Histeria: Ópera na Poética da Loucura
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Histeria - Danielle Myriam Domunt
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E CULTURAS
A todas elas, de todas as gerações e de todos os tempos, esquecidas ou lembradas pela história e as que ainda virão; histéricas, artistas, cantoras, filósofas, mães, filhas ou simplesmente mulheres.
A todos aqueles que enfrentam com coragem, a cada dia, o desafio de serem e de se tornarem aquilo que são.
Ao fruto do irromper poético do meu ventre, João Gabriel, com o amor devotado de uma artista pela sua criação.
À memória de Aurelina Lúcia Dumont, uma mulher incompreendida.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todas as pessoas que me inspiram como artista e que incentivam a minha carreira. Em especial, quero agradecer:
Ao meu companheiro amado, Werner Aguiar, pelas inúmeras contribuições filosóficas para o desenvolvimento deste livro e pelos apoios incontáveis na minha trajetória artística.
Aos mestres e mentores que me ajudaram a abrir o portal para o infinito e para o sagrado, que encontrei em minha voz; em especial Ariadna Moreira, Dr.ª Daniela Stieff, Dr.ª Marília Álvares e maestro Marconi Araújo, que de alguma forma estiveram envolvidos no meu preparo vocal para o espetáculo Histeria.
À Amanda Pinho, que me ajudou a entender e acolher minha própria dose de loucura e todas as nuances psicológicas do meu processo interpretativo.
Aos meus pais e aos meus amigos, pelas torcidas e pelos apoios ao longo da difícil carreira.
A todos os meus pupilos, que passam pelo meu estúdio para aprender e me ensinar as possibilidades infinitas da arte da performance e da interpretação vocal.
PREFÁCIO
¹
No início de seu livro Introdução à metafísica, o filósofo alemão Martin Heidegger (1899-1976) faz uma pergunta instigante: Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?
Trata-se de uma pro-vocação, um chamado a projetar-se para mover o pensar e retirá-lo do âmbito do senso comum. A provocação reside em colocar o pensamento a caminho de seu elemento próprio: questionar o que é digno de ser pensado, especialmente aquelas questões que de há muito já não mais são acionadas simplesmente por haver uma compreensão de que se trata de questões acabadas, já definidas.
É exatamente esse movimento que o livro Histeria: ópera na poética da loucura, de Danielle Dumont, realiza não apenas com desenvoltura, mas com ampla e intensa envergadura. A habilidade com que a autora desenvolve seu movimento de pensar articula-se desde uma conjuntura muito especial. Pensar, do latim pensare, tem um significado muito diferente do que a tradição metafísica ocidental definiu. Pensare quer dizer cuidar, curar, superar a indiferença.
O pensamento na metafísica encontra-se reduzido ao calcular, isto é, a contar antecipadamente com os resultados. Dumont nos lembra que o feminino, rejeitado nas possibilidades e oportunidades engendradas pelo pensamento calculador, tornou-se historicamente o lugar do cuidado, da cura e da superação da indiferença, pois em seus limites vigora o acolhimento do amor. Assim, dentro desses limites, pensar é cuidar, é curar – tanto no sentido de sanar ou de sarar quanto no sentido de gestar, amadurecer e fazer desenvolver, apurar, melhorar. Pensar, portanto, com Dumont é ter o cuidado da cura em toda pro-cura. E o que busca essa pro-cura? Acolher no amor o poetar, o criar, nem que para isso seja necessário manifestar a criação na loucura, na histeria, justamente o lugar para onde o patriarcado metafísico – ou a metafísica patriarcal, dá no mesmo – remeteu e relegou o feminino. Mais do que limites de uma classificação pejorativa da mulher, pelo menos nos 2,5 milênios de metafísica no Ocidente, a loucura e a histeria não são qualificações em que a mulher fora simplesmente aprisionada, mas tornaram-se as fronteiras de um solo fértil em que o feminino se estendeu para a criação em toda a sua envergadura, a poesia.
É dessa maneira que, neste livro, a questão posta por Heidegger ressoa na medida em que pode ser repetida em formulação semelhante, porém original: por que há antes o pensar e não o sentir? O sentir, o afeto, de há muito foi pensado como dimensão humana a ser superada pela razão e pelo intelecto. O que levou o pensar a ser considerado característica diferencial do ser humano (homem, animal racional)?
De maneira muito particular o pensamento ocidental se desenvolveu no sentido de realizar um esforço intenso para esmiuçar não somente a questão do ser, mas especialmente o sentido de suas possíveis respostas. Desde muito cedo, ainda na chamada época da filosofia pré-socrática – entre os fins do século VII e meados do século V antes de Cristo –, a decisão sobre a questão do ser ganhou prevalência sobre qualquer outra possibilidade de questionamento. Em Parmênides (530-460 a.C.), mesmo tendo sido um poeta-pensador – sim, porque não escrevia propriamente tratados de filosofia, mas poemas filosóficos que ainda mantinham uma conexão com a tradição oral poética, cuja substituição fora definitivamente consolidada com Platão –, a decisão sobre a questão do ser já se define como o caminho da persuasão, como o caminho da obediência porque acompanha a verdade. Somente o que é pode ser pensado. O caminho do não ser, por sua vez, é imperscrutável, pois não é possível conhecer o que não é. Esses caminhos, chamados por Parmênides como dignos de serem pensados, são, no entanto, por ele assumidos como excludentes porque contraditórios.
Ao escolher uma via, necessariamente não é possível seguir a outra. Nisso ainda residiria uma possibilidade de escolha não fosse o fato de que Parmênides acrescenta: pois o mesmo é pensar e ser
. Sela-se com isso o destino do pensamento identificado com o ser, com a positividade. Apenas o que é, somente o positivo, pode ser pensado. Não apenas o negativo fica excluído da abrangência do pensar, mas também a própria possibilidade enquanto constitutiva da realidade. A noção de realidade como somatório das realizações não comporta a não realização, nem sequer a possibilidade de realização. A visão da realidade como a totalidade e totalização da positividade, quer seja esta compreendida como objetos, quer seja entendida como realização, reduz a realidade à pura objetividade. Vista desde a identidade entre ser e pensar, da identidade da positividade e do real, a realidade é assumida sob o compromisso de que se identifiquem não somente objetos, coisas, situações, mas especialmente os comportamentos, as ações e a determinação dos modos constitutivos da existência.
O primeiro e decisivo desdobramento disso consistiu justamente na separação e oposição sensível/inteligível em Platão (430-347 a.C.), análoga à contradição não ser/ser: o inteligível, a ideia, é a dimensão perene a ser alcançada na superação da perecível e mutável dimensão sensível. Nessa oposição, tudo que não seja emanação da racionalidade do intelecto não possui legitimidade porque se lhe opõe como aquilo que há de mais inferior no ser humano. As palavras são de Platão na República [602e-603b]. O conhecimento verdadeiro se funda na perenidade e estabilidade das ideias, distancia-se do conhecimento de opinião baseado nas oscilações dos afetos, das sensações e dos sentimentos. Distanciado do afeto e do sentir, o pensar é identificado com a razão. Esta é a porção superior da alma, o elemento de validação da dimensão hegemônica do inteligível sobre todo o ser.
No entanto, ao reestabelecer os vínculos do ser com o afeto, a legitimidade do poeta será justamente contestada sob o argumento de que este não diz a verdade porque não possui saber racional acerca do ser. As determinações metafísicas do ser identificado com o saber racional, bem como a verdade como adequação entre esse saber e a realidade, reduzem a poesia à condição periférica de inconsistência ontológica e epistemológica. A ciência puramente matemática – do grego máthesis – é o que é suscetível de ensino e aprendizado independentemente da experiência sensível, isto é, desde o ato exclusivo da consciência inteligível. Na Modernidade, essa consciência inteligível, racional, adquire o status de subjetividade, o que subjaz à toda realidade. A prototípica separação sensível/inteligível culmina na conhecida relação sujeito-objeto.
A negação de toda experiência sensível implica a exclusividade do sujeito do conhecimento ou da razão em determinar o objeto. Trata-se da dicotomia interior/exterior. A subjetividade racional e matemática pré-determina a natureza do objeto. A idealização do objeto por parte do sujeito define o saber do mundo positivamente dado como um conhecimento a priori, normativo e universal. A representação do objeto ou do mundo no intelecto do sujeito consolida a redução do conhecimento como substância dotada de caráter exclusivamente propedêutico e instrumental. Conhecimento é serventia à disposição do sujeito na mediação do mundo objetivamente posto.
Na totalidade do mundo reconduzido à representação hegemônica da razão, a substituição da experiência singular e intransferível do real pela universalidade do conhecimento não desencadeia as ações primigênias e constitutivas da existência como movimento particular de auto-exposição desde si, desde o próprio. O ser em sua singularidade encontra-se separado da multiplicidade de suas referências, inclusive do nada e da possibilidade enquanto condição. Ao dessacralizar o acontecimento poético atribuindo-lhe um valor idêntico às demais coisas, dissolve-se aquele numa verdade matemática e inexperiencial de um espaço e tempo homogêneos. A tarefa a que se propõe a metafísica é a de uma desconstrução do concreto, isto é, um desenraizamento ontológico da compreensão do mundo para construir uma visão abstrata do real cujo pensar em presença é prescindível. Somente o que não está sujeito à ação do espaço e do tempo da experiência, mas sim o que se apreende desde o conceito inespacial e atemporal da ideia, é que tem existência real. A existência deve se dar como um puro ser sem qualquer concreção ou presença. Pois o que é concreto está sujeito às intempéries do espaço e do tempo, o concreto é passível de ser sagrado e também de ser pro-fano, o concreto corre sempre o risco de ser de um modo ou de outro, inclusive o de não mais ser.
Dessa configuração de realidade o livro de Danielle Dumont se afasta completamente para apresentar um panorama em que a experiência poética se articula em dois grandes eixos: o pensar que sente, o pensar-sentir e o sagrado, especialmente o sagrado desde o feminino. Isso não significa que há uma substituição do pensar pelo sentir. Há na verdade uma recolocação do pensar em outra perspectiva abandonada e rejeitada pela metafísica, que é justamente a perspectiva do cuidar e curar. O pensar não está assim disposto desde uma instrumentalidade, especialmente porque não possui uma forma previamente estabelecida do que seria um pensar corretamente. Se possuísse tal predefinição correta estaria em desacordo com o cuidado e a cura, ainda mais quando, como disse, isso se dá dentro das fronteiras do acolhimento do amor.
Aqui estamos novamente às voltas com o afeto. Este se conjuga com o pensar não porque se obriga que o afeto venha agora, de repente, a substituí-lo. A questão incontornável e insistente é que a doutrina de um domínio absoluto das ideias, dos conceitos e das representações nadifica o mundo em que a experiência humana de fato acontece e se desdobra. A ideia atemporal e perene, antes mesmo que a técnica no sentido antropológico instrumental, põe-se como dimensão referencial exclusiva de mundo com a pretensão de forjar uma realidade totalizada e unidimensional, dessacralizando e ofuscando a corporalidade temporal e mutável. A questão que persiste é que a liberdade concreta do corpo como origem vital do ser humano insiste em se insurgir contra a servilidade à ideia celestialmente desvitalizada. Não há pensar sem corpo e, portanto, não há pensar, cuidar ou curar sem afeto. Afeto é o elemento do corpo, seu ambiente de onde surge, brota e con-cresce, de onde a vida se torna exercício concreto.
Não há vida sem corpo, como não há corpo sem vida, assim como também não poderia haver não só o pensar, mas qualquer outro verbo constitutivo do viver: arquitetar, engenhar, construir, jogar ou ainda cantar, tocar, pintar, poetar etc. Pensar e todos esses e outros verbos constitutivos do viver são atos encarnar na realização concreta, concrescente do corpo e desde o corpo, isto é, desde sua existência. É um modo radical de autoexposição do humano, ou seja, um mostrar-se, revelar-se desde o movimento de si próprio em traspassamento dos limites da existência pessoal: ex-periência.
Danielle Dumont constrói uma narrativa original justamente a respeito de uma determinada ex-periência de ser mulher, de ser cantora, ser artista, ser poeta, criadora e, acima de tudo, de ser gente humana mesmo, cheia de pensar corpóreo e repleta de corpo pensante. Ser isso tudo, mas também o nutrir-se do não ser e das não realizações, assim como das possibilidades de ser e do anseio pelas realizações.
São esses os componentes constitutivos da experiência, do afeto, do corpo que teima em insistir como presença nesse mundo dissolvido pelo falacioso absolutismo divino de conceitos e representações. A vida continuamente se determina a si própria no transe entre o ser e o devir. É nesse transe que se inscreve o pensar como sentir e o sentir como