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Cadernos dos primeiros cantos
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E-book236 páginas2 horas

Cadernos dos primeiros cantos

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Sobre este e-book

Série de poemas que versam sobre morte, amor, depressão, hedonismo, violência, preconceito, exploração do trabalhador, xenofobia, niilismo, conflito de gerações, misticismo, o fazer do poeta e enigmas da linguagem... Escritos em linguagem acessível, especialmente para a atual geração de adolescentes, explora suas angústias, conflitos e dúvidas do ponto de vista da mais extrema solidão ao convívio tumultuoso. A linguagem é forte, por vezes excessiva, inteligível, mas não simplista; sempre convida o leitor a refletir de forma mais abrangente sobre situações vividas ou se deter em minúcias e sentimentos, quase sempre ressaltando um tom de musicalidade em repetições de letras e palavras. Vê-se claramente o desenvolvimento de uma escrita particular ao longo dos três Cadernos (Capítulos).
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento12 de dez. de 2022
ISBN9786525433257
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    Cadernos dos primeiros cantos - Amilton de Araújo Cavalcante

    Prólogo antecipado para

    um livro que veio tarde demais

    I

    Acendamos um cigarro, talvez dois, esquente um café forte e amargo, temos um papo sério pela frente. Infelizmente, é preciso concordar, existem drogas que levam às outras, poesia é uma delas. Muito embora eu tenha por mim que não foi bem ela que nos levou às outras... Disse que temos uma conversa porque gosto, por questões de estilo ou o que seja, da associação entre escrever e dizer, entre a leitura e a conversa. Conversa, esta, que eu deixei passar, por vezes, sem muito me ligar nela, por muito, muito mais tempo do que gostaria que tivesse passado e, agora, ela tem para mim, como tudo o que ando provando ultimamente, o gosto das coisas que já deveriam ter acontecido.

    Deixei que o tempo passasse, você cresceu, tem, agora, outros vícios oferecidos por outros distribuidores, que eu tenho chegado tarde para oferecer meu narcótico às almas interessadas desta época. Como já não posso reclamar, pois tenho há muito me desviado do caminho, ofereço, como ofereço meus trabalhos de artesanato em praças movimentadas de grandes cidades, em companhia dos meus confrades artesãos envelhecidos, cansados e falidos da existência vivida, sem pensar muito sobre o assunto. Inclusive, tenho me desviado no próprio ato de me entregar a isto que aqui ofereço, nunca fui bom em coisas práticas. Falando nisso, o comércio é uma dessas coisas e quero que isto transpareça por aqui: Pagar para ter a obra, não pela obra, dizia meu professor de desenho. Pois bem, ainda quero me achar no direito de preservar estes valores, entregar-se com o devido primor àquilo que, pelo seu jeito de vir a existir como obra acabada, assim o exige. Disso, nunca abri mão e se ainda há algo de errado, além das falhas e limitações próprias a este livro, as quais farei questão de ressaltar, a culpa é toda sua.

    Adiada ou incapaz de ser feita, esta conversa, inconcluída no plano e engavetada no processo, não aconteceu até agora, mas você, de algum modo você aconteceu... Você não sabia, mas já existia em mim muito antes de abrir estas páginas e, como quem já conheço há muito tempo, já senti por você todos os tipos dos sentimentos possíveis: como simples possibilidade, presença distante, próxima, íntima mesmo, até o ponto de uma coisa neutra, apenas como coisa; um tanto de anseio, desejo, outro tantinho de amor, aversão e até repulsa. Você cresceu aqui dentro e, expulso, descobri, há pouco, que me interesso bem mais pelos leitores ideais que pelos leitores reais. Mesmo aqui fora, espero poder encontrar o que eu chamo de leitores ideais. Sei que eles existem, mas poucos poderiam sê-los, e estes, só em momentos e apenas numa parte do que são. Eles são apenas aqueles nos quais os versos mais à frente refletirão determinados estados interiores: tocando em vários pontos, saindo para fora, sensações e reflexões para as quais faltam ainda palavras. Pois bem, o que ofereço são essas palavras, mas sem muita pretensão de que elas descrevam rigidamente suas realidades. Contudo, estou ciente que essa é mais uma questão para incômodo do autor, não dos leitores...

    Uma coisa que sei é que duvido muito que poesia seja um de seus vícios hoje, não só pela posição desvantajosa na qual essa arte e seu correspondente artista se encontram no mundo atual (e já tenho escrito muitas páginas sobre o assunto que, devido à proposta, não estão nesta obra), mas também pelo fato de que aquilo que hoje em dia tem recebido esse nome, salvo raras exceções, é tão fraco e comedido que, mesmo quando podemos chamar-lhe, de bom grado, poesia, não possui aquele potencial viciante, falta ainda uma substância essencial na composição da... droga. E valeria a pena ler a palavra que não viciou, que deu prazer até ao ponto do desgosto, que não estragou relações e tomou boa parte do tempo de vida do seu autor? Faz sentido que eu pergunte isso justamente na obra em que estou prestes a apresentar o que escrevi no tempo em que essa arte me era mais suave e prazerosa? Quando nunca me foi tão fácil, mais rápido e menos trabalhosa do que tudo o que vim a escrever depois? Em contrabalanço a isso, só tenho a dizer que ela raramente me furtou tanto tempo de vida ao viver para ela.

    O meu leitor imaginário, possível ou efetivo já poderia ter notado, se não, anoto eu mesmo, minha completa aversão pela leitura para fins unicamente distrativos (sei que não é um bom lugar para falar disso, mas não posso evitar). A disseminação de um tipo de cultura ‘racional’ fez do livro um recanto cada vez mais seguro, muito embora, ao que parece, ela esteja se perdendo cada vez mais nestes cantos do mundo. Isso foi um ganho para a cultura do livro, mas uma perda a um modo bem próprio de se relacionar com a obra escrita. Tal como numa relação, quando uma ou algumas das partes envolvidas se sente lutando sozinha por uma causa perdida, em que não se sente de um lado a mesma vontade ou o mínimo de intensidade no querer do outro lado, nem há uma disposição igual da outra parte em fazer as coisas acontecerem, assim se sente o autor que considera e tem em alta conta essa relação própria que se pode ter para com sua obra. Isto pode desmotivar qualquer um...

    Lá fora é o mundo... Há trabalho a ser feito e até desempregados à sua procura, talvez você seja um deles: o que o procura, o que tem que levantar cedo para fazê-lo ou aquele que dá trabalho; há relações a serem criadas, mantidas, conquistadas ou nutridas, talvez não lhe reste muito tempo para fazer isso; há família, amigos, parceiros, colegas e inimigos, sobretudo há estranhos, muitos deles; há uma independência a ser conquistada e uma carreira a ser construída: no financeiro, no intelectual, no sentimental e, às vezes, até no geográfico; há uma política decrépita se reconstruindo em suas partes quebradas e uma política diferente a ser construída em suas partes ainda tão incompletas; há sempre mais uma questão social em debate, filmes, jogos e aplicativos, uma dezena de séries a pôr em dia, os papos previstos que ainda não foram jogados fora, pessoas novas que entram em nossos círculos quase todos os dias; há todo um baú de lembranças doces e ruins, a serem remoídas ou esquecidas; há um histórico interminável de patologias psicológicas e seus mais variados sintomas; há uma multidão de momentos de desvio de caráter; acima de tudo, há problemas, montanhas e montanhas de problemas: há crimes, misérias e fome, inclusive, há a miséria humana na fartura, há assédios, assassinatos, homofobia, misoginia etc., etc., etc... Então, por que diabos você, em um mundo de tantos pesos e seriedades, tomaria para si mais uma consideração dessa seriedade? Inda mais um peso tão desnecessário como é a poesia? Não é muita pretensão a minha lhe recomendar isso?...

    Pois bem, lhes direi um motivo, um que consigo pensar agora, não havia eu mencionado que essa cultura se encontra em crise em certas partes do mundo? Reforçá-la em uma de suas partes não seria ajudar a fortificá-la no todo? Não necessariamente. Lembrai-vos bem que sei exatamente a quem me dirijo aqui, pelo menos o tipo a quem me dirigi, portanto não terei o trabalho em defesa da necessidade de certas coisas, que pelo absurdo que seja, anda se fazendo necessário para justificá-las. Dentre essas coisas estão partes substanciais da cultura e a crise de suas bases é justamente um dos motivos dessa necessidade. Nutrir-se de uma produção cultural é nutrir de forças a parcela social correspondente aos meios de circulação dessa mesma produção, às vezes até aos responsáveis por essa produção, se a cada vez, em seu momento, damos crédito a uma e não à outra, fazemos uma escolha parcial. No fundo, uma necessidade do indivíduo determinada por circunstâncias, se não estamos de acordo com isso não importa ao que virá a seguir. O meio do qual falo não é algo neutro nem imóvel, também não surge do nada e nem só por acaso. Rasgado por suas próprias convulsões, essa parte do tecido social é o que há de mais frágil em suas crises, mas nós não estamos trabalhando no sentido de costurar seus rasgados, porque decidimos dirigir nossa atenção em apreciar o bordado.

    Não quero simplificar as coisas aqui, apenas resumi-las numa linguagem mais palpável, talvez até mais adequada. Sendo mesmo arte, não encaro o cerne da coisa como produto, nem a força que perpetua a sua circulação em um meio é, diretamente, um incentivo a esse núcleo artístico da coisa. Contudo, por mais infrutífero que seja, em termos de fruição artística, perpetuar-se e estender-se em terreno tão infértil, é aumentando seu meio de divulgação e fortificando sua força de circulação que há mais chances de ela ir cair numa terra mais fértil. Também, não quero com isso insinuar nenhum tipo de conceituação obscura e ininteligível, nem me privar da responsabilidade de um olhar lúcido no sentido de entender e explicar o que faço, relegando a arte e, especificamente, a poesia, nalguma esfera mística de quase-entidades dissolúveis somente captadas por intuições especiais caídas do céu de imaginações mais férteis que a minha. Só a um artista cabe dizer que arte não pode ser explicada, até agora foi principalmente a eles que interessou essa falta de sinceridade com relação ao próprio ofício, mas isto é apenas o esperado, afinal, é arte... Mas não apenas eles, muita coisa neste mundo deve muito do seu poder de encanto e influência à relação de ignorância com seu processo de criação, nos vários graus e camadas em que isso se apresente em um fato social. Eu, contudo, vivo à margem das calçadas, no anonimato da massa, sem nem mesmo conseguir me encaixar como devido nesta massificação. Ando sobrevivendo sem o dinheiro do aluguel para daqui a dois dias e, no momento, não há tempo para preencher páginas e páginas sobre avaliações de valores tão sutis em interações tão espirituais, nem eu possuo capital cultural o bastante para levar isso a cabo. Seria não só falso como impróprio adentrar mais a fundo nessa temática.

    Falava de tecidos e bordados... o que vem

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