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Narrativas Infames: a transversalização do cuidado na saúde mental infanto-juvenil
Narrativas Infames: a transversalização do cuidado na saúde mental infanto-juvenil
Narrativas Infames: a transversalização do cuidado na saúde mental infanto-juvenil
E-book198 páginas2 horas

Narrativas Infames: a transversalização do cuidado na saúde mental infanto-juvenil

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Sobre este e-book

Este livro é fruto de uma pesquisa de Mestrado em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), engendrada a partir da atuação em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSij). Nesse dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial, fruto da Reforma Psiquiátrica, foi possível o encontro com diferentes crianças e jovens. De inspiração antimanicomial, antiproibicionista e antirracista, este livro se fortalece pelo diálogo com os autores que se relacionam a essas lutas. Por meio de narrativas, são apresentadas vidas de jovens infames. O racismo, proibicionismo, patologização, medicalização, criminalização, tutela, judicialização, questões de gênero e classe, dentre outras forças, marcam os corpos dessa juventude e nos convocam a repensar as políticas públicas, as práticas de cuidado e a transversalizar o pensamento e as práticas. É na trama dos jogos de poder, apesar de todas as tentativas de docilização desses corpos jovens e infames, que eles desafiam os governos da vida e insistem em resistir.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de nov. de 2022
ISBN9786525261331
Narrativas Infames: a transversalização do cuidado na saúde mental infanto-juvenil

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    Narrativas Infames - Rafaela Werneck Arenari Martins

    1. TRAÇADOS CAMINHOS: TERRITÓRIOS, CORPOS E PESQUISA EM SAÚDE MENTAL INFANTO-JUVENIL

    1.1 Notas iniciais: Zona de cuidado de corpos em guerra

    Quem sabe só de Criança e adolescente, nem de criança e adolescente sabe. Muitos são os especialistas nesta área, que demasiado conhecem as teorias do desenvolvimento infanto-juvenil, e estão tecnicamente preparados para acertarem psicodiagnósticos, prescreverem psicofármacos, conter crises e responderem todos os questionamentos sobre esses tópicos. Versam verdades sobre essa fase da vida, delimitando o normal e o anormal. Essas teorias e pesquisas que, por vezes, exibem repetições e acabam por denunciar a ilusória construção da Saúde Mental Infanto-juvenil como um cenário já delimitado e esquadrinhado. Complexidades desaparecem de vista, como se não existissem, e a ideia de compreender a existência das multiplicidades das experiências se esvai junto.

    Talvez a surpresa para esses enquadramentos paire na ideia de que, entre os espaços que compõem o estigmatizado campo da Saúde Mental, em especial a Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil, existam vidas comuns, corpos que se constroem no cotidiano e encontram a partir dele uma maneira de (r)existir.

    No início da graduação em Psicologia muitos eram os estereótipos que se agenciavam acerca da saúde mental infanto-juvenil: perigo, drogas, transtornos mentais graves, perfis psicológicos, criminosos em potencial, que também se transformavam em: ajudar crianças doentes, salvar jovens condenados. Percepções que eram emaranhados do que se via nos filmes de terror, nas notícias, séries, livros de criminologia e o que havia começado a aparecer através das disciplinas do curso de graduação e os manuais diagnósticos. Essas imagens não surgiram aleatoriamente nos antigos devaneios. Essas figuras, previamente delineadas, dizem de um lugar que amedronta. Afrontando tal medo, convocamos nesses escritos as experiências das crianças, jovens, familiares, trabalhadores da Atenção Psicossocial, os quais convivemos nos últimos anos.

    Acreditamos na impossibilidade de captura de todas as vivências e multiplicidades que compõem as experiências de cuidado em Saúde Mental com a população infanto-juvenil. Principalmente porque esse é um campo em disputa, atravessado por diversos outros: biomédico, justiça, segurança pública, educação...

    Neste livro⁷, iremos nos emaranhar em meio as crianças e jovens que vivem com suas famílias, Acolhimentos Institucionais e também nas ruas, que sangram e fazem sangrar no exercício de viver e sobreviver em um necropaís, que historicamente destina a eles: Emilly, Rebeca, Ágatha, João, Kauê, Miguel, e tantas crianças e jovens negros e periféricos, uma política de morte.

    O anseio em falar sobre experiências correntes à Atenção Psicossocial Infanto-juvenil surgiu muito antes do início da pesquisa que deu origem a este livro. O pontapé inicial ocorre na primeira vez em um manicômio onde se deu o encontro com uma menina de 15 anos. É a partir daí que o campo da Saúde Mental passa a ser parte do caminho de formação profissional, e a luta antimanicomial torna-se aposta ético-política de vida. A partir daí, tornava-se óbvia que a escolha do estágio, durante a graduação em Psicologia, fosse realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSij), que, posteriormente, transforma-se em lócus de trabalho.

    Diante de tantas inquietações provocadas por essa experiência, apostamos em trazer narrativas de alguns casos acompanhados. Ao tomar a noção de caso, pensamos a partir de uma perspectiva foucaultiana, que considera o caso como aquele que não aceita ser aprisionado nos quadros interpretativos, que se impõe em uma singularidade absoluta, o que escapa à ordem e aos processos de identificação e classificação discursivo (REVEL, 2004).

    Buscamos aliados teóricos como Foucault, Deleuze e Guattari, Rachel Gouveia Passos, Mbembe, Cecília Coimbra, dentre outros autores que contribuíram com suas análises para a realização deste livro. E, principalmente, inspirados e fortalecidos com os saberes das crianças e jovens usuárias do serviço de Atenção Psicossocial. Afinal, eu acredito é na rapaziada, eles sabem resistir, e têm muito a dizer.

    Partindo da premissa que não há neutralidade em nenhuma produção, apresentamos narrativas que vão na contramão das biopolíticas normalizantes e mortificantes. A história desses jovens convoca análises das práticas cotidianas. Mais do que isso, mostram a resistência de juventudes infames diante de um cenário proibicionista de guerra às drogas, que os sentencia ao encarceramento, internações psiquiátricas, patologização, medicalização e morte. Considerando que são jovens como eles, negros, pobres, usuários de drogas, moradores de rua, que, agora mais do que nunca, estão na mira de um governo que mata e produz morte: um necrogoverno.

    Estar atento aos processos que estão ocorrendo no social e em nós, aguçar a potencialidade do nosso olho de ser afetado por aquilo que vê, Suely Rolnik (2002 p. 46) chama esses apontamentos de vibratilidade. Aliar-se com as forças da processualidade, diz ela, depende de poder ouvir aquilo que nos incomoda, que gera um mal-estar mobilizado pela desestabilização em nós mesmos, da capacidade de suportá-lo e de improvisar formas que deem sentido e valor àquilo que essa incômoda sensação nos sopra.

    O projeto político gerido e idealizado pelo desgoverno de Jair Bolsonaro carrega, em sua essência, o patriarcado, o racismo e o colonialismo. Em face de tamanho retrocesso, é necessário demarcar que este livro faz apostas que são, antes de tudo, Antimanicomiais e Antiproibicionistas, negando, então, as modificações trazidas por essa nova RAPS, que considera Instituições totais, mortíferas, de aprisionamento e exclusão como parte do cuidado em Saúde Mental.

    Nesse contexto, torna-se fundamental reafirmar o compromisso com uma sociedade sem manicômios, lembrando-nos que a desinstitucionalização da loucura deve ser sinônimo da luta por todas as liberdades possíveis. Recordando o que é evidenciado na Carta de Bauru (1987, p. 1): O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade; afirmando que a opressão também se presentifica nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, na discriminação contra a população negra, LGBTQIA+, povos indígenas, e mulheres. Dessa forma, Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.

    Pautados e mobilizados nesta luta, escrevemos este livro, trazendo notícias também dos entraves do trabalho no campo da Atenção Psicossocial infanto-juvenil, que é atravessado por tantos outros como justiça, saúde, drogas, loucura, medicalização. No cotidiano do acompanhamento, emergem questões que são basilares para a construção destes escritos: Como o modo de vida destes jovens coloca em xeque os modos normativos de cuidado? De que maneira essas vidas auxiliam a nos reposicionarmos no campo das políticas públicas de saúde?

    São essas questões que surgiram a partir do encontro com as crianças e jovens do CAPSij, e que nortearam a escrita desse livro.

    1.2 Narrativas Infames e produção de conhecimento

    E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações [...] ou seja, o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1984, p. 225).

    As experiências que constituem este livro forjam narrativas, narrativas infames. A aposta em trazer as experiências de atuação na Atenção Psicossocial para as discussões acadêmicas são modos de afirmar as possíveis contribuições das vivências nos serviços de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil como dispositivos de transformação do próprio campo, que está em constante construção. As narrativas estão entremeadas por todo este livro, isto porque, a fim de sustentar os saberes construídos a partir das experiências com crianças e jovens, utilizamos das narrativas na perspectiva do filósofo Walter Benjamin (1987). Essa combinação possibilitou aliar o processo de trazer as experiências vividas na Atenção Psicossocial Infanto-juvenil à compreensão sobre a importância de narrar.

    As crianças e jovens, aqui, não são vistas como objetos de pesquisa, mas como sujeitos que comparecem e contribuem com as narrativas. Elas também foram construídas junto aos seus pedidos para que se narrasse certas experiências, como também pelas limitações do que pode ser exposto⁸. As crianças e jovens que compõem as narrativas apresentadas surgiram em meio às experiências na Atenção Psicossocial, nas quais, além de pesquisar, também exerci o trabalho como psicóloga, técnica de Atenção Psicossocial.

    As escritas que culminaram neste livro ocorreram, portanto, em movimento. E devido à minha posição tripla de pesquisadora, estagiária e posteriormente trabalhadora não tive dificuldades para acessar o campo. Trabalhando e pesquisando ao mesmo tempo, assim foram inscritas as narrativas: entre caminhadas, em movimento.

    Ao tentar fazer a transmissão desses acontecimentos, inspiramo-nos em Larrosa (2004): Transmissão é uma comunicação que explode (p. 25), pois o que é dito só se transmite transformando-se. Transmitir não é comunicar fatos inertes, estáticos, imóveis, mas o abrir-se da possibilidade de invenção e renovação dos acontecimentos.

    Transmitir cenas cotidianas é criar espaço de emergência para diferentes vozes, vidas que, aqui, transformam-se em personagens, numa polifonia de sentidos. Nesse narrar- transmitir, tentaremos traçar os percursos pela cidade, pelos serviços, pelas pessoas que acolhem, decidem vidas e também aqueles acolhidos. Forma-se um rabisco complexo em que questões e análises vão se compondo com o vivido, confeccionando esse grande desenho do cotidiano.

    Entendendo como cotidiano as noções de Certeau (2013, p. 31), que o define como o que nos é dado a cada dia. Também é aquilo que nos pressiona, pois existe uma opressão que se dá no presente, já que Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O autor ainda afirma que cotidiano é uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.

    Ao transmitir o cotidiano através de narrativas, explicitamos que as políticas de narratividade de Walter Benjamin (1987) se tornam apostas como ferramenta metodológica à medida em que elas surgem como possibilidades de fazer reflexões críticas sobre a historiografia vigente, e são, portanto, uma forma de questionar histórias universalizantes. Assim, pode-se ainda trazer em questão a versão daqueles que foram vencidos, submetidos ao esquecimento (FERREIRA, 2011). A partir desses alinhamentos foi possível questionar: Quais histórias as narrativas dominantes deixam de contar? E por que não contam?

    Em suma, narrar surgiu como uma forma de projetar uma perspectiva transdisciplinar, para o que se sabe das crianças e jovens, para o que se entende sobre o trabalho na Atenção Psicossocial, o que viabiliza refutar os conceitos prontos e universalizantes sobre o assunto, e traduzir aos leitores essas outras histórias e perspectivas. Assim, escrever as histórias das crianças e jovens usuárias das políticas de Saúde Mental é escrever uma anti-história, que permite abrir uma fenda nos saberes e perspectivas que são produzidos sobre as crianças e jovens e não com elas.

    A escrita é compreendida aqui como ação política, que transforma, tensiona modificações do campo das relações de saber. Ao narrar essas histórias, afirmo ainda um ethos de pesquisa, uma postura aberta para o acontecer. Ou seja, para o que irrompe enquanto acontecimento, para o inesperado, para os desvios e as problematizações. Acontecimento no sentido trazido por Foucault (2003), como uma ruptura em hábitos, como surgimento de uma singularidade, como o encontro com as conexões que, em um dado momento, formaram as habitualidades, as evidências.

    Evidenciar narrativas infames é uma aposta ética-política para com as crianças e jovens do CAPSij, pois, ao trazer parte da vida deles aqui, a intenção é de suscitar análises e produzir conhecimentos que possam possibilitar pensar em novas práticas pela afirmativa da existência, pela potência de vida.

    Pensar que as práticas são criadoras de mundos implica colocar em questão o paradigma da neutralidade e objetividade da ciência. Imparcialidade não existe. Ao apostar que conhecer é intervir, utilizamos a noção de implicação discutida por Lourau para afirmar que as narrativas aqui apresentadas não se separam de quem as escreve. Lourau (1993) destaca que as ciências estão pautadas na premissa da neutralidade mediante sujeito e objeto de pesquisa. Por isso, o autor centraliza o conceito de análise de implicação, pois ele rompe com essa tradição ao trazer para a cena o intelectual implicado, sendo que:

    Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias, etc. Com o saber científico anulo o saber das mulheres, das crianças, dos loucos...o saber social, cada vez mais reprimido como culpado e inferior (LOURAU, 1977, p. 88).

    Implicação refere-se à análise dos lugares que ocupamos no mundo; que uso fazemos desses lugares, como nos posicionamos nos jogos de poder, que alianças fazemos e em nome de que. Coimbra e Nascimento (2009) destacam que fazer análise de implicação é um exercício cotidiano, uma postura na vida, nas relações sociais em geral. Nessa perspectiva, teoria e prática não se separam, não se distanciam. Produzimos subjetividades e somos produzidos através de nossas práticas, não estamos alheios aos efeitos que se fabricam no campo de pesquisa e, mais do que isso, existe um compromisso ético e político com aquilo que nós mesmos produzimos ao estarmos em relação com o campo.

    Neste sentido, convocados pela experiência de acompanhar a vida de jovens Infames sem gloria, descritos por Chaves (2013) como aqueles "a quem é negada a fala, aqueles a quem restará apenas o

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