Eslovénia.

    Este é também o grupo com as taxas mais altas de desemprego (23,7% entre as mulheres e 21,9% entre os homens), trabalho precário (acima dos 50%) e muito mal pago (metade da média da UE e abaixo da média nacional, sendo que as mulheres são ainda mais atingidas). Uma consequência provável desta realidade: em Portugal, 66,8% dos homens jovens e 53,3% das mulheres jovens vivem em casa dos pais. Elas saem em média aos 28,2 anos e eles aos 29,7 anos.

    A idade com que se começa a viver sozinho é, como já vimos, um dos factores que levam a dizer que, actualmente, os jovens são jovens até mais tarde, mas esta não é necessariamente uma característica da nova geração.

    Na sua tese de doutoramento, Magda Nico analisou a idade de saída de casa dos pais ao longo de grande parte do século XX e concluiu que há mais estabilidade do que instabilidade neste indicador. Há imensos rótulos que infantilizavam esta ideia de que os jovens agora ficam muito tempo em casa dos pais, sobretudo nos países do Sul. Será que as outras gerações anteriores saíam assim tão mais cedo? Se formos comparar com a geração dos baby boomers, seguramente que sim, mas esta é que foi a excepção, diz. A geração que viveu a transição para a vida adulta nos anos 1950 teve condições extraordinárias, em resultado da aceleração económica no pós-guerra. Estamos sempre a olhar para este período e, quando comparamos, dizemos ‘sim, eles saem muito mais tarde de casa dos pais’. Mas quando aumentamos a janela de observação, notamos que essa é que foi a anomalia histórica. Esta tendência [actual de saída mais tardia] é apenas a recuperação de uma coisa que já acontecia, por motivos diferentes, claro, porque as sociedades também estão diferentes.

    2. Sexualidades

    Este é o meu corpo

    DANIELA BENTO, 32 ANOS

    Daniela já foi Daniel. Não gosta de rótulos, mas é inevitável socorrer-se de vários para se definir sexualmente: trans (não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença), não binária (não se identifica nem como homem nem como mulher), pansexual (gosta de qualquer género, incluindo géneros não binários), poliamorosa (tem múltiplos relacionamentos, com o consentimento de toda a gente) e anarquista relacional (não há relações mais importantes do que outras). No seu mundo perfeito, as distinções de género seriam eliminadas. Evita dizer ele e ela, prefere sempre usar a palavra pessoa.

    É responsável pelo Grupo de Reflexão e Intervenção Trans (GRIT), da Ilga, desde 2015 e foi a primeira transexual em Portugal a conseguir fazer a criopreservação de gâmetas, ainda antes de iniciar os tratamentos hormonais, porque talvez possa vir a querer ter um filho biológico.

    Entrou no Instituto Superior Técnico em Matemática, mas acabou por seguir Astrofísica e Astronomia, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, curso que terminou recentemente. A seguir quer tirar Psicologia. Entretanto, paga as contas como engenheira de software.

    Vive num apartamento alugado nas Avenidas Novas, no centro de Lisboa. Daqui a pouco terminará o contrato e ainda não sabe para onde irá. Talvez tenha de voltar a dividir casa com alguém. Estamos numa sala com um computador, dois sofás pequenos, um ou outro cartaz e o manifesto da anarquia relacional na parede.

    Tem o cabelo pintado de loiro, cortado bem curto nos lados e comprido atrás, olhos claros e barba rala no queixo. Acabou de vir de um retiro em Tróia organizado pela empresa onde trabalha. Está de T-shirt cor-de-rosa e leggings pretas. Em várias fotografias que se encontram na Internet, aparece bastante maquilhada, mas hoje não. Há muitos universos no universo da Daniela.

    A minha história está recheada de coisas más. Vim da Lapa, uma aldeia próxima de Santarém, e um sítio bastante religioso. A minha mãe foi vítima de violência doméstica, e eu também, desde que me lembro. Só com a minha vinda para Lisboa é que as coisas mudaram.

    Tenho uma irmã mais velha. O meu pai idolatrava-a, era o Santo Graal da casa e a menina que tinha de se proteger. A minha mãe trabalhava no campo: só tinha a quarta classe (o meu pai tinha quase a quarta classe, mas não chegou a acabar). Depois começou a trabalhar numa fábrica de batatas fritas ao pé de casa. Mais tarde foi trabalhar para o café do meu tio, depois para um lar, onde esteve algum tempo. O meu pai era empregado na Opel e as coisas pioraram bastante quando a empresa fechou — ter o meu pai em casa 24 horas por dia era completamente diferente do que tê-lo a trabalhar.

    A minha mãe cresceu num regime muito depressivo, e agarrava­-se muito a mim. Eu acabava por ser um bocado a fonte de protecção daquela casa. Tinha de gerir os dilemas entre ela e o meu pai, e muitas vezes era eu que acabava com a culpa toda em cima! A escola era o meu escape: Tenho problemas em casa, vou virar-me para a escola e fazê-la bem-feita. Sempre fui uma aluna muito boa.

    Lembro-me de os meus pais me vestirem de rapariga no Carnaval. Era a altura em que eu me sentia bem. Às vezes brinco com a minha mãe: Fizeste-me aquilo e é por isso que se calhar... Na altura eu tinha um conceito do que era ser rapariga: pelas roupas, pela expressão corporal. Roubava roupa à minha irmã, ia buscar a roupa da minha mãe, punha laranjas nos vestidos a fazer de mamas e ficava muito contente a olhar para o espelho. Tinha uns quatro anos. Fazia estas coisas às escondidas, numa perspectiva muito inocente. Se calhar, eu quero ser assim, mas era aquela dúvida constante.

    Eu não conhecia mais ninguém a quem acontecesse isso, e acabou por ser uma coisa que ficou encaixada cá dentro, feita tabu. Até porque o meu pai é extremamente fóbico. Ele soube que eu era trans pela televisão: se fosse na altura em que eu vivia lá em casa, estava desgraçada. Digo que o meu pai é homofóbico e transfóbico, mas ele nem sabe o que é ser trans. É uma fobia generalizada. Na altura, nem de homossexualidade se falava lá [na aldeia].

    Um dia, na escola, tive de levar uma autorização para casa para poder estudar os órgãos reprodutores. Nessa altura, eu já sabia como é que o meu corpo funcionava, mas a minha irmã começou a ter a menstruação e eu ficava e pensar: aquilo não vai acontecer-me porque eu sou diferente. Foi a constatação real de que aquele não era o meu percurso.

    Houve uma altura em que as coisas ficaram mais complicadas em casa e deixou de ser viável sequer pensar nisso. Mecanizei todo o meu processo de vida. Era um robozinho a funcionar: Trato disto em casa, trato disto na escola, faço as coisas bem na escola, faço bem em casa. Comecei a ser superfuncional, e era isso que me mantinha viva.

    Os sítios onde me sentia melhor era junto das raparigas, e as pessoas começaram a gozar e a dizer: Se calhar és maricas. Isto estendeu-se pelo básico todo, porque os colegas eram sempre os mesmos. Cheguei ao 9.º ano e fui para Informática, em Santarém, só para mudar de escola. Continuava a viver na Lapa, mas fazia os 30 quilómetros para ir e para voltar. Para entrar na escola às 13h30 saía às sete da manhã de casa, porque havia poucos autocarros.

    Aí comecei novamente a ter alguns indícios de que se calhar havia coisas que não estavam bem comigo. Uma vez disse a um colega que gostava de conhecer as pessoas como elas são, [independentemente de serem rapazes ou raparigas] e a seguir houve colegas a entrar pela sala a dizer: Professora, o Daniel é maricas. Acabei por sofrer também um bocado de bullying.

    No 12.º ano adoeci. Depois de uma situação muito complicada em casa, comecei a deixar de dormir. Andava a trabalhar quase 24 horas por dia. Estudava, trabalhava, punha-me a ler coisas. Trabalhei em hotelaria. No Verão espalhei-me de vez. Durante o dia ia com a malta à praia e à noite ficava na discoteca até às seis da manhã. Estava catatónica. Estive um mês internada. Mas consegui terminar o ano lectivo muito de arrasto (nem sei como o fiz, com os antiepilépticos e antidepressivos que andava a tomar) e acabei com média de 19,5.

    Aos 18 anos vim para Lisboa, para a faculdade, tirar Matemática. A mudança de ambiente foi brutal para mim. Acabo internada mais seis meses. Estive um ou dois anos completamente parada porque não conseguia ir às aulas, estava sempre a dormir, não conseguia sair de casa. Acabei por desistir do curso e comecei a trabalhar, o que me deu alguma independência em relação aos meus pais.

    Quando fiquei melhor, por volta dos 20 anos, voltaram todas estas questões de género a vir-me à cabeça. Um dia sentei-me na cama e comecei a pensar: Preciso de ir buscar um vestido, preciso de ir buscar um vestido. Passei horas nisto. Fui a um chinês próximo de casa. Era um vestido de ganga, acima dos joelhos. Então vieram num flash todas as memórias que eu tinha, a brincar em criança, e aquilo começou a fazer-me sentir bem, deu-me um novo alento. Comecei a empenhar-me seriamente a arranjar mais roupa e tudo o mais. Sempre às escondidas dos meus colegas de casa. Tinha medo. Ouvia as pessoas falar e dizer: Os travecas aqui, os travecas ali. Não se tocava muito no tópico, mas quando se tocava era assim que se falava das coisas. Gozavam e riam-se.

    Foi a descoberta da minha própria sexualidade. Muito rapidamente comecei a sair vestida de rapariga — aquilo que se convencionou chamar rapariga. Foi extremamente fácil dar esse passo porque era superconfortável do ponto de vista da minha expressão de género. Sempre tive um ar muito andrógino,

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