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Mad Maria
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E-book480 páginas6 horas

Mad Maria

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Sobre este e-book

Mad Maria, obra-prima de Márcio Souza, ganha nova edição com capa e projeto gráfico novos.
 
Escrito em 1980, Mad Maria é o segundo livro de Márcio Souza, romancista, dramaturgo e diretor de teatro, e foi adaptado para a televisão em minissérie da Rede Globo em 2003.
A narrativa se passa no interior da Amazônia e relata a construção da ferrovia Madeira-Mamoré entre 1907 e 1912. Na época, os investidores tinham o objetivo de construir uma estrada que pudesse competir com o Canal do Panamá. A ferrovia integraria uma região rica em látex na Bolívia com a Amazônia, mas, no caminho, encontraria obstáculos descomunais: muitas cataratas, milhas e milhas de pântanos e desfiladeiros, centenas de cobras e escorpiões, árvores gigantescas e inúmeros mosquitos transmissores de malária. Antes das obras chegarem ao fim, cerca de três mil homens estavam mortos, milhares hospitalizados e uma fortuna em dólares desperdiçada na selva.
Márcio Souza tece em Mad Maria um faroeste à brasileira e força o leitor a se embrenhar nos episódios históricos mais terríveis e inimagináveis da construção da ferrovia Madeira-Mamoré.
Na resenha para o Le Monde, também texto de orelha desta edição, Jacques Meunier escreve: "Mad Maria é um romance sem complacência, uma Ilíada proletária onde os deuses são substituídos por políticos corrompidos. Norte-americanos rapinantes. Chefes sem piedade. E seria errôneo acusar Márcio Souza de maniqueísmo: nenhum de seus personagens redime o outro. Finnegan, o mais confiante, o mais idealista, o mais fraternal, acabará na pele de um assassino. Assim são as coisas em uma Amazônia que deveria inspirar coesão, solidariedade, mas que exacerba egoísmos, multiplica suscetibilidades e conflitos, sacrifica o melhor pelo pior..."
 
"A ironia amarga de Márcio Souza germina diretamente do coração das trevas." – The New York Times Book Review
"Epopeia às avessas, romance notável de um Márcio Souza crescentemente mestre de seu ofício e transbordante de talento. Mad Maria é um faroeste à medida brasileira: sem ilusões, vigilante e pontiagudo como uma flecha na noite escura." – Jefferson Del Rios, Folha de S. Paulo
"Ao escolher os episódios mais macabros e inacreditáveis dos registros históricos dos cinco anos da construção da ferrovia e concentrando-os em três meses de pesadelo, Márcio Souza força o leitor — neste momento já quase mais um personagem emaranhado na vegetação — a confrontar aquele inferno." – Ariel Dorfman, Vice
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento2 de jan. de 2023
ISBN9786555876581
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    Mad Maria - Márcio Souza

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    S716m

    6. ed.

    Souza, Márcio

    Mad Maria [recurso eletrônico] / Márcio Souza. - 6. ed. - Rio de Janeiro :

    Record, 2022.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5587-658-1 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    22-81045

     CDD: 869.3

    CDU: 82-93(81)

    Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643

    Copyright © Márcio Souza, 2002

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-65-5587-658-1

    Seja um leitor preferencial Record.

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    Atendimento e venda direta ao leitor:

    sac@record.com.br

    Para Jamacy e América, meus pais.

    "I know he’s a son of a bitch,

    but he happens to be our son of a bitch!"

    HARRY S. TRUMAN

    Sumário

    Livro 1

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Livro 2

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Livro 3

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Livro 4

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Livro 5

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Livro 1

    Ocidente Express

    1

    Quase tudo neste livro bem podia ter acontecido como vai descrito. No que se refere à construção da ferrovia, há muito de verdadeiro. Quanto à política das altas esferas, também. E aquilo que o leitor julgar familiar, não estará enganado, o capitalismo não tem vergonha de se repetir.

    Mas este livro não passa de um romance.

    Preste atenção:

    Finnegan não sabia que os escorpiões começavam a aparecer no começo do verão.

    E o que era o verão naquela terra, afinal?

    Pelo que Finnegan podia notar, o verão era quando as chuvas caíam rápidas e os malditos escorpiões apareciam no chão da barraca, por entre os lençóis e cobertas dos catres, escondidos nas botinas e desafiantes com as suas pinças e caudas levantadas, estáticos, como pequenas escavadeiras mecânicas.

    Era o primeiro verão que Finnegan estava passando ali e começava a aprender sozinho a lidar com os escorpiões. Ninguém tinha lhe falado de escorpiões. Mas ele não podia se queixar, uma lista de horrores tão extensa, que dificilmente um homem poderia levar a sério, lhe servira de apresentação àquela terra.

    Finnegan sabia que mesmo os horrores precisavam ser comedidos para ganharem credibilidade, mas para aquela terra a imaginação humana parecia ter destinado um conjunto tão vasto de perigos e ameaças que ele tinha tomado isto como sinal de que algum tipo de mistério estava sendo escondido por esta espécie de cortina de exageros.

    Duas semanas, não mais que isto, foram suficientes para provar que ali não havia nenhum mistério e que a lista estava incompleta. É que Finnegan cultivara um sentido de comedimento quanto a horrores, próprio para um médico, mas que não se encaixava na perspectiva dos rigores que estava presenciando. O que tinha até então sido horror para Finnegan, ali não passava de uma tímida e ligeira calamidade quase indolor. A capacidade de suceder horrores parecia inesgotável, como os escorpiões. As tragédias irrompiam e naqueles primeiros dias ganhavam um sentido inescrutável. O bom rapaz que ele era abismava-se com a capacidade dos homens em suportarem os piores extremos. E o mais grave, de buscarem deliberadamente estes extremos e fingir, passar por cima, morrerem aos gritos, permanecerem indiferentes e taciturnos frente a desgraça do vizinho.

    Coisas da vida.

    Finnegan não sabia se algum dia seria capaz de alcançar esta indiferença taciturna, teimosa, fruto da insolência da miséria, diferente do espírito da aventura que ele julgara ser o móvel principal de todos os que chegavam até ali.

    E as tragédias nem eram mesmo trágicas, eram casualidades, acidentes de trabalho, infortúnios congelados na cadeia do prosaico.

    Naquela manhã, Finnegan já tinha esmagado alguns escorpiões. Sentia-se fisicamente bem, levantara da cama e sacudira vigorosamente as botinas antes de calçar, de onde invariavelmente caíam um ou dois daqueles repelentes visitantes. As carcaças destroçadas estavam no piso de madeira da barraca e logo seriam carregadas por um batalhão de atarefadas formigas vermelhas, pequenas, e que também faziam parte do interminável elenco de pragas naturais que gravitavam em torno da praga maior, a praga humana. Na verdade Finnegan ainda estava inseguro para avançar qualquer juízo definitivo sobre tudo. Era um rapaz esperto mas sem nenhuma experiência. Seus pensamentos ainda estavam verdes e não sabia se tinha sido realmente trouxa em aceitar o trabalho ali.

    O rapaz olhou para fora, as vidraças da janela estavam tão imundas que não permitiam ver o movimento dos trabalhadores que ruidosamente começavam a agir mal o sol aparecia. As vidraças permitiam à luz forte invadir o interior da barraca e nada mais. O calor ainda não havia se instalado. Todas as manhãs o calor era obrigado a lutar contra uma umidade que se entranhava fortemente em todas as coisas, que às vezes congelava os ossos na madrugada, machucava as articulações do corpo como as pancadas machucariam um lutador desastrado. Mesmo sabendo que o calor acabaria vencendo, Finnegan estava inteiramente vestido, parecia não se importar com o ambiente de sauna doentia que predominaria em sua rotina diária, entre as onze da manhã até as três da tarde. Vestia o uniforme completo porque era este o seu regulamento pessoal. Acima dos horrores, estava a eficiência profissional, a única arma que encontrara até então para suportar os mistérios que não existiam.

    Olhou para o interior da barraca, a luz não deixava nenhuma parte do ambiente na penumbra, era inacreditável aquela luz. Seus auxiliares já estavam fora, percorrendo as frentes de trabalho. A barraca estava praticamente vazia, mas não ficaria assim por muito tempo, ele sabia. Logo outros viriam se juntar ao negro barbadiano, inteiramente debilitado, respiração fraca, queimando de febre, que estava agonizando desde a tarde anterior.

    A barraca era a enfermaria do grupo de construção da passagem do Abunã. Finnegan viu o negro mover um dos braços e se aproximou. O homem tinha os olhos bem abertos, eram escuros e não refletiam nenhum brilho. O barbadiano murmurava alguma coisa que Finnegan aprovou com a cabeça, como se tivesse compreendido a agonia que o homem estava passando. Os dedos ásperos do moribundo seguraram a manga de sua camisa, ele entendeu e procurou colocar o ouvido próximo da boca do homem. Não custava nada ouvir o que o barbadiano queria dizer, talvez ainda continuasse delirando se a febre não tivesse baixado durante a noite.

    — Estou morrendo, doutor? — perguntou o homem.

    Finnegan colocou a mão no pulso dele, sentindo a febre, embora o gesto também fosse de solidariedade. Ficou calado olhando o homem murmurar a mesma pergunta.

    — Então eu estou mesmo no fim, doutor? — concluiu o homem por si próprio, já que não conseguia arrancar nenhuma palavra do médico. — O senhor também caiu na armadilha — disse o moribundo sentindo o corpo inteiro tremer de frio. — O senhor também caiu na armadilha.

    * * *

    Como que ao som das Doze variações em fá maior sobre ‘Ein Mädchen oder Weibchen’ da ópera ‘A flauta mágica’ de Mozart, por Beethoven, concerto para violoncelo e piano, um turbilhão de água precipitava-se sobre as pedras crispadas no salto principal da cachoeira do Ribeirão.

    O sol estava fortíssimo e milhões de gotas de vapor compunham irisações e um fino arco-íris. Uma grande balsa estava sendo puxada cachoeira acima, atada por grossas cordas. A balsa dançava ao ritmo demoníaco das águas furiosas. Um luzidio piano de cauda, negro, coruscando ao sol, estava amarrado à balsa.

    Os homens, quase todos índios, procuravam vencer a força da correnteza e arrastavam as cordas, de cada margem, com uma ansiedade desesperada. Mas a força humana pouco representava perante a correnteza que descia em velocidade fantástica. O único homem branco, Alonso Campero, gritava e corria, saltando as lajes de pedra, estimulando os índios.

    Com o mesmo nervosismo, sua mulher, Consuelo, acompanhava Alonso correndo pelas lajes de pedra. Consuelo não gritava porque estava inteiramente ocupada com as suas orações, já invocara todos os santos do céu, já fizera tantas promessas que, se o piano conseguisse atravessar a salvo as corredeiras, ela gastaria o resto de sua vida pagando promessas. E o mesmo fervor que dedicava para conseguir uma ajuda milagrosa do céu, ela concentrava no piano sobre a balsa.

    Os índios faziam o que era possível, mas ela sabia que era preciso muito mais, a violência das águas era maior do que qualquer esforço e exigia realmente milagres para ser vencida. Por isto, Consuelo rezava, sem parar, correndo atrás do marido, o coração disparando a cada imprevisto, uma blasfêmia escapando por entre as orações quando algum índio se desculpava e quase punha tudo a perder.

    Alonso não estava no seu ambiente e isto o deixava mais ansioso e apressado. O nervosismo não era apenas pelo fato de ter jogado praticamente todo o seu dinheiro naquele piano, afinal ainda tinha a sua pequena loja em Sucre, que vendia partituras musicais, instrumentos para bandas e um vasto suprimento para os inumeráveis instrumentos de cordas da cidade. Estava nervoso porque era o quarto piano de cauda importado da Alemanha, para satisfazer um sonho da esposa, e que não podia seguir o destino dos três primeiros, todos perdidos em uma das dezenove corredeiras letais do Madeira.

    O investimento era alto, representava anos de economia, mas o pior era ver sua mulher mais uma vez frustrada, chorosa, a beleza apagada porque ela tinha o temperamento infantil capaz de se ferir profundamente com sonhos não realizados. Como filho único de uma família de espanhóis, ele sabia o preço de um sonho desfeito.

    Alonso era um homem alto, os cabelos finos e escuros, rosto comprido e bem proporcionado, queixo bem desenhado guardando uma boca de lábios grossos a que o bigode espesso imprimia delicadeza e sensualidade. O corpo atlético possuía um tórax musculoso, braços e pernas fortes, mas tudo dissimulado pela altura. A sensualidade era adequada e os olhos azuis aguados lhe davam um tom romântico que nunca falhava ao contato com suas freguesas de partituras. Por isso, nenhuma mulher lhe desdenhava uma sugestão, mesmo a mais lacônica, o que o deixava orgulhoso, embora ele fosse inocente quanto ao seu magnetismo viril e acreditasse que o invariável sucesso na venda de partituras se devia ao conhecimento que ele tinha de música.

    Somente Consuelo sabia do poder magnético do marido, ela mesma caíra sob o fascínio dele, primeiro sem suspeitar do que realmente aquele moço sempre alegre era capaz e de como ela mostrava-se cada vez mais íntima com ele, todas as vezes que procurava a loja em busca das últimas partituras, das músicas da moda e das lições de piano mais recentes.

    Alonso estava cuidando sozinho da loja desde que perdera os pais, e parecia feliz com aquele trabalho calmo e especializado que lhe colocava em contato com dois mundos diversos e curiosos. Para as senhoras e senhoritas da sociedade culta de Sucre, a Casa Santa Cecília representava um ponto de afirmação de seus dotes espirituais, pois ali encontravam impressas as notas de Chopin, Mozart, Beethoven e outros mestres, para o deleite de certas noites especiais, reuniões um pouco enfadonhas, mas onde elas externavam talentos não exatamente culinários e assim participavam da vida cultural, atividade de homens. Com este lado da sociedade de Sucre, Alonso derramava o seu romantismo, e suas freguesas, observadas pelos seus olhares, saíam com braçadas de pautas, deixando o rico dinheirinho. Mas havia também um outro mundo, o das bandas de música do interior e dos violinistas e bandolineiros, gente mais aberta, alegre, debochada, que entrava na loja sempre no final do expediente e comprava pouco, partituras de dobrados, encordoamentos, palhetas, cravelhas, miudezas que financeiramente não pesavam pela quantidade, mas pelo contato com uma outra fauna da cidade, a dos boêmios, dos cabarés, bares e coretos de domingo. Para este lado, Alonso pouco dava de si, gostava de receber, perguntar, preencher a sua curiosidade de moço solitário que também sonhava, gostava de beber e da companhia de mulheres compreensivas.

    Fora deste ambiente, Alonso estava muito nervoso, gritava com a sua voz forte, estimulando os índios, sem tirar os olhos do piano.

    Tudo o que lhe vinha na cabeça, sempre, era esta sensação de estar deslocado no tempo. No período devoniano devia ser assim. E quem sabe, também no período cambriano. Collier sentia-se na pré-história do mundo.

    A bruma era forte, nada se definia bem. O frio matinal se dissipava em orvalho morno. Um corpo suado, metálico, mas de um metal escuro, misturava-se por entre formas esverdeadas, vegetais, avançando resfolegante como um dinossauro, ou um estegossauro, ou um brontossauro. Havia, também, brilhos repentinos de metal cromado, a bruma aumentava em intervalos compassados, era como uma respiração monstruosa, antediluviana, uma respiração num inverno rigoroso, embora o calor fosse forte. Os insetos faziam ruído e havia uma fricção de metal contra metal. A bruma era escaldante.

    Collier ouvia um resfolegar vigoroso, quase um áspero silvo de serpente. A bruma não lhe era familiar, o silvo de serpente sim, o tranquilizava. Mas a bruma dominava tudo e complementava-se e misturava-se no vapor do monstro que avançava lentamente, quase sem sair do lugar, arrastando o seu enorme peso com indolência e cautela. Por entre a bruma havia uma atividade febril de animais menores. Eram apenas mamíferos, pensava Collier, estavam ativos como sempre àquela hora da manhã, mas era praticamente impossível definir a ação deles. A bruma e o vapor transformavam tudo numa ilustração de paisagem pré-histórica, isto todos os dias. Vagas formas que se moviam por entre folhas de curiosos recortes, e ele estava, também, na bruma, dentro dela. Marcando as formas vagas que se moviam, estavam pontos de luz amarela. Pareciam vaga-lumes volteando em irritante lentidão.

    A bruma adensava-se conforme aproximava-se do chão. A coisa suada respirava vapor e avançava penosamente, rilhando. Estamos no rio Abunã, numa manhã qualquer, em 1911, no verão.

    No período cambriano devia ser assim.

    Collier estava enfrentando os piores momentos de um trabalho tecnicamente simples. Mas eram trinta milhas de pântanos e terrenos alagadiços. Os homens estão passando por condições de trabalho jamais imaginadas. Muitos morrerão, porque o trabalho é duro, porque nunca estarão suficientemente adaptados para enfrentar terreno não adverso. Collier gostaria de estar longe de tudo aquilo, não precisava mais se expor daquela maneira. Ele sabia que poderia adoecer, e quem caísse doente no Abunã estaria condenado. As condições de trabalho não eram o forte daquele projeto maluco.

    Collier podia ver um grupo de nove barbadianos carregando um trilho. O dia começava agora a clarear e logo o sol estaria forte e o céu sem nuvens.

    Os barbadianos já estavam bastante suados, as peles negras brilhando, e eles iam chapinhando na água, que lhes atingia os joelhos. Collier tem ali sob as suas ordens cento e cinquenta homens. O objetivo era atravessar os pantanais do rio Abunã com uma ferrovia, o que não parecia difícil. Os barbadianos carregavam o trilho na direção do sítio onde outros trabalhadores estavam abrindo valas com picaretas e pás.

    Collier sentia sede e seus braços ardiam, cheios de calombos. Quando ele passava a mão sobre a pele do braço, era como se experimentasse a pele grossa de algum sáurio. Os braços do engenheiro Collier tinham sido cruelmente mordidos pelos mosquitos. Tudo porque esquecera de vestir uma camisa de mangas compridas. Ele fora obrigado a entrar vinte metros na mata virgem e vira-se imediatamente sugado e ferrado pelos insetos. Seu cotovelo direito tornara-se uma maçã mole e sangrenta, o seu cotovelo esquerdo virara uma cereja madura.

    O sol agora ardia sobre a pele negra dos trabalhadores barbadianos, mas eles procuravam ficar protegidos, vestindo roupas fechadas e calças compridas, embora este não fosse exatamente o traje adequado para trabalhar a trinta e dois graus centígrados. A viga metálica do trilho brilhava à luz do sol.

    Collier estava com sede e sentia uma pontada de dor de cabeça, seu maior temor era ficar doente no Abunã, mas ninguém sabia que ele tinha medo, era um homem seco, fechado, quase sempre ríspido. Dentre as suas atribuições, ele chefiava os cento e cinquenta trabalhadores: quarenta alemães turbulentos, vinte espanhóis cretinos, quarenta barbadianos idiotas, trinta chineses imbecis, além de portugueses, italianos e outras nacionalidades exóticas, mais alguns poucos brasileiros, todos estúpidos. Os mais graduados, embora minoritários, eram norte-americanos. Os mandachuvas eram norte-americanos, e aquele era um projeto norte-americano. Mas Collier era cidadão inglês, um velho e obstinado engenheiro inglês. Todos os homens que se relacionavam diretamente com o engenheiro eram norte-americanos, como o jovem médico, o maquinista, o foguista, os mecânicos, topógrafos, cozinheiros e enfermeiros. Collier era o responsável por todos eles, mas só quanto ao aproveitamento de cada homem no bom andamento da obra, quanto ao resto, cada um cuidava de seu pescoço. O engenheiro estava com sede e muito medo de ficar doente, estava preocupado com o seu próprio pescoço.

    Os chineses trabalhavam no desmatamento, iam avançando pela floresta. Os alemães cuidavam do serviço de destocamento e da terraplenagem. Os barbadianos estavam no serviço de colocação do leito ferroviário. Os espanhóis, egressos do sistema repressivo colonial em Cuba, faziam as vezes de capatazes e compunham a guarda de segurança. Cada homem tinha o seu trabalho definido, e a jornada era de onze horas por dia, com direito a um intervalo para o almoço. Mas o aspecto de cada homem era igual, independente de sua nacionalidade. Todos estavam igualmente maltrapilhos, abatidos, esqueléticos, decrépitos como condenados de um campo de trabalhos forçados.

    Logo à frente de Collier vinha caminhando um trabalhador barbadiano. Um homem alto e magro que olhava para o céu e limpava o suor que porejava em sua pele. Os barbadianos possuíam feições muito especiais, mas este carregava uma máscara purulenta. Ele tinha os lábios e parte do rosto tomados por uma micose que o deformava de maneira repugnante. Ele agora estava olhando respeitosamente para Collier. O engenheiro o conhecia de longa data, era um bom trabalhador, um homem que tinha respeito, uma grande indiferença respeitosa por tudo que o cercava, incluindo Collier. A micose ficava irritada com o calor e costumava provocar coceiras torturantes. Por isto o trabalhador coçava desesperadamente até começar a sangrar.

    Não era um quadro agradável ver um homem esvaindo-se em sangue e suor, ou coçar-se furiosamente com lâminas de facas afiadas ou espinhos do mato. Não era nada agradável a visão do campo de trabalho ali no Abunã. E foi ali que o engenheiro Collier foi se meter.

    A locomotiva avançava lentamente, soltando fumaça. Era uma bela máquina, como um animal do período jurássico. Na fímbria da floresta, grandes árvores cretáceas, insetos silurianos, borboletas oligocênicas, formigas pliocênicas, juntavam-se.

    A vida fervilhava de maneira promíscua e os homens enlouqueciam naquele cenário cenozoico.

    Como as formigas que subiam e desciam pelos galhos das árvores, ele estava ali, mas se sentia invisível. Os civilizados nem pareciam se aperceber de sua presença. Ele estava confuso, sozinho, faminto; o pior era esta fome que não parecia querer passar. Dormia pouco e não se afastava dos civilizados, estava sempre por perto, não compreendia nada daquele trabalho que estavam fazendo com tanto desespero. É que, embora estivesse sempre por perto, não fazia parte daquele mundo que agora estava invadindo as terras que pertenceram ao seu povo nos tempos dos antigos costumes e de que os velhos falavam com emoção.

    Os velhos estavam mortos e as mulheres tinham se mudado para Santo Antônio, algumas estavam mortas e as vivas matavam os curumins mal estes nasciam. Os homens, mesmo aqueles mais fortes, também estavam mortos. A maioria encontrara o próprio fim enfrentando os civilizados, isto quando ele ainda era um curumim. Não que pretendessem enfrentar de verdade os civilizados, sabiam que os invasores eram brabos, mais brabos que outros índios sujos de tisna de peixe que desciam o rio para atacá-los, roubá-los e incendiar as malocas.

    Os velhos tinham tentado falar com os civilizados uma vez, estavam desarmados e traziam crianças no colo. Os civilizados não quiseram ser amansados e apontaram suas espingardas e não deixaram um só velho com vida, apenas as crianças que ficaram chorando e depois correram para a maloca onde contaram o que tinha acontecido.

    Mas tudo isto já fazia muito tempo, ele tinha visto sua família morrer de feitiço espalhado pelos civilizados, o corpo de seus amigos, irmãos, mãe, pai, os tios, queimando de febre e milhares de feridas espalhadas na pele, soltando mau cheiro.

    Agora, ele estava sozinho e não saía de perto dos civilizados porque estava invisível, como as formigas.

    A vitrine da confeitaria, repleta de variados doces e confeitos, era o seu maior encanto. Todos os dias, quando estava no Rio de Janeiro, antes de subir para o seu escritório, ele atravessava rapidamente a Avenida Central, entrava pela Rua 7 de Setembro, as pastas de documentos sob o braço, bem protegidas, e postava-se alguns minutos frente à vitrine da Confeitaria Colombo.

    Ele não gostava particularmente de doces mas da sensação de cobiçá-los através do vidro da vitrine. Era um velho costume que vinha, ele pensava, do tempo em que era uma criança pobre e somente lhe era permitido o sentimento da cobiça. Era uma explicação um pouco tola mas que ele guardava para si, como muitas outras sensações íntimas que ele nunca deixava extravasar, e por isto ganhara o rótulo de homem sério e objetivo. Mas ele não considerava muito a sua objetividade, era um homem sério, por isto aprendera que toda objetividade era uma maneira de Deus se manifestar, através de sua mente, guiando as suas emoções, o seu conhecimento, levando o seu discernimento a optar pelo melhor. O fato de continuar acalentando um costume da infância, os olhos ávidos na vitrine de doces, também era algum sinal de Deus que ele não conseguira traduzir inteiramente mas que deveria ter a sua utilidade.

    Naquela manhã de 1911, enquanto observava a vitrine da Confeitaria Colombo, Percival Farquhar já era dos homens mais poderosos do Brasil.

    A aparência exterior de Farquhar não denunciava a sua verdadeira importância. Parecia um homem qualquer, forte mas baixo, cabelos ralos, escorridos e castanhos, rosto redondo e olhos escuros. O braço que segurava cuidadosamente as pastas de documentos era modestamente musculoso e o antebraço coberto de cabelos mais escuros escapava pelos punhos da camisa branca, abotoados com moedas de ouro do Peru.

    Os trajes que usava, bem cortados, jamais ultrapassavam o limite da boa apresentação. Usava sempre roupas escuras e poucas vezes tinha sido visto sem o paletó e a gravata de seda fina.

    Mas isto era apenas a aparência, porque, quando começava a falar, trazia na voz uma confiança inabalável de rufião, uma perseverança de vigarista que desestimulava qualquer retaliação da parte dos interlocutores. Quando estava numa reunião, entre os seus funcionários, quase sempre os assuntos eram conduzidos dentro da mais estreita discrição, daí a sua fama de homem objetivo.

    Fora de sua cada vez mais influente organização, entre políticos, ministros, era uma reprodução da energia dos negócios norte-americanos. Sorria pouco, nunca prometia nada e cumpria rigorosamente todos os acertos. Por este motivo, era igualmente respeitado e odiado, o que ele compreendia perfeitamente, pois sabia que num país como o Brasil, repleto de vícios e não inteiramente democrático, a objetividade, ou seja lá que outro nome usassem, era uma virtude menor frente a dissimulação. E a dissimulação brasileira se parecia muito de perto com aquele cobiça infantil, quase uma volúpia inocente, que ele sentia observando os doces e confeitos defendidos pela vidraça.

    2

    Primeiro a gritaria, depois, tiros. Finnegan deixou o moribundo e decidiu sair, antes, completou a sua roupa com um chapéu esquisito, abas redondas onde estava costurada uma rede fina que descia até quase a cintura. Os enfermeiros, dois rapazes xucros, recrutados quando acabavam de dar baixa do exército, estavam entrando na enfermaria.

    — Outra desordem? — perguntou o médico, a voz querendo expressar frieza mas revelando um certo abatimento.

    — Uma confusão danada entre os pretos e os alemães. O senhor vem com a gente? — respondeu um dos enfermeiros enquanto ajudava o outro a retirar algumas macas de pano do armário de emergência.

    — Vítimas fatais? — quis saber o médico.

    — Um bocado.

    O sol estava realmente terrível. O engenheiro Collier, sujo de barro, vinha caminhando e cruzou com a comitiva do médico. Collier não conseguia se acostumar com as atitudes do rapaz irlandês que estava brincando de médico. Olhou para aquelas três figuras e deixou escapar um sorriso. Finnegan e os enfermeiros, usando aqueles chapéus com telas antimosquitos, luvas e botas de cano alto, pareciam três noivas futuristas. O médico devolveu o sorriso de Collier e passou os olhos de maneira clínica pelo engenheiro. Observava os cotovelos inflamados, as picadas dos insetos transformando-se em edemas que poderiam criar feridas, mas Finnegan não queria chamar a atenção para este problema.

    — Vejo que o senhor não está usando as roupas protetoras, Sr. Collier.

    — Dr. Finnegan! — Collier, de início, quando pronunciou o nome, foi com simpatia, depois perdeu a paciência. — Ora, não me venha foder o juízo...

    Collier nunca sabia se ficava irritado ou apelava para a ironia quando via o médico e seus assistentes vestidos daquela maneira. Finnegan também ficava desconcertado porque o que aspirava a receber da parte do engenheiro era no mínimo respeito pelo cumprimento das regras estabelecidas.

    — Mas o Dr. Lovelace… — tentou argumentar Finnegan.

    — Vá para o diabo com o Lovelace — respondeu de forma ríspida o engenheiro. — O Lovelace me inferniza a vida há mais de dez anos. Veio atrás de mim, me seguiu um milhão de milhas para me torrar o saco. Nem aqui no meio do mato estou livre das pílulas e falação dele. — Collier procurou se acalmar porque notou que o rapaz estava inteiramente desconcertado e isto podia desmoralizar o serviço médico perante os homens. — Desculpe, Dr. Finnegan, mas esses conflitos, essas mortes diárias estão me fazendo perder a cabeça. Todos os dias tenho de acabar com brigas que acabam em sangue. Isto não é trabalho para um engenheiro, é trabalho de idiota. E essa gente se mata pelos motivos mais ridículos. — Ao sentir que Finnegan começava a readquirir confiança, Collier contra-atacou. — Além do mais, o Lovelace não entende nada do que está fazendo...

    — Como, senhor? — perguntou o médico, novamente desconcertado.

    — Esqueça! — Collier observou que os enfermeiros estavam esperando, os braços ocupados com macas e os engradados de arame contendo garrafas escuras e bojudas como de cerveja, cheias de quinino.

    — Senhor, temos de parar o trabalho para ministrar a dose de quinino — disse o médico, timidamente.

    — O quê? Já perdemos muito tempo e a vida de cinco trabalhadores.

    — Eu sei, senhor. Vou começar a autópsia imediatamente. Me informaram que foram mortos por objetos perfurantes, há lesões...

    — Chega! O trabalho não pode ser interrompido e vamos ter de ganhar duas horas no fim da tarde.

    — Mas, senhor. Temos ordens para ministrar o quinino antes do almoço. O senhor não quer tomar logo a sua dose?

    — Eu não vou engolir agora nenhuma pílula infecta. Isto provoca náuseas.

    — Náuseas, senhor?

    — Vá para o diabo com esse olhar clínico. Espere a hora do almoço para fazer essa escória engolir essa coisa. Se tivéssemos pílulas contra a violência...

    — O problema é que andam roubando coisas dos alemães, eles desconfiam dos negros — disse um dos enfermeiros.

    — São todos iguais. Esses alemães estavam sem trabalho quando os agentes da Companhia descobriram eles, um bando de mortos de fome, perambulando no porto de Hamburgo. Os barbadianos são diferentes, conhecem o trabalho que estão fazendo, são profissionais. Eu sei porque já trabalhamos juntos na Zona do Canal do Panamá.

    — O Dr. Lovelace me contou que o senhor trabalhou no Canal do Panamá — disse Finnegan. — Ele me falou muito a seu respeito, parece gostar muito do senhor. Me disse que eu iria trabalhar com um homem competente...

    — E teimoso. Não foi isto que ele disse?

    — Teimoso? Creio que não foi exatamente o que o Dr. Lovelace disse — respondeu Finnegan com um sorriso.

    — Veja bem, eu sou o engenheiro encarregado de proceder à construção destas trinta milhas sobre o rio Abunã. Eu tenho de ser teimoso se quiser ser competente.

    — Mas é com teimosia e competência que a nossa civilização tem avançado — disse Finnegan, sem muita convicção.

    — Nossa civilização! Fazia muito tempo que eu não ouvia esta asneira. Foi preciso que um doutorzinho chegasse aqui para me fazer lembrar que isto existe. Um doutorzinho que está aqui só há algumas semanas e ainda se lembra que temos uma civilização.

    — Senhor, dentro de vinte minutos soará a hora do almoço — disse Finnegan, consultando o relógio e prudentemente mudando de rumo a conversa.

    Collier puxou o seu relógio e conferiu, o médico tinha razão.

    — Merda. Perdemos mais uma manhã e não conseguimos assentar nem um milímetro de trilho — disse Collier, irritado mas deixando o cansaço dominar suas emoções. — Me dá o comprimido de quinino, mas não interrompa o trabalho agora, espere os homens pararem para o almoço. Ah! Não esqueça de chamar os guardas.

    Um dos enfermeiros apanhou uma das garrafas e retirou o comprimido de quinino. Colocou na palma da mão de Collier enquanto o outro enfermeiro enchia um copo com água e entregava ao engenheiro. Collier jogou o comprimido na boca e engoliu.

    — Essas pílulas me deixam enjoado como uma mulher grávida.

    Finnegan sorriu e procurava se abrigar à sombra de uma grande árvore, seguido pelos enfermeiros. Pretendia esperar que chegasse a hora do almoço, para distribuir os comprimidos e retirar os cadáveres. Collier virou as costas e seguiu na direção do local onde os alemães estavam cavando. Mas ao dar alguns passos, sentindo o enjoo que começava a invadir seu corpo com uma ardência irritante na garganta, voltou-se para o médico.

    — Olhe para mim, rapaz, eu tenho cara de engenheiro? Eu tenho alguma coisa que ainda lembre que eu sou engenheiro? Ou que nasci em Londres e sou súdito do Rei Jorge V? Olhe bem para mim e veja se ainda resta algum traço de civilização depois de um ano neste inferno. Que espécie de engenheiro sou eu que manda abrir fogo contra os trabalhadores? Virei uma espécie de carniceiro raivoso, virei um bárbaro. Aqui todos viramos bárbaros, e eu estou farto das pílulas do Lovelace.

    O estridente apito começou a soar anunciando a hora do almoço. Finnegan apanhou uma das embalagens de arame com garrafas de quinino e, sem demonstrar preocupação pelo extravasamento emocional do engenheiro, caminhou na direção dos homens que estavam largando o serviço e preparavam-se para comer. As palavras de Collier não lhe tocavam muito e ele podia até encontrar uma razão superficial para explicar a irritação que o velho engenheiro sentia a seu respeito. Finnegan desconfiava que Collier, como todo antigo profissional, detestava novatos, irritava-se com a aparente pureza, fruto da ignorância, de todos os novatos.

    Consuelo era uma moça de suave temperamento mas de nenhum modo infantil como pensava o seu marido. O que ele costumava tomar como sinal de infantilidade, e isto não tinha nenhum caráter pejorativo para Alonso, era na verdade um instinto inato de perseverança, uma inteligência que se agarrava aos sonhos com tal tranquilidade que não tinha outro jeito a não ser ajudá-la a conquistá-los. O caso do piano era típico. O maior sonho da vida de Consuelo era poder ter em casa um piano de cauda alemão, para ela o instrumento mais perfeito que existia, e não sonhava por pura infantilidade, é que queria sempre ter o melhor, o que não era nenhum pecado neste mundo. Embora sem compreender o alcance do desejo da esposa, Alonso tinha certeza de que no fundo era realmente importante para ela a posse de tal instrumento. Como amava sua mulher exatamente por ser tranquila em sua perseverança, e porque afinal o sonho de ter um piano alemão tinha sido determinante para os dois se encontrarem, Alonso não media esforços para ver esse sonho realizado. E Consuelo era grata ao marido por esta afeição, pela determinação com que ele agia na realização de seu maior desejo. Era uma moça extremamente bonita e agora inteiramente desabrochada, tinha desabrochado em sua companhia, ele a vira tornar-se uma mulher, sentia orgulho por ter acompanhado dia a dia o novo viço feminino que nela se instalava. Consuelo tinha o rosto comprido e longilíneo como o de uma dama espanhola, os olhos amendoados e o contorno das sobrancelhas seguindo esta sinuosidade e acentuando a vontade de viver e de ser feliz que os olhos traziam. A pele não era exatamente alva, branca, era de uma cor creme, apropriada para seu corpo bem proporcionado, pernas altas, cintura que afinava depois da curva dos quadris. A boca era vermelha, os lábios não exatamente grossos lhe davam uma meiguice quando falava mas nunca revelavam nervosismo desnecessariamente. Consuelo não era uma mulher fraca e nem mesmo tímida para os padrões de decoro vigentes em Sucre. Mas não era nenhuma dessas moças modernas, de hábitos masculinizados, tão comuns entre as moças das famílias mais ricas que saíam para a Europa e voltavam fumando cigarros e dizendo coisas rudes.

    Agora, enquanto Consuelo rezava fervorosamente, Alonso acompanhava os índios que puxavam as cordas da balsa sem se descuidar. Procurara contratar os melhores em Santo Antônio, estava gastando um bom dinheiro com aqueles homens e prometera uma recompensa extra caso o piano chegasse intacto no pequeno povoado de Guajará-Mirim, depois de passar por todas as corredeiras. Mas Alonso não tinha muita confiança naqueles índios,

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