Montanha Andonita: Os primeiros humanos
De Rubem Brust
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Montanha Andonita - Rubem Brust
1. MONTANHA DE NEVE
Hu estava sobre o platô empedrado que dava acesso às cavernas, olhando para o horizonte, de onde surgiu um ponto móvel vindo na sua direção. Estava ladeado por Iad.
Vistos de longe, pareciam saídos de uma paisagem de moldura, com aquelas imponentes montanhas de neve ao fundo. A tigre Iad também estava fixada naquele céu azul de primavera. Farejava o ar quase encostada no pequeno menino balbuciante.
Logo, aquele pontinho foi se ampliando, e já se descortinavam duas pontas aladas que se irradiavam majestosas no espaço, movimentando a ave Tzi, trazendo no seu dorso o pai desse menino.
O pai Andoni e o laborioso pássaro-transporte vinham de uma nova incursão aérea de trabalho nas regiões que se avistavam daquelas montanhas nevadas perenes, na distante era da pedra lascada, mais de novecentos mil anos anteriores ao nosso século 21.
Antes de pousar no terraço de pedra, o Voander emitiu um assovio leve e curto. Fenta saiu da caverna lentamente, precedida por seu ventre grávido, para recepcionar os dois trabalhadores, que traziam alimentos saudáveis para o grupo.
Hu, o primogênito, e a tigresa Iad davam pequenos pulos de alegria sempre que uma missão retornava de voos distantes e demorados. Andoni desceu do dorso de Tzi, e tanto o filho quanto a felina de cauda substanciosa, que inspirava cuidados dos outros, correram para recepcioná-lo festivamente.
O Voander de mais de três metros de altura foi lentamente caminhando até um pequeno reservatório de água, o qual era lavrado pela natureza em uma das extremidades do terraço, de onde o líquido cristalino jorrava de uma pequena corrente da montanha. Enquanto isso, Andoni esvaziava sua sacola recheada de peixes, frutas, raízes e chás, que estavam sendo estudados pelo olfato apurado da jovem dona de casa, Fenta, na plenitude de seus catorze anos. Andoni trouxera frutas estranhas, que nunca viram, e chás de diferentes aromas. Iad farejou bastante, e Fenta levou as frutas para uma pequena mesa de pedra ao ar livre para analisá-las.
Há poucos meses, o Voander Tzi presenteara a dona da casa com um pequeno pássaro das montanhas nevadas que tinha o dom de selecionar alimentos não tóxicos para a ingestão. Era um pássaro gordinho, com bico de papagaio, que tinha células olfativas muito sensíveis que o faziam se afastar de substâncias nocivas. Tinha uma plumagem multicolorida, como o arco-íris, e era repleto de vibrações eletromagnéticas. Era um presente da rica natureza, fornecedora de todo o necessário, para os seres que habitavam esse planeta. Chamavam-no de Ri.
O ser humano, possuidor de pouca sensibilidade e sintonia com a fartura da natureza, além de sua falta de percepção da riqueza que o cerca, dificilmente desenvolve esse dom, que só os seres chamados menos racionais
detém, pela simplicidade de sua existência e a incapacidade de se preocupar com a vida dos outros. Simples pássaros, fruto de uma evolução, que sabem que fazem parte de um todo harmônico e interativo ambiental, destituídos de uma vida autocentrada e egoísta umbilical, como seria a dos futuros seres humanos. São livres para desenvolver aptidões em consonância com a natureza multicolorida de várias frequências de vibrações eletromagnéticas.
Fenta começou a preparar a janta enquanto Andoni iniciou o fogo, secundado por Hu. Iad saiu correndo pela ladeira da enorme pedra para acolher uma de suas filhas, que a estava visitando.
Os quatro filhotes dela com Ied já eram adultos. Dois machos e duas fêmeas bonitos e saudáveis, que geralmente corriam o mundo com o pai e a alcateia de tigres nômades. Vez por outra, algum desses voltava todo estropiado e machucado, em consequência de algum entrevero na disputa de presas suculentas para saciar a fome. Outras vezes, havia confronto com ursos enormes na disputa de alguns territórios apropriados e pródigos em presas apetitosas.
Recentemente, um dos filhos se envolvera com um urso em um riacho piscoso da região. Havia alimentos para todos, mas o local meio acanhado, com pequenas florestas cercando, propiciou um encontro mais próximo, e o atrito foi inevitável.
Era frequente os ursos procurarem frutos em meio a florestas próximas da presença de tigres. Normalmente, não se digladiavam, mas os tigres gostavam de caçar alguns ursos, o que motivava reação. Em geral, essa disputa ocorria em torno do rio externo, próximo aos dois rios que antecediam a chegada à montanha.
A filha de Iad estava com muitas lesões no corpo, fazendo com que a mãe a lambesse, chamando a atenção de Fenta. As filhas já estavam acostumadas com a administradora das cavernas, em virtude de terem brincado muito quando pequenas no entorno familiar. Inclusive, o menino Hu também se divertia com as tigresas.
A montanha era o refúgio da família de Iad quando tinham algum problema de saúde ou mesmo de ordem familiar. A tigresa era uma mãe zelosa, o que motivava muitas vezes a visita de algum filho, trazendo alimentos e carinho para a felina.
O pai, o tigre chamado Ied, era um andarilho namorador que eventualmente encontrava os filhos. Tinha comportamento parecido a de muitos pais do século 21, desassistindo a prole da sua responsabilidade, mas se amparava na confiança intuitiva que tinha da natureza combativa da sua espécie. Portanto, não se poderia dizer que era como um despreocupado boêmio ser humano depilado do futuro.
O mesmo ocorria com Andoni e Fenta, que, sendo os dois primeiros seres humanos sobre a face da terra, estavam imbuídos de sentimentos e emoções iluminadas, que encontravam ressonância com a natureza dos seres que os cercavam e com os quais conviviam, compartilhando seus objetivos, vivências e até a segurança interna de que eles e seus filhos estavam assistidos por alguma entidade etérea e bondosa onipresente. Passava distante deles os medos desnecessários, que seriam criados pelos futuristas pais humanos.
A linguagem deles todos, seres humanos e não humanos, era muito diferente, mas a comunicação era feita através de vibrações eletromagnéticas, que se serviam de ondas elétricas do espaço, bem como da ressonância de moléculas de água presentes na atmosfera e nos cérebros interativos dos seres, ou através de ressonância dos neurotransmissores cerebrais, cujas moléculas possuidoras de anéis de carbono conferiam instantaneidade e real autenticidade de comunicação, com mais efetividade do que a da transmissão verbal e visual. Estas podem ser distorcidas por palavras e emoções provenientes do consciente egocêntrico de seres dotados de individualidade, que se julgam detentores de racionalidade
, como os humanos.
Portanto, nesses primórdios, a comunicação entre os seres da natureza não era uma fábula ou parábola, como hoje encaramos. Na nossa racionalidade, isso parece impossível ou soa como um conto infantil. No entanto, as crianças conversam com seres imaginários
, segundo a nossa ótica desconectada da pureza da infância, a qual, segundo dito há dois mil anos, é o que nos conduz para o reino dos céus ou para o que chamamos de reino da fantasia
.
Iad levou sua filha querida para perto de Fenta. A tigresa, já adulta, farejou a dona da casa e se lembrou dos cuidados que teve quando pequena. Encostou-se, lambendo a perna da mulher enquanto ela afagava seu dorso e passava uma pasta em suas lesões. Recebeu um pedaço de peixe e, junto de sua mãe, foi passear nas redondezas para pôr as conversas em dia, inclusive falar sobre a vida de seu pai gaudério¹.
Tzi, o Voander, jantaria com eles, seguido de repouso, para no outro dia visitar sua mãe e seu irmão mais novo em uma montanha próxima dessa cordilheira imensa. Era muito apegado e atencioso com sua família, o que causava admiração em Andoni e Fenta, que estavam em um aprendizado nesse planeta de vibrações coloridas. Ambos gravavam essas imagens e sentimentos de outras espécies nos seus neurônios espelho², assim reforçando seus instintos parentais naturais, bem como ativando os neurônios pirâmide³ das intuições.
Na última visita, Tzi levou Andoni na garupa, alçando voo para conviver um pouco com os da sua espécie e manter um clima de amizade e relacionamento entre as duas famílias. Isso infundiu em Andoni de maneira mais efetiva a naturalidade de um núcleo familiar de consideração e respeito aos seus e, por consequência, aos demais seres da nossa dimensão terrestre.
Andoni, lá no alto, em uma pedra que sobressaía da grande montanha, próximo de onde ficava o ninho da mãe de Tzi e seu irmão, sentiu-se grandioso com aquele cenário que parecia ter vindo dos céus. O ar límpido o inebriou com cheiros celestiais das alturas, como nunca tinha sentido.
A presença próxima daqueles grandes pássaros coloridos, naquelas alturas, os quais via e sentia com a visão periférica em uma imagem de fundo em câmera lenta, etéreos e silenciosos, emanavam uma energia tranquilizadora e o levaram para devaneios na vida acordada, que mais parecia vida dormida, aquela que os humanos do futuro chamariam de sonhos.
Ficou maravilhado com a ternura da mãe com os filhos e voltou da semiconsciência para a vida acordada, levando energias amorosas e sublimes no voo suave de Tzi no regresso à montanha.
Já tinha se passado dois anos da chegada do casal na montanha, após uma jornada longa que se iniciara no sul distante, na tribo de seus pais primatas pré-humanos, semimacacos, que não mais viviam nessa vida acordada.
Os dois primos, que eram o casal um, iniciaram uma nova vida no norte frio, formando uma comunidade junto aos seres não humanos, agregados no caminho empreendido. Evadiram-se de uma vida pré-humana da tribo, incompatível com suas emoções e aptidões mais elevadas e impregnantes de novas vidas, resultantes de uma mutação genética inexorável da evolução do planeta. Assim, afastaram-se da vida primata macacóide anterior que compartilhavam com seus parentes.
Com doze anos, já eram precocemente adultos e tinham um filho. Ela media 1,40 m, e ele, 1,45 m. O desenvolvimento desses dois novos seres estava acelerado e protegido por uma energia que se transformava continuamente, adaptando-se às necessidades da ânsia evolutiva. A sobrevivência da espécie humana precisava ser assegurada.
Andoni e Fenta receberam seus nomes das suas mães, inspiradas por uma energia taquiônica, mais rápida do que a luz, que passou parecendo não ter passado, transmitindo nomes de conhecimento cósmico. Mas, na vida acordada e no nosso planeta, chamavam-se Sont e Sent. Nomes que intuíram na infância passada na tribo, antes de se evadirem aos dez anos para uma vida distante e mais elevada do que a que vivenciaram junto a suas famílias primatas pré-humanas.
Gostavam de suas famílias, mas ingressaram em uma vida de consciência evoluída, dotada de vontade de realizações e da ânsia evolutiva que parecia provir de uma memória inconsciente anterior, transmitidas por energias de dimensões etéreas.
Após o jantar, a família humana e os peri-humanos, todos satisfeitos e cansados do dia, recolheram-se aos seus locais de costume. Tzi em uma altura próxima na montanha, e os tigres na entrada da caverna da família.
O menino dormiu protegido por Iad e sua filha. Havia um fogo residual fora da caverna, e os pais resolveram tomar um ar perto dele. A temperatura estava agradável. Sentaram-se de pernas cruzadas, de frente para o panorama estrelado da noite e de costas para a chama da pequena fogueira. Convidativo para relaxar e apreciar o universo envolvente.
Seguidamente faziam essa viagem físico-mental para absorver a energia indizível que permeava o todo indescritível do qual faziam parte enquanto seres primordiais da humanidade nascidos para a liberdade, para o livre-arbítrio e o amor incondicional, surgidos de uma energia criativa que tornou visível tudo o que preexistia, em um projeto da dimensão de uma consciência universal.
Ficaram silentes por um bom tempo, ouvindo o silêncio e viajando sem cannabis ou LSD, desnecessários para os seres primordiais. Fenta, porém, quebrou o silêncio, lembrando-se