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Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero
Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero
Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero
E-book541 páginas6 horas

Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero

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Sobre este e-book

Quase na reta final deste (des)governo que tantos prejuízos promoveu durante os últimos quatro anos, com ataques sistemáticos à Ciência, às Universidades públicas e à Cultura do nosso País, e cujo legado será o aumento das desigualdades, da violência letal e o acirramento da barbárie, com muitos retrocessos e agressões frequentes à democracia brasileira, apresentamos a coletânea "Questão criminal no Brasil contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero", que, entre outras reflexões, explora e analisa diálogos sobre a criminologia crítica no Brasil e seus desafios para a questão do racismo estrutural presente em nossa sociedade. Organizada no período da pandemia da COVID-19, e que ainda não está superada, os 17 artigos que compõem a presente Coletânea foram escritos por diversos/as pesquisadores/as oriundos/as das ciências humanas e sociais, motivados/as pela colega Elizabeth Lobo, falecida em junho de 2019, e a quem dedicamos esta publicação.

Miriam Krenzinger

Rio de Janeiro, agosto de 2022.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de dez. de 2022
ISBN9786525257822
Questão Criminal no Brasil Contemporâneo: diálogos sobre criminologia crítica, racismo estrutural e violências de gênero

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    Questão Criminal no Brasil Contemporâneo - Miriam Krenzinger

    DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE A QUESTÃO CRIMINAL NO BRASIL

    Luiz Eduardo Soares¹

    Miriam Krenzinger ²

    INTRODUÇÃO

    No vasto e complexo debate em curso no Brasil sobre crime e castigo, violência, racismo estrutural, punição, segurança pública e justiça, política criminal e sistema penal, polícia, repressão e prevenção, legalidade e direitos humanos, desde a transição democrática³, têm circulado inúmeros pontos de vista contraditórios, tanto na sociedade quanto nos círculos restritos dos pesquisadores e acadêmicos. Na ausência de uma visão hegemônica consistente capaz de dar respostas práticas, gerando efeitos correspondentes às expectativas sociais majoritárias, acaba imperando um mosaico híbrido, no espaço político do Legislativo, o qual se decide a arquitetura institucional e o ambiente normativo. Negociações ad hoc, em função de correlações conjunturais de forças, acomodam diferenças em arranjos anódinos, plenos de valores heterogêneos e perspectivas conflitantes, ainda que costurados por uma linha dominante eminentemente conservadora, que expressa o que se convencionou denominar populismo penal, a cuja supremacia adere certa esquerda punitiva .

    Assim, o modelo policial herdado da Ditadura permanece intocado, a despeito de tantas e tão profundas mudanças produzidas ao longo do processo de democratização. A política de drogas segue claudicante, ainda serviu ao paradigma norte-americano da guerra às drogas. O código penal espelha a convicção de que há que endurecer e perder a ternura, com penas mais longas e ímpeto encarcerador, em nome da segurança, mesmo que a díade lei e ordem seja mais a bandeira para demagogias e opressão racial e social do que expressão de lealdade ao Estado democrático de direito. Execuções extra-judiciais e a tortura continuam sendo usuais, praticadas contra os pobres e, sobretudo, os negros e negras. A brutalidade do Estado foi naturalizada, seja na opinião pública, seja nas rotinas das instituições que as praticam ou que as deveriam prevenir, bloquear e punir. A despeito de avanços indiscutíveis nas mais diversas frentes, no Brasil, desde 1988, apesar da redução de iniquidades observadas na primeira década do século XXI (governo Lula), persiste aquela que talvez constitua a mais dramática e crônica, a desigualdade social e racial no acesso à Justiça. Assim como prosseguem o racismo institucional, a criminalização da pobreza, a aplicação seletiva das leis, a violação de direitos, especialmente dos direitos dos presos. Tudo se manifesta como se algumas dinâmicas fossem atávicas e atravessassem, quase sem sobressaltos, sucessivas mudanças de regime político, enquadramento normativo e transformações socioeconômicas.

    Afinal, não foi a Ditadura instalado em 1964 que inventou a tortura, o racismo e as execuções extra-judiciais. Essas manifestações da barbárie nacional, perpetradas pelos aparelhos do Estado com o beneplácito das elites, foram intensificadas e redefiniram seus alvos, no último surto ditatorial, mas não foram suprimidas pela transição democrática, ainda que tenham sido condenadas, oficial e formalmente – o que não deve ser subestimado, é claro. Não faria sentido desprezar as alterações legais e institucionais. Elas foram decisivas e têm significado histórico inegável. Contudo, não bastaram para interromper um conjunto de práticas perversas, nem para revogar valores profundamente enraizados nas culturas de várias corporações situadas em posições estratégicas para a reprodução de opressões, preconceitos e iniquidades – independentemente da consciência dos atores sociais envolvidos.

    O Brasil tem taxa de 30,5 homicídios a cada 100 mil pessoas, a segunda maior da América do Sul, depois da Venezuela, com 56,8. No total, cerca de 1,2 milhão de pessoas perderam a vida por homicídios dolosos no Brasil entre 1991 e 2017⁴. Por outro lado, é o país no qual são investigados apenas 8%, em média, desses crimes contra a vida. O país da impunidade, dir-se-ia... Nada mais equivocado: se os crimes mais graves permanecem impunes, a população carcerária cresce em proporções avassaladoras. Em meados dos anos 1990, havia cerca de 150 mil presos no Brasil. Em 2012, eram 540 mil e 2016 tinha 726,7 mil pessoas presas, conforme o último levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, o que correspondia à terceira maior população prisional do planeta, apenas inferior à chinesa é à norte-americana. A taxa de crescimento tem sido a mais veloz do mundo. Em 2019, o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicava 812.564 de pessoa preses. Dessas, 41,5% (337.126) são presos provisórios – pessoas ainda não condenadas.

    A desigualdade social e racial no acesso à Justiça recobre um largo espectro. Estende-se da violação de direitos fundamentais das crianças à abordagem policial, da precária provisão dos serviços da Defensoria Pública à prolação das sentenças, assim como a forma do cumprimento das penas.

    Nada mais evidente, no Brasil, do que a associação entre seletividade policial e judicial, classe social e racismo estrutural. No campo das esquerdas, as divergências começam depois dessas constatações consensuais, quando surgem perguntas do tipo: por que essas dinâmicas continuam a se reproduzir? A que servem? O que seria necessário fazer para que fossem interrompidas? Que dinâmicas alternativas deveriam substituir esses processos iníquos? E, assim, por diante. Porém, não nos precipitemos. Retomemos o fio da meada. Voltemos ao enunciado de abertura: as divergências prevalecem. E o qualifiquemos: não se trata de divergências somente entre direita e esquerda, conservadores e progressistas, autoritários e democratas. Os desacordos e as contradições atravessam cada um dos polos mencionados, impedindo que sejam considerados campos dotados de unidade. Outro complicador para qualquer veleidade classificatória: subconjuntos em que se dividem os campos coincidem, ao menos em parte, com outros segmentos inscritos em outros polos. De tal maneira que uma tese ou seu portador pode ser ao mesmo tempo de esquerda, autoritária e conservadora, do ponto de vista de questões relativas, por exemplo, à homofobia, à política de drogas, à reforma do modelo policial ou à extensão das penas privativas de liberdade. As combinações vão se formando ao sabor dos dramas que frequentam a mídia, em cada momento, e do modo pelo qual se forma a agenda pública. Posicionamentos de lideranças políticas, institucionais e cívicas não raro são reativos e buscam sintonia fina com o humor da opinião pública majoritária.

    O que ocorre no espaço teórico e na comunidade acadêmica, ou entre os profissionais das instituições pertinentes ao campo da Justiça criminal e da segurança pública, não é muito diferente. Claro que há muito mais coerência, e que autores e operadores resistem às pressões das conjunturas. Afinal, não se deixam conduzir pelo oportunismo, uma vez que não têm interesse no mercado de votos e, por isso, rejeitam sem custos a demagogia. Entretanto, assim como acontece naquilo que se convencionou denominar opinião pública⁵, na mídia e nos meios políticos, os autores, pesquisadores, acadêmicos e profissionais da área, em seus discursos e nas opiniões que manifestam nos debates de que participam, produzem os híbridos mais variados, combinando valores, teorias, conceitos, ideologias ou persuasões doutrinárias com surpreendente criatividade, ainda que, por vezes, às custas da consistência. Um exercício taxonômico sumário e superficial revelaria composições curiosíssimas.

    Por exemplo: a defesa do modelo político-jurídico vigente em Cuba e a defesa do direito penal mínimo coexistindo no mesmo discurso. Ou: o convívio no mesmo discurso da crítica às violações dos direitos humanos perpetradas pelas forças policiais e a crítica da natureza burguesa e liberal dos direitos humanos, na teoria, ou quando aplicados em denúncias a violações perpetradas por Estados socialistas. Ou ainda: a presença, no mesmo discurso, do argumento que estabelece relação causal entre pobreza e criminalidade, ao lado da crítica ao caráter arbitrário e elitista da polícia quando escolhe abordar, prioritariamente, os jovens pobres e negros. E também: a valorização das garantias individuais como postulado axial incontrastável e a crítica genérica aos princípios do liberalismo.

    Deslocando-nos para o campo liberal e para o espaço conservador, as combinações também parecem ser, com frequência, no Brasil, surpreendentes e dificilmente sustentáveis em um plano metalinguístico que zelasse pela consistência conceitual, axiológica ou epistemológica. Por exemplo: um mesmo discurso postula a superioridade do paradigma liberal, prezando a liberdade de agentes econômicos para interagir em um mercado autorregulado, cultuando a inviolabilidade da vida privada e a autonomia das escolhas individuais, criticando o potencial opressivo do Estado interventor, e, ao mesmo tempo, sustenta a criminalização do uso privado de substâncias psicoativas e a proibição do casamento gay. Ou o argumento que fundamenta o individualismo e seu par, a igualdade perante a lei, é evocado no mesmo discurso que justifica ações policiais responsáveis por violação de garantias individuais. Nada disso deve chocar o leitor, sabendo-se que, em nosso país, liberais defenderam a Escravidão e propuseram golpes de Estado contra governos constitucionalmente eleitos, como ocorreu em 1964. Há uma longa história de um liberalismo antiliberal. E não só nos trópicos. Todavia, esse arremedo de convicções instrumentais embaladas em retórica respeitável não é privilégio de liberais conservadores. Ou seja, as teorias e filosofias políticas não se esgotam em seus universos conceituais. Elas ganham vida quando aplicadas ou reinventadas na língua franca das ruas.

    Há matrizes conceituais, fontes valorativas, referências político-ideológicas, dotadas de coerência interna e identidade própria. Contudo, elas são reinterpretadas criativamente por distintos autores, em contextos interlocucionários diversos, e circulam em comunidades discursivas diferentes. Para simplificar a análise, vamos focalizar um conjunto heterogêneo de posições, sem nos preocuparmos com sua classificação rigorosa.

    A finalidade do presente artigo, vale reiterar, não é mais que trazer à tona o caráter babélico do debate brasileiro contemporâneo sobre política criminal, segurança pública e temas afins. Esse caráter corresponde - mais do que à aplicação criativa das matrizes, gerando visões conflitantes e posicionamentos divergentes - à combinação sincrética das matrizes, que não é rara, ainda que nem sempre seja consciente e suficientemente trabalhada.

    No ambiente babélico, as divergências se multiplicam sem que haja um consenso mínimo sobre as razões do dissenso, sobre os motivos das discordâncias ou mesmo sobre os temas que são objeto do conflito de ideias. Os interlocutores atacam-se uns aos outros, os críticos entram em confronto ideológico, político, intelectual, não raro sem que saibam, exatamente, sobre o que estão discutindo. As diferenças de opinião ou de posições políticas mudam de grau e têm consequências bastante diferentes, quando partem de um consenso sobre qual é o objeto da disputa e quando não se entendem nem sobre esse ponto básico.

    Alguns dizem que é preciso aprimorar alguns mecanismos de algumas instituições, como penas alternativas com intenções pseudo-terapêuticas e outros respondem com críticas, sustentando que só o direito penal mínimo garantirá os direitos sociais, ao que outros respondem com outras críticas, sustentando que sem a participação comunitária não chegaremos a lugar algum, ao que outros respondem com mais críticas, sustentando que errado é o sistema econômico capitalista, liderado por elites que se beneficiariam da onda punitivista, cujos efeitos intensificariam os mecanismos de controle social.

    Nesse exemplo hipotético, apesar de haver consenso quanto a críticas incisivas ao sistema de justiça criminal em vigências, os temas sobre os quais as pessoas divergem são diferentes, os objetos sobre os quais se desentendem são diferentes. A tal ponto são diferentes, que não seria impossível imaginar que todos estejam de acordo quanto aos seguintes pontos: (a) é necessário aprimorar alguns mecanismos das organizações prisionais; (b) o direito penal mínimo deve ser defendido, porque é menos mal do que as demais opções; (c) a participação popular é condição necessária, ainda que insuficiente, para que um sistema de política criminal justo e democrático funcione; (d) o sistema econômico é perverso.

    Por outro lado, seria possível (e tem sido possível, nos encontros e desencontros do cotidiano, que testemunhamos nos debates que pudemos acompanhar em vários estados brasileiros) o inverso, quer dizer, uma situação em que todos concordem, referindo-se a objetos diferentes, mas supondo que se referem aos mesmos temas e objetos. Nesse caso, o consenso poderia ser apenas aparente e ocultar uma divergência de fundo. Por exemplo: (a) alguém diz que a violência policial está insuportável e propõe uma manifestação popular contra a polícia e a política de segurança; (b) outra pessoa concorda e defende a punição rigorosa dos policiais acusados de violência, abusos e violações; (c) uma terceira pessoa concorda e propõe que o Ministério Público seja convocado a cumprir suas obrigações constitucionais, fiscalizando as atividades policiais; (d) uma quarta pessoa também concorda e propõe que câmeras sejam instaladas nas viaturas policiais, para que todas as operações policiais sejam registradas e controladas.

    Apesar da concordância nas opiniões emitidas e até nas propostas práticas encaminhadas, as quatro pessoas do exemplo acima podem ter concepções divergentes e contraditórias, que passam despercebidas porque todos os interlocutores compartilham a ilusão de que falam sobre o mesmo tema, sobre o mesmo objeto. Na verdade, os objetos e temas são diferentes, o que significa que as posições coincidem, mas, no fundo, são respostas a perguntas diferentes e, por esse motivo, têm conteúdos distintos e até opostos. Para compreender essa rede de mal entendidos, a tripartição tipológica das matrizes conceituais revela-se uma ferramenta analítica útil:

    (a) A primeira pessoa que vocifera contra a violência policial não a considera um desvio, que deve ser evitado e que não tem sido evitado por incompetência ou cumplicidade das autoridades responsáveis. Ela considera, ao contrário, que a brutalidade policial é constitutiva da polícia e dos policiais, e que toda política de segurança é uma política de controle repressivo, que atenta contra as liberdades individuais e coletivas, em nome de um sistema panóptico e opressivo. Ela define as polícias como aparelhos repressivos do Estado, cuja função é manter o domínio de classe na sociedade capitalista. Reformar as polícias significaria apenas aperfeiçoar os instrumentos de dominação de classe. Torná-las menos brutais significaria mascarar a dominação de classe, para torná-la ainda mais perversa e eficiente. A opção dessa pessoa é a denúncia e o aproveitamento da revolta popular como combustível para a organização política. Mesmo o direito penal mínimo lhe parece uma capitulação ao direito burguês, que acaba por legitimar a ordem burguesa e suas instituições repressivas.

    (b) A segunda pessoa que protesta contra a violência policial e defende a punição rigorosa dos policiais violentos o faz em nome do fim da impunidade, que considera a principal causa da criminalidade e da violência. Ela defende uma política séria e dura de lei e ordem, e acredita que a polícia deve dar o exemplo, respeitando a lei e só usando a força nos limites da lei. Ela crê que as leis devem se tornar mais duras, as penas mais extensas e as ações policiais mais rigorosas, embora sempre dentro da lei e, portanto, sem violência – essa pessoa entende que não há violência quando a força empregada é aquela necessária para que a lei seja aplicada e se justifica quando há resistência, desde que corresponda à intensidade desta resistência.

    (c) A terceira pessoa rejeita a violência policial ilegal e também rejeita seja a ideia de que toda polícia é intrinsecamente comprometida com a opressão de classe, seja a tese de que as penas devem aumentar e o rigor policial deve ser intensificado. Essa pessoa é contrária aos marcos legais atualmente vigentes no Brasil. Ela prefere o direito penal mínimo. Ela propõe que se cobre do Ministério Público o cumprimento de suas atribuições constitucionais – nem mais, nem menos - e prefere ver o MP fiscalizando a polícia do que vê-lo investigando.

    (d) A quarta pessoa defende o atual modelo legal e institucional, mas acredita que reformas pontuais serão necessárias para que as leis vigentes - que considera positivas - sejam realmente aplicadas, o que tornaria os crimes mais raros, as polícias menos violentas e mais eficientes, a impunidade menor e a sociedade mais justa e segura. Por isso, sustenta não só a implantação do monitoramento visual das operações policiais, como a implantação de um sistema amplo de vigilância e monitoramento nas vias públicas, especialmente nas áreas conflagradas, para que tanto os policiais quanto os criminosos sejam identificados.

    O mais revelador é que esse gênero de confusão acontece em todas as esferas, nos debates mais diversos, inclusive entre especialistas. É claro que a opinião pública participa e sofre em meio a essa babel. Em parte, acreditamos que essa seja uma das razões da inconsistência dos discursos e das práticas de políticos, autoridades e gestores, do zigue-zague das políticas de segurança, das interrupções que impedem a consolidação das reformas eventualmente tentadas, e da indomesticável polissemia que caracteriza essa área, na qual todos se sentem conhecedores e para a qual todos têm propostas, sem que ninguém se entenda e sem que o diálogo público evolua.

    A IMPORTÂNCIA CENTRAL DAS CRÍTICAS GARANTISTAS

    Entre as disputas que se travam no campo do sistema penal e da política criminal - e não apenas no Brasil - , destaca-se o conflito que opõe os garantistas aos seus adversários ideológicos ou filosóficos, ou políticos. O foco exclusivo do garantismo penal é a proteção dos direitos individuais contra as invasões punitivas do Estado, contra as exacerbações do controle estatal, contra os avanços do direito penal sobre a liberdade individual.

    Alguns dos adversários do garantismo são os que defendem a prioridade do controle democrático e os que valorizam, positivamente, as funções da pena, seja como instrumento de inibição do crime, a serviço dos interesses maiores da sociedade, seja como retribuição ao mal cometido, seja como reparação indireta dos sofrimentos e prejuízos impostos às vítimas, seja como mecanismo de ressocialização dos apenados.

    Vamos acompanhar algumas das formulações do garantismo. Enfatizaremos o garantismo penal, porque acreditamos tratar-se da posição mais radicalmente comprometida com os princípios fundamentais consagrados na Constituição de 1988. O garantismo tem sido pensado e elaborado como uma crítica forte ao direito penal, em suas formulações tradicionais, demonstrando a subordinação dessas formas tradicionais de pensar e agir a mecanismos de opressão social.

    Não por acaso alguns dos principais pensadores do garantismo penal são oriundos da criminologia crítica (Baratta,1997; Carvalho,2001; Zaffaroni,1997). Mesmo havendo diferenças com o marxismo, com autores como Melosso & Pavarini (1996) ou L. Wacquant (2001), com a sociologia crítica de David Garland (1999) e com a visão mais extremada de Michel Foucault (1979) ou L.Houlsman (1996), o fato é que o garantismo, provavelmente mais do que qualquer outra linha de pensamento sobre política criminal, absorveu ou, pelo menos, dialogou e dialoga, sobretudo na América Latina, na França e na Itália, com os estudiosos que denunciam o comprometimento do direito penal e das políticas criminais com as desigualdades, a dominação de classe, a exclusão da cidadania, a discriminação racial, a estigmatização, a construção social das carreiras criminais, a criminalização das classes perigosas e a marginalização e o controle dos grupos sociais mais vulneráveis.

    PERSPECTIVAS DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA FACE ÀS POLÍTICAS CRIMINAIS E AO SISTEMA PENAL

    O debate sobre a política criminal sempre esteve vinculado aos campos do direito penal e da criminologia. Muitos autores (Andrade,1997; Roxin,1972; Barata,1997; Pavarini, 1996a) argumentam que essas disciplinas deveriam caminhar a partir de um modelo integrado de referência, imposto pela necessidade de um saber interdisciplinar. Nessa linha, a criminologia forneceria o substrato analítico do fenômeno criminal (análise do crime/criminoso) aos operadores do sistema penal (policiais, promotores, juízes, agentes e técnicos penitenciários), enquanto a política criminal se responsabilizaria por transformar as análises e orientações criminológicas em opções e estratégias de controle da criminalidade. Por último, o direito penal encarregar-se-ia de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico aplicado pela política criminal.

    Como o delito não tem realidade independente da norma que o identifica e designa como tal, delegam-se, nesse enfoque, ao direito penal, isto é, a seus intérpretes, assim como aos legisladores e criminólogos, papéis importantes na rotulação do que seja crime e criminoso⁶, já que são eles que fornecem as ferramentas conceituais aos que operam no sistema penal. Em outras palavras, direito penal e saber criminológico seriam referências centrais das decisões dos operadores do sistema penal, cuja atividade é inexoravelmente seletiva – observe-se que entre a descrição abstrata da lei e sua aplicação singular e contingente, realizada pelos operadores, há um complexo e dinâmico processo de articulação, que não se reduz à dimensão hermenêutica: é também político e marcado pelos jogos sociais de poder, discriminação, hierarquização e produção de desigualdades. Aqui, o racismo estrutural produz suas consequências devastadoras e o patriarcalismo inscreve sua marca, reproduzindo a dominação de gênero.

    Nesse enfoque, o campo do direito penal deveria estar orientado por um sistema de políticas criminais, seguindo os preceitos do Estado Democrático de Direito, sendo-lhe conferido um caráter estritamente instrumental. Isto é, as normas e ações penais expressariam um determinado modelo de política criminal (cf. Delmas-Marty, 2004) e falar de direito penal significaria tematizar um modelo de política normatizado, o qual, em razão das múltiplas possibilidades de interpretação no contexto sociocultural, estaria em permanente transformação.

    Por exemplo, na prisão de um jovem reincidente por porte ilegal de pequena quantidade de cocaína para uso pessoal (Lei nº 6.368/76, art. 16), oferecer-se-ia ao juiz (assim como acontece em todas as esferas do sistema, nas quais os operadores sempre se confrontam com esse repertório de interpretações e valores) os seguintes argumentos: (1) absolver o jovem por entender inconstitucional o art. 16, face à outorgada proteção da liberdade; (2) absolver o jovem por julgar que, embora constitucional o artigo em questão, a quantidade apreendida é insignificante; (3) condenar o jovem à pena máxima, em razão de reincidência, não admitindo pena alternativa por julgar esta medida socialmente não recomendável (CP, art. 44); (4) condenar à pena mínima ou pena média, admitindo a substituição por pena alternativa, não obstante a reincidência, por entender socialmente recomendável a substituição. Considerando-se o conflito imanente à sua decisão, o juiz, com o argumento de cumprir a lei, realizará, necessariamente dentro da lei, segundo a sua formação (liberal, conservadora etc.), uma política criminal aplicada a um caso concreto e singular.

    É interessante observar que a dúvida do juiz (assim como dos demais operadores) não será dirimida ou a margem de manobra da qual dispõe não será ocupada apenas por sua filiação teórica ou por sua identidade ideológica, ou filosófica, a uma ou outra linha do direito penal. Haverá outros argumentos presentes na cena da decisão subjetiva - e não me refiro aos traços psicológicos ou emocionais do magistrado, ainda que isso também pese, de alguma maneira. Os outros argumentos são aqueles que formam as linhas em que se divide o campo da cultura penal e os sistemas de política criminal - as quais ultrapassam o espaço da dogmática penal. Vejamos alguns desses outros argumentos.

    O ordenamento jurídico-penal brasileiro diz que o juiz deve aplicar a pena necessária e suficiente para a prevenção e a reprovação de um crime (art. 59, CP). A sanção penal terá, portanto, supostamente, caráter retributivo - afirmando a culpabilidade -, preventivo especial - enquanto medida de reabilitação e neutralização do condenado - e preventivo geral - servindo de exemplo para intimidar os demais cidadãos (Pavarini, M. 1996; Santos, J. 1997).

    O discurso que defende a função retributiva da pena argumenta que é legítimo o papel conferido ao sistema penal de castigar os infratores, via privação de direitos, em especial a privação da liberdade. Contudo, a crítica dirigida à função retributiva da pena afirma que esse papel é indemonstrável, pois o domínio subjetivo da vontade do apenado, que é indevassável, inviabiliza qualquer possibilidade de constatação sobre a realidade da purgação da culpa.

    Por sua vez, o discurso que defende a função preventiva especial da pena é geralmente utilizado por atores responsáveis pela aplicação e execução da pena. O programa de prevenção especial é sempre definido pelo juiz, no momento da imputação da sanção penal (nesses casos, ele é considerado suficiente para prevenir o crime). Tal programa, segundo as concepções pressupostas nesse discurso - e de acordo com a LEP -, deveria ser realizado por técnicos da execução penal (assistentes sociais e psicólogos), objetivando a harmônica integração social do condenado (conforme LEP, art. 1o). Além disso, ainda segundo a visão sustentada por esse discurso, a aplicação/execução da pena cumpriria a função simbólica de estabilizar as expectativas normativas da comunidade. Estaria, assim, demonstrada a utilidade do sistema penal para a proteção da sociedade: a reabilitação do criminoso reforçaria a confiança da sociedade nas leis e nas instituições, reiterando a legitimidade do Estado ao reduzir a criminalidade. Por outro lado, essa perspectiva entende que a não-punição do criminoso reduziria a confiança da população na inquebrantabilidade do sistema penal, estimulando a crime.

    Contudo, a crítica formulada a esse discurso procura demonstrar a falência do projeto institucional, sobretudo do modelo prisional. O argumento crítico afirma que a pena privativa de liberdade, atualmente, vive uma crise na própria base de sua fundamentação. Ainda segundo a orientação crítica, o conceito de reabilitação teria sido totalmente desmistificado, nos anos 1980, e as teorias que assumiam a punição como forma de tratamento e ressocialização teriam sido desmascaradas (Foucault, 1979; Garland, 1999; Christie, 1985; Thompson, 1998). Segundo esse discurso crítico, o sistema penal ter-se-ia revelado ilegítimo e irracional em vez de constituir pilar para a construção de um Estado Democrático de Direito.

    Resta, ainda, o discurso que defende a função de prevenção geral da pena: argumenta que a sanção e a execução penal desestimulariam a prática do crime, pelo menos na proporção da certeza da punição. Contudo, segundo o discurso crítico à prevenção geral, o desestímulo ao crime pela intimidação merece duras críticas por conta de dois problemas imediatos: (1) pode transformar-se em terrorismo estatal, porque a prevenção geral não é limitada por critérios bem definidos como acontece com a punição; (2) e pode violar o princípio da dignidade humana, porque o condenado é punido como um exemplo para influenciar a coletividade, ou seja, o sofrimento de um indivíduo é intensificado para influir no comportamento de outros.

    Nos termos dessa perspectiva crítica, os discursos que legitimam as funções preventivas (especial e geral) do sistema penal ou da justiça criminal vêm reforçando o direito penal simbólico, cuja aplicação redundaria em políticas de criminalização da pobreza. Em outras palavras, as políticas criminais estariam focalizando os setores vistos como os mais problemáticos da sociedade, para os quais o Estado não pareceria interessado em oferecer soluções alternativas, via políticas sociais, restando, portanto, soluções penais simbólicas. Esse sistema criminal, dito simbólico, estaria incidindo na psicologia popular, produzindo efeitos de legitimação do poder político e do próprio direito penal. A legitimação do poder político ocorreria, nesse sentido, pela ostentação de eficiência repressiva, a qual tenderia inclusive a proporcionar vantagens político-eleitorais.

    Segundo essa ótica crítica, a legitimação do sistema penal, além disso, viria se efetivando não somente através de intervenções simbólicas, mas também instrumentais. Isto é, a intervenção simbólica ocorreria porque problemas sociais receberiam soluções repressivas penais, como uma satisfação à opinião pública. Tal intervenção seria também instrumental porque revigoraria o sistema penal como uma estrutura desigual de controle social seletivo, dirigido contra as chamadas classes perigosas, ou os moradores de favelas e bairros pobres das periferias urbanas. Em outras palavras, o alvo social seria a força de trabalho excluída do mercado, sem função na reprodução do capital e já punida pelas condições de vida opressivas e degradantes.

    Para aqueles que propõem abordagens críticas - nesse caso seriam indiferentes suas fontes doutrinárias ou matrizes teóricas - , o discurso da prevenção geral estaria na origem da redução de todas as garantias constitucionais de liberdade, igualdade e presunção de inocência, entre outras, inclusive no âmbito do processo penal. A referida supressão de garantias estaria ameaçando converter o Estado Democrático de Direito em Estado Policial. Segundo essa perspectiva crítica, o discurso da prevenção geral escamotearia a relação da criminalidade com estruturas produtoras de desigualdades da sociedade brasileira, instituídas sob o manto legitimador do direito e garantidas pelo poder do Estado. Por isso, os teóricos inscritos nas tradições críticas - cujo ponto de convergência constrói-se na busca de alternativas à criminalização - afirmam, em síntese, o seguinte: não se necessita de um direito penal melhor, mas de qualquer coisa melhor do que o direito penal.

    Dito de outra forma, os críticos argumentam que a exigência incondicional da prevenção acaba subordinando o sistema penal a manobras arbitrárias do poder e que a erosão do direito penal democrático somente poderia ser evitada pelo abandono das atribuições preventivas do direito penal simbólico, em favor de formas adequadas de governo, nas áreas dos direitos civis e sociais.

    Os defensores de políticas criminais alternativas, independentemente de suas diferenças, argumentam que o sistema penal preventivo⁷ (geral e especial) seria incapaz (sem trair-se) de controlar a violência criminal e, além disso, violariam os direitos fundamentais. A elaboração de políticas criminais e penais deveria ser regida, de acordo com esse conjunto de enfoques críticos, por princípios democráticos de transparência e participação social, e por valores como corresponsabilização.

    Até onde os liberais radicais garantistas estariam dispostos a ir, em sua crítica às instituições da justiça criminal e a seus mecanismos de penalização, é um ponto de interrogação inquietante e reserva reflexões bastante interessantes e provocativas. Por outro lado, permanecem dúvidas sobre os limites do compromisso dos críticos e de suas concepções teóricas com a rejeição ao controle da sociedade pela via de sanções penais, especialmente a privação de liberdade, independentemente dos fins a que sirvam, ou seja, independentemente do modo de produção e da classe que esteja no poder. Além disso, estendendo o espectro das interrogações ao terceiro tipo discursivo, mantém-se aberta a questão relativa a alternativas que o anarquismo foucaultiano estaria disposto a propor à problemática da ordem social, da responsabilidade individual, da organização para a garantia de liberdades e direitos. Ou qualquer movimento propositivo estaria condenado a apenas reproduzir jogos de poder e apenas restaria a desconstrução crítica, na perspectiva de reduzir danos?

    Registre-se, ainda, que a filiação teórica das diferentes linhagens da criminologia crítica constitui um rico objeto de pesquisa, cujo desenvolvimento ultrapassaria, entretanto, os limites do presente estudo.

    O UNIVERSO DISCURSIVO CRÍTICO E SUA PLURALIDADE CONTRADITÓRIA

    Passaremos a examinar discursos críticos dirigidos a outros discursos que se caracterizam, eles mesmos, pela crítica às visões conservadoras. Ou seja, não há unidade no campo crítico.

    Comecemos por entender o que diz o garantismo sobre o discurso que propõe, como alternativa - ao status quo no campo da justiça criminal - políticas sociais como forma de prevenção da violência e da criminalidade. Os garantistas identificam nessa perspectiva o risco de securitização das políticas sociais, ou seja, a subordinação das políticas sociais à retórica de lei e ordem ou, dito de outra forma, a transformação dos direitos sociais em mecanismos de controle, ou ainda, a conversão de benefícios em estigmas.

    Quando realizam essa expansão do horizonte de suas críticas, os autores garantistas demonstram, segundo seus críticos à esquerda do espectro político-ideológico, as limitações de suas próprias posições e mostram que também caem nas armadilhas provocadas por confusões sobre quais seriam os objetos do dissenso.

    Autores que defendem a necessidade de equilibrar os direitos individuais com o controle democrático chamam a atenção para a filiação liberal do garantismo e afirmam que seu radicalismo tem pés de barro. Para justificar essa crítica, lembram o caso dos direitos difusos e as dificuldades que os garantistas têm para lidar com o conflito entre direitos, quando a mera perspectiva individualista e a preservação unilateral - e a qualquer preço - dos direitos individuais não são suficientes para dirimir confrontos entre os direitos fundamentais e os direitos sociais.

    Os críticos do garantismo que também partem de premissas progressistas dizem que a democracia numa sociedade complexa exige muito mais do que o samba-de-uma-nota-só das garantias dos direitos individuais, constitucionalmente consagrados, por mais que eles sejam sagrados e devam ser respeitados. Isso porque, para que eles sejam respeitados, seria preciso valorizar a política criminal, tanto na dimensão repressiva e propriamente penal, quanto na dimensão preventiva.

    Para alguns críticos progressistas do garantismo (Selmini,1996; Streck,1999; Soares, 2006), ações de prevenção da criminalidade não podem ser facilmente rotuladas e descartadas como securitização do social, até porque, muitas vezes, as ações preventivas se apresentam, exatamente, como alternativas aos processos de criminalização e têm o mérito de evitá-los ou de, pelo menos, reduzir os seus danos. Eles dizem que a população sofre com a criminalidade, particularmente com a criminalidade violenta. Lembram, inclusive, que os que mais sofrem com a criminalidade violenta (especialmente a letal) são os mais pobres, especificamente os jovens pobres e negros. Dizem que, se o controle social - preventivo e repressivo - não for eficiente, de forma democrática e nos marcos constitucionais, uma demanda por ordem autoritária trará riscos muito mais graves aos direitos individuais do que as ações preventivas e as ações repressivas legalmente realizadas. Ressaltam, também, que as populações das cidades têm se envolvido em políticas públicas e ações sociais bastante bem-sucedidas, no que diz respeito à prevenção da criminalidade violenta, e que esse sucesso, envolvendo a participação cidadã, tem colaborado para a afirmação crescente da consciência dos direitos e de sua defesa prática, por parte de movimentos sociais e entidades da sociedade civil.

    Os críticos mais ásperos da retórica garantista chegam a dizer que ela não passa de ideologia dos advogados elitistas de criminosos de colarinho branco, advogados que foram espertos o bastante para criar uma aura de nobreza em torno do que fazem. Claro que os autores não endossamos essa acusação simplista e grosseira. Entretanto, a evocamos para deixar clara a profundidade das cisões no interior do campo crítico.

    De toda maneira, qualquer que seja a posição adotada, todos temos de reconhecer que o debate não tem avançado ou tem avançado muito pouco e, certamente, muito menos do que poderia avançar, porque perdura a confusão sobre, afinal de contas, em cada caso e diante de cada disputa, o que é que se está discutindo, qual é o objeto da divergência, quanto de consenso se está supondo e sobre que haveria acordo, e em que termos se poderia melhor conduzir o debate.

    O garantismo é uma ideologia, uma teoria, uma perspectiva política a respeito de alguns temas? E quais são os temas focalizados por seus críticos? Seus críticos se dizem defensores da primazia da democracia e de sua viabilidade prática, e admitem o controle social em nome da defesa das condições políticas que tornam possível a manutenção de uma institucionalidade que proteja os direitos coletivos e individuais. Todavia, será que estão falando sobre a mesma coisa, os mesmos problemas, os mesmos fenômenos, os mesmos conceitos, os mesmos valores? Estarão realmente de acordo sobre a divergência? Sobre o objeto da divergência?

    Hoje, já não é mais possível deslocar para segundo plano a problemática do racismo estrutural e do patriarcalismo misógino, assim como as questões propostas pelos movimentos sociais LGBTQIA+. Não basta reconhecer os nexos entre as engrenagens da Justiça criminal e as divisões de classe. As lutas sociais contemporâneas, antirracistas, feministas e LGBTQIA+, iluminaram o que os debates intelectuais, mesmo aqueles inspirados por perspectivas críticas, tantas vezes negligenciaram. Como nossas mazelas não se limitam a negligências, envolvem os impasses que derivam da natureza babélica dos discursos públicos (e dos silêncios), logo se depreende a magnitude dos desafios que nos interpelam.

    UM MODELO DESCRITIVO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: CIRCUNSCREVENDO O DISSENSO

    Passemos, então, à anatomia de um conjunto de pontos de divergência potencial: o sistema penal. Eis o quadro analítico da justiça criminal vigente no Brasil, em cujo âmbito se estruturam os órgãos da segurança pública e do sistema penal. Observe-se que políticas criminais darão sentidos específicos à arquitetura institucional exposta no quadro, fazendo-a funcionar em uma ou outra direção, exponenciando ou limitando algumas de suas qualidades intrínsecas. Por óbvio, as políticas criminais serão afetadas por essa arquitetura institucional ou pelas determinações constitucionais que a instauraram. Entre estruturas e dinâmicas, inscreve-se a prática, inexoravelmente dotada de relativa autonomia, em razão da inevitável taxa de discricionaridade sem a qual um sistema de justiça pereceria. E, como sabemos, no seio da prática, instala-se a política - e não apenas aquela que se refere ao contexto normatizador do Legislativo.

    Quadro 1: Sistema de

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