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A ilha maldita
A ilha maldita
A ilha maldita
E-book208 páginas2 horas

A ilha maldita

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Sobre este e-book

Era isto em tempos que já vão longe, em uma quase deserta enseada dos mares do Sul, não longe da famosa e pitoresca baía de Santos, na província de São Paulo. Os dois interlocutores se achavam junto a uma tosca choupana de pescador. O sol já se ia escondendo por trás desse imenso e alteroso cordão de montanhas chamado Serra do Mar a sombra que delas descia projetava-se já por toda a extensão das praias, ao longo das quais o mar se estirava preguiçoso, desmanchando-se em alvos flocos de espuma, enquanto os derradeiros raios de sol, que transmontava resvalando por um dos topes alcantilados da serrania iam espanejar-se ao longe pelo oceano, estendendo-lhe uma rede de ouro sobre o dorso enrugado.
IdiomaPortuguês
EditoraPrincipis
Data de lançamento27 de fev. de 2023
ISBN9786555528695
A ilha maldita

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    A ilha maldita - Bernardo Guimarães

    Introdução

    – Meu pai, que ilha é aquela que, às vezes, à tarde, lá se avista ao longe, tão longe que mais parece a popa de um navio que lá se vai mar adentro?

    Assim perguntava um rapaz entre quinze e dezesseis anos a seu pai, velho pescador, que se ocupava em consertar as malhas de sua rede de pescaria.

    O velho abanou a cabeça e nada respondeu.

    O curioso menino prosseguiu:

    – Aquilo me faz cismar; dizem que é uma ilha em torno da qual o mar está a ferver, e que ninguém lá pode chegar. Tenho perguntado a todo mundo, e ninguém me sabe contar o que ela é. Dizem que é uma ilha encantada, e que não há força do remo nem de vela que possa lá fazer aproar um barco. Quando se vai chegando perto, avista-se uma moça muito bonita, vestida de branco, cantando cantigas as mais lindas que se pode imaginar; mas é escusado querer lá chegar; a ilha vai fugindo, fugindo sempre. Meu pai não saberá me dizer o que vem a ser tal ilha?

    – Eu, meu filho?... talvez – respondeu o velho hesitando –, mas para que queres tu saber?

    – Não sei, meu pai, mas tenho tanta vontade de saber! Aquela ilha não me sai do pensamento.

    Era isto em tempos que já vão longe, em uma quase deserta enseada dos mares do Sul, não longe da famosa e pitoresca baía de Santos, na província de São Paulo. Os dois interlocutores se achavam junto a uma tosca choupana de pescador. O sol já se ia escondendo por trás desse imenso e alteroso cordão de montanhas chamado Serra do Mar; a sombra que delas descia projetava-se já por toda a extensão das praias, ao longo das quais o mar se estirava preguiçoso, desmanchando-se em alvos flocos de espuma, enquanto os derradeiros raios de sol, que transmontava resvalando por um dos topes alcantilados da serrania, iam espanejar-se ao longe pelo oceano, estendendo-lhe uma rede de ouro sobre o dorso enrugado.

    A pouca distância da praia, dentre os mangues e matagais do litoral, erguia-se vicejante colina, que se boleava graciosamente à maneira de uma cúpula.

    No cimo dessa colina alçava-se singela e alva capelinha, semelhando a pomba da arca da aliança, que, depois de ter pairado longo tempo sobre as águas, veio pousar sobre os montes.

    Em torno da capela algumas toscas e modestas vivendas formavam uma pequena aldeia habitada por pescadores.

    A tarde corria tépida e tranquila; o mar balançava-se frouxamente pelas longas praias, e os pescadores, que voltavam da faina diurna, amarravam seus batéis mesclando coplas de amor e de saudade aos monótonos e compassados bramidos do oceano.

    Em tais lugares e a tais horas quem, estando sozinho, não ficaria a cismar engolfando o pensamento nas profundezas do infinito?

    E quem não quisesse cismar se poria a cantarolar alguma xácara melancólica, como faziam alguns pescadores.

    E quem não quisesse cismar, ou não soubesse cantar, folgaria de ouvir alguns desses contos fantásticos com que os velhos sabem embalar-nos a imaginação.

    O rapaz de que falamos achava-se neste último caso; estava ansioso por ouvir alguma história bonita, principalmente a dessa ilha encantada que há muito tempo lhe preocupava a imaginação. Portanto insistia com o velho para que a contasse.

    – Meu filho – respondeu por fim o velho pescador, já fadigado das importunações do filho –, aquela ilha que tanto te dá que pensar é o Castelo da sereia, ou a Ilha da maldição. Aquele pequeno ponto que lá vês nos confins dos mares, e que não é tão pequeno como daqui te parece, foi a fonte de muitas lágrimas e desgraças, e tem sido a causa de muitos desastres para os habitantes deste lugar. Melhor seria que nunca quisesses saber a história do que por lá se tem passado.

    – Pois que mal faz sabê-la, meu pai?

    – Que mal! Ah! Meu filho, és ainda muito criança, e a curiosidade, própria da tua idade, pode despertar em teu coração o desejo de ir lá, e te acontecerá o mesmo que tem acontecido a outros rapazes imprudentes.

    – E o que é que lhes tem acontecido?

    – Vão e nunca mais voltam.

    O rapaz ficou pensativo por alguns instantes.

    – Mas, meu pai – prosseguiu ele –, eu não desejo pôr pé nessa ilha; Deus me livre de tal. O que eu queria era ver de longe essa moça e ouvir-lhe a cantiga, como dizem que muitos têm visto e ouvido.

    – Que dizes, menino? Deus te defenda. É certo que alguns têm-se avizinhado da ilha a ponto de ver essa moça e ouvir-lhe o canto; mas são bem poucos. O que é de crer é que nesse lugar malsinado mora uma sereia, fada ou alma penada, que anda a cumprir um fadário de maldição; e ai daquele de quem ela se agrada! Se cai na imprudência de se aproximar da ilha, uma onda traiçoeira, que decerto obedece aos conjuros da maldita, arrasta o barco do infeliz, que lá vai esbarrar no rochedo fatal, onde fica para todo sempre.

    – Mas eu bem podia ver a moça...

    – A moça, tolinho? Sabes tu o que ela é? Se é mágica, feiticeira, serpente ou o próprio satanás?

    – Pois bem, meu pai; eu juro que nunca tentarei lá pôr os pés; pelo contrário, fugirei dessa ilha o mais que puder. Mas se meu pai conhece essa história, que mal há em me contá-la? Deve ser bem bonita.

    – Não sei se é bonita ou feia; só sei que é verdadeira. E ao final de contas – continuou o velho, depois de um instante de reflexão –, melhor é mesmo que eu a conte; é bom conheceres o perigo para saberes fugir dele. Mas, já te disse, fica certo que não é nenhuma história de carochinha como essas que em pequenino te contavam; é uma história verdadeira, acontecida aqui por desgraça e escarmento deste bom povo. Meu pai, que a ouviu de seu pai, a contou a teu pai, de cuja boca agora vais ouvi-la. Dá-me toda a atenção, meu filho, e ficarás sabendo que quando fores grande e soltares teu barco ao mar deves vogar bem longe da ilha maldita.

    E, ao bramido das ondas que se quebravam brandamente ao longo das praias, o velho pescador contava a seu filho a história que eu por minha vez vou contar-vos, ó leitores, não com essa linguagem tosca e singela, mas, por certo, pitoresca e animada, que empregaria o pescador, e que eu debalde procuraria imitar, mas revestidas dos andrajos que minha pobre musa vai lhe emprestar.

    Portanto, os leitores não tenham este escrito como fiel reprodução do que dissera o pescador, mas, sim, como tradução livre e ampliada da história que durante alguns serões contou a seu filho.

    Um Casamento

    – Não estás ouvindo, meu filho – começou o velho pescador –, como estão alegremente repicando os sinos da capela? É que amanhã é dia santo, dia de Nossa Senhora do Amparo, que nos defenda do canto da sereia e de todos os malefícios diabólicos.

    Em eras que já vão longe, corria uma tarde serena e formosa como esta, e ali mesmo na nossa aldeia aqueles mesmos sinos repicavam, foguetes subiam ao ar, e o povo acudia de roldão à capela como para assistir a uma grande festa. Entretanto, o que ali acontecia era um simples casamento.

    Quem visse esse extraordinário alvoroço e afluência do povo pensaria que os noivos eram fidalgos ou magnatas, filhos de gente opulenta, que iam celebrar as bodas com grandes aparatos e vistosos festejos.

    Não havia, porém, nada disso; eram simples e obscuros habitantes da aldeia que iam receber na capela a bênção nupcial, com a maior singeleza do mundo. É verdade que os dois contraentes formavam o mais lindo e garboso casal que talvez se tenha visto nesta terra; mas também não era a formosura e galhardia deles que atraía toda aquela multidão e excitava tanto alvoroço e curiosidade.

    O que haveria, pois, de extraordinário naquele simples e modesto casamento, para torná-lo como uma festa popular, que arrancava de sua costumada tranquilidade toda a população em derredor?

    No correr desta história ficará patente a razão de semelhante fenômeno; desde já, porém, fica-se compreendendo que esse simples casamento era para os habitantes do lugar um acontecimento da mais alta importância.

    Com o favor de Deus iam-se casar Aleixo, gentil marinheiro, vindo das terras de além-mar, e Regina, formosa donzela, filha das ondas, como costumavam apelidá-la. A noiva tinha sido batizada naquela mesma capela e criada aqui à beira deste mar, entre nossos avós; mas ninguém sabia onde nascera ela, nem quais eram seus pais. Ainda muito menina, fora atirada a estas praias em uma noite de tempestade; devia ser uma pobre criança escapada milagrosamente de um terrível naufrágio; pelo menos assim pensou a boa mulher que a encontrou na praia e a recolheu e criou em sua choupana. Mas o povo não quis acreditar em tal naufrágio e tinha boas razões para isso. Não apareceu indício nem destroço algum de navio perdido em toda a extensão destas costas e, por mais que se indagasse, não houve depois notícia de embarcação alguma que por aquele tempo pudesse ter soçobrado nestas paragens.

    Assim, pois, a origem de Regina andou sempre envolvida em dúvidas e mistérios. A extraordinária formosura da menina, a pasmosa vivacidade de espírito de que desde criança dava mostras, a voz encantadora com que sabia entoar as mais bonitas cantigas, enfim seu gênio trêfego, audaz e ardiloso como nunca se viu, fizeram-na passar entre o povo como filha de uma fada do mar ou de uma sereia, o que vem a ser o mesmo. Os acontecimentos que se seguiram e a vida estranha e singular que levava a menina, cada vez mais confirmaram o povo nesta sua crença.

    O noivo, como já dito, era um forasteiro de além-mar, que voltara bastante abastado da costa da África, por onde andara em tráfico de escravatura. O navio em que vinha fundeara nestas praias para refrescar e fazer aguada. Desembarcando aqui, o moço viu Regina, falou-lhe e poucos dias depois estava contratado o casamento. O navio em que viera fez-se de vela a seu destino, e ele deixou-se ficar.

    O que, portanto, mais atiçava a curiosidade do povo não era por certo a procedência nem a riqueza desse mancebo; o que realmente o assombrava era ser ele um forasteiro apenas ali chegado, o noivo aceito por essa mulher inconcebível. Era ele o único que até ali e em poucos dias conseguira vencer a isenção da formosa e soberba Regina, dessa fada intratável que tinha feito naufragar desastrosamente as esperanças de tantos e tão guapos mancebos do lugar. De feito, muitos moços do lugar se haviam arrojado loucos de amor aos pés de Regina; mas, sendo por ela altiva e desdenhosamente repelidos, tiveram quase todos o mais triste e lastimoso fim.

    Não faltava quem dissesse que quem conseguira domar o orgulho e ameigar o coração de Regina era por certo algum príncipe encantado.

    Apenas receberam a bênção nupcial em face do altar, os novos desposados, rompendo por entre a multidão que em torno deles se apinhava sôfrega e curiosa, saíram da igreja e desceram a encosta, sempre escoltados por grande número de pessoas que quiseram acompanhá-los até à casa. Era uma pequena cabana singela e tosca, onde Regina sempre havia morado, situada aí à beira-mar, ao pé de um rochedo. Já era noite fechada, porém noite de luar e bonançosa.

    A brisa apenas farfalhava de leve nos matagais do mangue e nos leques dos coqueiros; e o mar, espreguiçando-se pelas praias, enchia os desertos de seus solenes e monótonos bramidos.

    Posto que simples, a casa de Regina era uma cabanazinha bonita e asseada, como devia ser o asilo de uma sereia, ou de uma ondina, mas tão pequena, que nela não podia caber mais ninguém senão os donos da casa.

    Como não havia banquete, bailado nem folguedos de qualidade alguma, as pessoas que os acompanhavam se despediam cordialmente à porta da cabana e se retiraram murmurando:

    – Deus os guarde e os abençoe.

    Os Três Irmãos

    Enquanto se celebrava o casamento, o povo, cuja atenção estava toda absorvida na contemplação dos noivos, não havia reparado em três vultos, que de um canto da igreja assistiram também ao mesmo espetáculo, não com aquela curiosidade folgazã e descuidosa de que os outros se achavam animados, mas com certo ar sinistro, com certo olhar torvo e inquieto, que parecia relancear chispas de

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