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O Eu do Amor
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E-book219 páginas2 horas

O Eu do Amor

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Sobre este e-book

A linha histórica traçada por meio de autores que se engajam politicamente na busca do conhecimento conecta-se à Psicologia Política e à genealogia e permite-nos interrogar as condições de possibilidade externas aos próprios discursos que lhes garantem status de verdade. Isso significa que, para estudar o amor e sua conexão com a violência íntima, não basta perseguir o conteúdo do discurso dos amantes apaixonados ou que se odeiam (representações do amor), mas delinear as condições que tornam possível a afirmação do indivíduo como valor, a injunção social que o engaja na busca de si mesmo e no afastamento do mundo público. Resta-lhe o investimento na intimidade. Esses discursos, tidos como verdades, não são criados em um movimento natural da história, ao contrário, resultam de disputas, lutas, desacordos, divergências sempre políticas, que, a partir de um dado momento, adquirem hegemonia e submetem os indivíduos. Assim, o indivíduo moderno não é livre, é um sujeito subordinado a uma estrutura de poder, que funciona por meio de práticas políticas disciplinares. São essas práticas políticas que alimentam a crença de que a vida íntima é a única fonte de felicidade, o que, na prática, tem sido insistentemente desmentido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de abr. de 2020
ISBN9788547333744
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    Pré-visualização do livro

    O Eu do Amor - Flávia Bascuñán Timm

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    Tá tudo padronizado no nosso coração

    Nosso jeito de amar pelo jeito não é nosso não

    Tá tudo padronizado

    Me mira ira

    Me mira mas me erra

    Mas minha mira me era confusa

    Mudando meu amor de endereço, fria

    Não mira ira

    Não miro mas te acerto no peito

    Quando mudo meu amor de endereço

    Me mira ira

    Me mira mas me erra no escuro

    Sentindo teu amor profundamente

    Karina Buhr (Mira Ira)¹

    PREFÁCIO

    Do direito ao amor livre

    Zé Ramalho imortalizou a ideia de que mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor em uma letra de música contando histórias de amor a partir da de Helena e Páris, na mitológica guerra de Troia. Nós, jovens feministas da década de 1980, adorávamos cantar junto à cantora Amelinha, enquanto acreditávamos que amaríamos livremente. Essa é a preocupação central do livro de Flávia e Ondina: elas procuram soluções para que os homens e mulheres do século XXI possam buscar a libertação das identidades hegemônicas, das determinações, dos impulsos que constrangem a liberdade, (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 138). Grandes signos, paradigmas, mitologias, podem ser entendidos − pensados − a partir de uma reflexão negativa: por que e como nos falta liberdade para amar?

    Gaúcha do sul do Brasil, depois que já era mãe cansada e ansiosa, discretamente desiludida, cheguei a escrever uma interpretação sobre às mulheres na Revolução Farroupilha para enviar a um concurso. Minhas preocupações sobre a liberdade e a falta dela, lá pelas tantas, levaram-me a cometer o sacrilégio de reescrever Érico Veríssimo, colocando pensamentos na cabeça de Bibiana, a esposa do capitão Rodrigo, personagem principal no enredo da trilogia. Eu tentando desfazer, rasurar, a incômoda separação que a obra O Tempo e o Vento fazia ao ordenar em cena as mulheres carinhosas e jovens, como Bibiana, e as desde novas já velhas, secas e duras, as solteironas, como Maria Valéria, estáveis em seus destinos celibatários. Não me identificava nem com as carinhosas e preferidas dos homens que gemem, nem com as excluídas do amor conjugal. Não fui classificada no concurso, obviamente.

    Talvez por ter sido uma das protagonistas desse feminismo em luta contra a ditadura militar, inaugurada em 1964 e desmanchada em meados da década de 80, e ter seguido sempre insatisfeita com os papéis femininos determinados pelas tradições tanto de esquerda quanto de direita, publicamente insatisfeita e sempre escrevendo sobre, talvez por isso tenha sido convidada por Flávia Timm e Ondina Pereira para prefaciar este livro, O Eu do Amor. Um livro no qual as autoras fazem um esforço intelectual de viés acadêmico para, exatamente, descrever como as normas sobre comportamentos amorosos destinam as sociedades modernas ao sofrimento e à frustação em ambiente doméstico. Mesmo tendo um percurso e um texto não adequado ao modelo acadêmico, senti, no andar da escrita das autoras, tão diferente do meu, a busca por um mesmo sentido de fuga das obrigações que sempre nos fizeram sofrer por causa dos homens. Pela ausência deles, ou pela presença frustrante, às vezes violenta e frequentemente incômoda.

    Uma dor insuportavelmente solitária, contam as autoras, vai sendo produzida pela centralidade do amor na modernidade que a ameaça de ‘perdê-lo’ formou o elo necessário para se desejar o sacrifício e o controle sustentados pela naturalização do esforço desmedido (o trabalho exaustivo) que visa a alcançá-lo ou a mantê-lo, pois sua perda transformou-se em trauma (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 25).

    O que Flávia e Ondina tentam alinhavar neste corajoso percurso que fazem com o apoio em Foucault, Deleuze, Guattari e Suely Rolnik é uma crítica intensa ao que chamam de amor-norma, quando dizem é necessário encontrar os jogos de poder cujos efeitos aparecem na oposição entre a vida doméstica e a vida pública (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 26). É emocionante ver inúmeros e diferentes feminismos tentando desarmar a estrutura compacta e milenar que na Bibiana do Érico Veríssimo era, ao meu olhar de mulher jovem − em 1985 −, uma clausura perfeita na intimidade fechada existente entre a personagem mitológica da gauchinha carinhosa e seu amado Rodrigo Cambará.

    Neste livro, uma psicóloga e uma antropóloga desenvolvem combate sem trégua às práticas da psicologia das terapias popularizadas em um Brasil leitor de revistas para mulheres, psicologia que prega a higienização das condutas e dos corpos − femininos e masculinos − de modo a se cristalizarem como humanos produtivos e bem dispostos. Flávia e Ondina defendem e praticam a psicologia política, uma escolha pelas escutas, pelas alteridades e pela retirada das chaves de cura das mãos dos acéticos especialistas em amor normalizador. Para elas, esse amor que alcança na teoria um efeito de bom funcionamento fixa-se nos contornos do medo da solidão, medo do desamparo, medo, enfim, de uma vida múltipla e potente (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 32). E é sobre esse efeito, buscando preservá-lo que agem e são formados exércitos de psicólogos, pedagogos, psiquiatras, advogados etc., que compõem, no entender das autoras, uma ampla área de saberes que exigem de todo o indivíduo um saber sobre si: saber-sexo, saber gênero, saber-família, saber-amor (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 33).

    Tudo leva a crer, segundo a tese central do livro, sermos uma sociedade de esforçados avatares dentro dos quais são como que socadas toneladas de enunciações, via mídias hollywoodianas e escritas célebres, nas quais precisamos ser maravilhosos e diante das quais nos sentimos míseras vítimas de amores impotentes, quando não mortíferos.

    Pensando a partir de textos de autores como Kipnis e Sennett, o livro conduz-nos a refletir sobre o fim do espaço público acolhedor, tal como foi pensado pelo moderno republicanismo, dando lugar a um surpreendente mundo fora das nossas casas realizando um labirinto de lugares perigosos e inóspitos ou, por outro lado, lugares apoteóticos – muito caros ou muito baratos – de realizações de missas na forma de espetáculos pós-modernos ou fundamentalistas. Estamos diante de um contexto social em que as coisas públicas são configuradas por meio de imagens de polícias, exércitos, campanhas publicitárias, alucinações coletivas, perigos e frustrações. Estamos diante de fracassos coletivos de sociedades inteiras, no início do século XXI e, ao menos no Brasil, ainda assim – talvez por isso mesmo – temos uma esmagadora maioria da sua população instalada, à noite, em frente a televisões que, barulhentamente, divulgam imagens de casais felizes, famílias bem cuidadas andando em carros caros e consumindo roupas, bebidas, diversões e viagens como se fosse dado a todos serem jovens, bonitos e carinhosos... e galhardamente consumistas. Essa a imagem kafkiana de um aniquilamento do projeto de modernidade livre: autômatos em frente a telas prestes a gritarem impropérios, uns aos outros, quando não a se atacarem a tapas, facadas e tiroteios sangrentos.

    Vivemos – já estamos nos dando conta − em um final de processo civilizatório cujo ápice ficou conhecido como a modernidade ou a era moderna. São muitas as linhas de investigação sobre o que, afinal de contas, não deu certo nas diferentes concretizações da declaração dos direitos dos homens de 1789, a resultante da mãe das revoluções modernas, a Revolução Francesa. Uma dessas investigações, desenvolvida como narrativa por Tocqueveille², defende que o mundo anterior se estruturava no ‘plano da herança’ e o moderno no plano da ‘exigência de autenticidade , conta esse livro. E esse lugar sem referências, dizem Flávia e Ondina, nada mais é do que o deserto de objetos parciais do capitalismo global.

    Dentro desse fracasso, a lei brasileira 11.340/2006, popularizada como lei Maria da Penha, ao receber o nome de uma mulher vítima de violência conjugal, é analisada no livro e dela as autoras declaram: ela não é uma resposta suficiente para criar vias de acesso à autonomia das mulheres frente aos processos de subjetivação marcados pelo capital, patriarcado, racismo, classismo, entre outros sofisticados sistemas de oposições hierárquicas que funcionam plenamente no que chamamos de nossa democracia (TIMM; PERREIRA, 2020, p. 69).

    É em Michel Foucault que as autoras encontram uma escola de pensamento capaz de dar conta de uma crítica à sociedade das disciplinas, dos sistemas modelizantes que afetam o psiquismo com seus pacotes de significação. É nessa sociedade que vivemos o amor conjugal como um espaço íntimo no qual se pode escapar das mazelas do mundo público. Essa intimidade como disciplina revela-se como um processo de vigilância e controle internalizados. O panoptismo, dizem Flávia e Ondina, é exatamente essa conversão, no qual o olhar atinge e atua sobre toda a sociedade. E: No panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer.(TIMM; PERREIRA, 2020, p. 85).

    Em Foucault, as autoras encontram a possibilidade do desejo de que humanos possam usufruir de corpos livres. O livro intenta – por meio da desconstrução da mitologia moderna sobre os significados de liberdade como um feixe de acontecimentos contratuais equalizados naturalmente – buscar uma potência do pensamento sobre as possibilidades de significados inovadores – por isso, nômades – para a palavra liberdade. Será em uma leitura carinhosa da escrita spinoziana que Flávia e Ondina encontrarão uma ruptura com as repetições impostas pelos saberes disciplinadores da modernidade e uma abertura investigativa capaz de demolir modelos e introduzir um imaginário nômade do que, para elas, seria uma hipótese de amor-experiência.

    Se no tempo de Érico Veríssimo a maioria das jovens brasileiras queriam-se assemelhadas à bela Bibiana Terra, restando o lugar tradicional do padrão a solteirona para as mulheres que desde adolescentes sentiam verdadeiro pânico dos perigos evidentes da intimidade imposta pelos casamentos indissolúveis − o lugar das Maria Valérias, sempre secas, duras, infelizes e relegadas à condição de servas ou comandantes do funcionamento doméstico inscrito em um cenário auxiliar ao mundo das grandes e pequenas guerras dos homens − no tempo de Flávia Timm e Ondina Pereira, as levas de feminismos de todos os tipos conquistaram novas possibilidades eróticas para as mulheres não dispostas aos casamentos tradicionais. Multidões de Marias Valérias foram se metamorfoseando em nomadismos eróticos, foram embelezando suas sexualidades híbridas, andróginas e começaram a, ruidosa ou silenciosamente, fazer diferentes tipos de amores bons e belos, tanto com homens quanto entre elas mesmas (nesses novos tempos, em público e assumidas de modos civis). Por sua vez, as multidões de Bibianas da atualidade, ainda jovens, bonitas e carinhosas, tornaram-se inquietas.

    Confesso-me como uma pensadora tendente a simpatizar com o modo de escritura de Jacques Derrida, o que significa dizer que "toda apresentação terá sido representação", conforme encontro em Jean-Michel Salanskis³, e A presença é apenas convocada numa construção movente, que a representa, dividida entre os rastros textuais que a efetuam e a idealidade de significação inencontrável e ausente, para a qual ela aponta. Ou seja, no meu modo de entender não acadêmico, as repetições – tais como os saberes-norma criticados pelas autoras – nunca são as mesmas, elas vão sendo desconstruídas pelos devires da história. Segundo a mesma ontologia derridiana, as diferenças não serão, em algum momento, meramente liberdades, assim como se fossem em um campo sempre inaugural e perpetuamente nômade. Sempre serão liberdades inscritas como rasuras dentro de um sistema de ordenamento do dever ser em sociedade, pois onde há forma há lei. Como Derrida buscou em Heidegger, segundo Salanskis, a forma faz-se ente desde a sua presença subtraída de um ser que, ao se mover para dentro de uma forma, não estará mais em estado de absoluta liberdade. Assim sendo, podemos imaginar que a palavra direito faça-se presença em qualquer modo como seres humanos venham a se organizar em sociedade. Não podemos imaginar uma sociedade sem formas articuladas entre elas. Nesse modo de pensar, o problema passa a ser qual o modelo jurídico que deveríamos imaginar – ou melhor, quais constelações jurídicas poderíamos supor – para que se fizesse direito o amor em liberdade, direito às escolhas amorosas sem o constrangimento de qualquer tipo de violência disciplinadora para além da violência mínima que se realiza nas perdas acontecidas pelos fluxos incontroláveis dos devires.

    Mesmo assim, as escolhas políticas das autoras deste livro tornam-se justas na medida em que se faz necessária uma potência de desconstrução das violências impostas pelos grandes sistemas disciplinares que desmoronam, no século XXI, em profusões de excessos e tragédias de grande magnitude. Voltando a Jacques Derrida, quando ele diz, em Força de Lei⁴: O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra. O que me faz ler este livro com imensa simpatia naquilo em que ele recusa-se integralmente a valorizar modelos jurídicos consagrados e suas respectivas dinâmicas judiciais, ainda mais em um cenário no qual há proliferação de

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