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Pardal Negro
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E-book366 páginas5 horas

Pardal Negro

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Sobre este e-book

No Aeroporto de Heathrow, um assassino contratado está embarcando num avião para Paris. No mesmo avião está a jovem Uzma Rafiq, a caminho de uma nova vida com o seu namorado francês. Os passageiros transportam malas idênticas, mas os seus motivos para viajar à cidade europeia não podiam estar mais distantes. 

Quando eles acidentalmente pegam a bagagem errada na chegada, uma série mortal de eventos é iniciada. Assim como uma reviravolta sinistra os une, eles ditarão os destinos um do outro.

Com o pano de fundo da Cidade das luzes, quem sobreviverá?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jun. de 2020
ISBN9781071550496
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    Pardal Negro - A.J. Griffiths-Jones

    Sexta-Feira 16: 00-Farida Rafiq

    Observando o meu reflexo na janela do ônibus, mal reconheço os olhos escuros que me olhavam de volta. Eles pareciam como poços de água, sem fundo e frios. Onde está a minha alma? Perdi toda a emoção? É difícil acreditar que tenho apenas quarenta anos e no que chamam de o auge da minha vida. Há alguns sinais de cansaço no meu rosto, linhas pelos cantos dos meus olhos – pés de corvo como imagino que os ingleses lhes chamariam – mas não tenho nem o dinheiro nem a inclinação para comprar cremes caros e tentar impedi-los de aparecerem em mim. O meu cabelo perdeu o brilho e há alguns fios brancos despontando por baixo do meu lenço de poliéster, como uma antiga fiação.

    Joguei a cabeça para trás, em parte porque não suporto me ver, mas também por causa da parada de ônibus que significa mais passageiros amontoando-se dentro do veículo de dois andares.

    Não me importo em usar transportes públicos, é a única maneira de eu ter mobilidade, mas às vezes o calor e o espaço cheio me fazem sentir mal. Há um odor no ônibus hoje, de casacos  anoraks sem lavar e suor misturado com cigarros velhos e comida gordurosa, nem um pouco agradável.

    Eu tive uma tarde muito prazerosa conversando com a Shazia, que sempre tem um grande interesse no que eu tenho feito, mas o nosso chá durou muito tempo e agora eu me encontro correndo para casa para preparar o jantar da minha família. Não me atrevo a chegar tarde, o meu marido diria alguma coisa se eu chegasse.

    Enquanto o ônibus faz uma curva acentuada na rua Kilburn High, eu agarro o corrimão do assento na minha frente, acidentalmente passando os meus dedos pelo capuz de pele de uma adolescente que se vira bruscamente e resmunga algo bem baixinho na minha direção. Depois de 22 anos vivendo neste país, ainda não me habituei. As pessoas não são tão amigáveis quanto na minha terra natal, o Paquistão. Sim, ainda penso nele como a minha casa; afinal, é a minha pátria, o lugar onde nasci e cresci, um lugar repleto de história rica e religião. Mas tenho uma boa vida aqui. Eu vivo em uma casa confortável com modernas comodidades, tenho dois filhos inteligentes e bonitos e um marido com um bom emprego. Ele é um homem difícil, mas somos casados e eu estou atada a ele.

    Dia cheio hoje, não é, querida?

    Uma senhora idosa ao meu lado, espreitava com expectativa, querendo uma resposta.

    Sim, muito cheio, digo a ela, querendo cortar logo o assunto, afinal, não a conheço.

    Vai para longe?, ela insiste, tocando meu braço com suas perfeitas unhas vermelhas enquanto me oferece balas de mentas de um pacote aberto.

    Não, obrigado. Só mais três paradas, digo eu, arrumando a pesada bolsa de compras no meu colo, que está me espetando como alfinetes e agulhas nas coxas. Eu comeria uma jujuba se ela tivesse, não uma bala de menta.

    Suponho que sua família esteja esperando que chegue em casa para fazer o jantar.

    Deixei o comentário ficar no ar por uns segundos. Ela está certa, é claro. Minha família está me esperando para um bom jantar, mas também roupas limpas e passadas, uma casa arrumada e pratos lavados como por mágica depois de comer e ficar cheios.

    Estão esperando?, a mulher pergunta novamente, colocando os doces de volta em sua bolsa de patente preta, apertando o fecho: Estão à sua espera, quero dizer?

    Aceno com a cabeça educadamente: Sim, suponho que sim. Você tem família?

    Não, querida. Não pude ter filhos e o meu Albert morreu há quinze anos.

    Não sei o que dizer. Deve ter sido muito difícil para ela na sua juventude não ser capaz de desempenhar o papel de mãe, por isso murmuro: Sinto muito.

    Ah, não se preocupe! diz a aposentada com uma risada, ajeitando sua saia xadrez vermelha e preta. Então ela baixa a voz: "Para dizer a verdade, estou vivendo a melhor fase da minha vida. Vou a alguns bailes de chá todas as semanas, almoço com o meu irmão e a família dele quase todos os domingos e vou sempre às compras. Nem tenho palavras para descrever como é chegar em casa com um novo mimo e não ter que justificar quanto custou a ninguém.

    Não estou familiarizada com termos como dança do chá ou mimo, então eu sorrio educadamente, mas uma pergunta escapa da minha boca: Você nunca se sente sozinha, sem companhia à noite, ou em dias frios e chuvosos?

    Olho bem no fundo de seus pálidos olhos azuis enquanto ela abre um sorriso: Não querida, nem um pouco. Leio muito, ouço música e, claro, tenho o Bruce.

    Bruce?

    Meu gato de pelo curto inglês, graceja a velhinha pegando uma foto de um gato cinza bem gordo: Eu o adoro.

    Não gosto de gatos, são criaturas egoístas, na minha opinião, mas nunca tive um animal de estimação e pergunto-me como é que um animal tão grande e peludo poderia provocar esses sentimentos tão delicados nela.

    Vejo que estamos chegando na minha parada e ajusto o meu cachecol mais apertado na cabeça, enfiando as pontas no meu casaco de anorak para que não o perca quando estiver na ventania da rua. Depois de tocar a campainha para avisar ao motorista que ia descer, me viro para dizer adeus à mulher de cabelos prateados.

    Com licença, peço desculpa, Foi um prazer conhecê-la, mas esta é a minha parada.

    Adeus, querida, diz ela, num sorriso largo em seus lábios vermelhos brilhantes e bochechas rosadas. É um prazer conversar contigo. Tenha uma boa noite.

    Dirijo-me a saída, sentindo ainda seus olhinhos observadores em mim como os de um corvo.

    Ando pelo pavimento úmido com os meus mocassins. Está chovendo novamente e eu estou feliz por ter vestido meu casaco à prova d’água, embora eu esteja ciente de que provavelmente não é o item mais elegante para usar com o meu salwar kameez* rosa. Ninguém presta atenção em mim, de qualquer modo. Os outros pedestres estão mais interessados em correr para casa longe do frio, com destino a seus quentes e confortáveis lares. Eu costumava ser assim, logo quando me casei com Jameel, mas é engraçado como as coisas parecem mudar com o tempo. Pergunto-me se todos os casamentos são como o meu. Os casais perdem o interesse um no outro com o passar dos anos ou sou a única mulher infeliz em Londres? Talvez seja natural sentir-me assim.

    Ainda me lembro da excitação de ser recém casada. Tudo me empolgava: viver no Reino Unido, aprender a tomar conta de uma casa moderna, deitar-me ao lado do meu marido todas as noites, à espera de que ele subisse em mim e pegasse o que agora lhe pertencia. 

    *Roupa típica do Paquistão, Ásia do sul e central que é composta de uma calça (salmar) e uma camisa folgada (kameez)

    Antes da Uzma nascer, Jameel voltaria para casa com um pequeno presente nas sextas à noite. Às vezes era chocolate ou um metro de tecido para eu costurar alguma roupa nova e ele teria grandes planos para o fim-de-semana.

    Uma vez, fomos ao museu de cera Madame Tussaud e Jameel riu-se enquanto eu olhava a réplica da rainha durante dez minutos inteiros. Eu não reconheci nem metade das figuras das celebridades em exibição, mas elas pareciam tão reais que era bastante assustador andar por ali. Nem sequer consegui entrar na masmorra, e o meu marido continuou sozinho me restando beber uma xícara de chá de hortelã-pimenta na área de café.

    Naqueles dias, diferente de hoje, Jameel nunca deu desculpas sobre ter que trabalhar no fim de semana ou até tarde da noite. Ele estava por perto muito mais tempo, e me parece que era mais feliz também. Claro, ele não é um homem ruim, mas as coisas estão diferentes agora. Jameel está muito mais sério, nos sustentando, orientando, mas ultimamente está sempre estressado por algum motivo. Acho que parte do problema é o trabalho dele. Como advogado, ele tem muitos casos em mente, mas talvez um deles seja eu, embora nem pudesse começar a descrever onde as coisas deram errado.

    Cheguei à esquina de Appledore Gardens. É onde que eu moro. Posso sentir o peso das minhas sacolas de compras puxando os músculos dos meus ombros. É demasiadamente pesada para uma mulher carregar. A brisa do final da tarde bate no fundo das minhas calças asiáticas tradicionais e lembro-me que devo procurar pelas minhas roupas íntimas térmicas porque, como disse a minha amiga Shazia, as temperaturas vão cair na próxima semana. Ainda anseio pelo calor do Paquistão, mesmo depois de todo este tempo, e lembro-me de sentar-me na varanda do meu avô com o sol no rosto, comendo melancia fresca com os meus irmãos para ficarmos calmos.

    Número dezessete, esta é a minha casa. Preciso equilibrar a sacola pesada para alcançar a minha bolsa com as chaves. Não consigo apoiá-la no chão porque a entrada está molhada, então eu me debato por um minuto ou dois. Nossa casa é um lugar agradável, separada como a maioria das propriedades no beco, com um gramado bem aparado na frente e cestas penduradas de ambos os lados da varanda, embora as flores tenham morrido há muito tempo e apenas algumas folhas castanhas podem ser vistas brotando da terra. Não há nada que indique que há uma família muçulmana vivendo aqui; nenhuma evidência ou sinal, apenas um lugar comum.

    Viro-me ligeiramente para apoiar a sacola no meu joelho enquanto ponho a chave na porta da frente e vejo o velho que vive em frente espiando por detrás das cortinas. Ele parece estar sempre observando e à espera de uma visita que nunca vem. Talvez seja só. Talvez ele não tenha um gato como a senhora do ônibus, embora eu ainda não esteja convencida de que ter um animal de estimação tão grande e de dentes afiados em casa seria uma boa ideia.

    Estou dentro de casa agora e posso finalmente largar o meu fardo. Deslizo para fora dos meus sapatos na varanda, olho para o relógio dourado em forma de estrela no corredor e chacoalho a cabeça antes de tirar o meu casaco anorak molhado. Tenho de me apressar para o jantar estar pronto às seis horas, como Jameel espera. Esta noite, haverá um delicioso arroz indiano de carneiro com pão paratha, o meu favorito, embora eu saiba que não deveria ceder, porque as grandes quantidades de manteiga ghee necessárias para fritar os pães ázimos já estão começando a aparecer nos meus quadris antes esguios.

    Mesmo assim, a minha família ficará satisfeita. Eles sempre apreciam a minha comida, mais do que qualquer outra coisa. E haverá muita comida se algum dos amigos ou colegas do meu marido decidir agraciar-nos com uma visita. Espero que Jameel tenha almoçado muito bem, algo substancial para supri-lo em seu horário de trabalho. Eu queria preparar-lhe um belo café da manhã hoje cedo, mas ele saiu do leito matrimonial antes do sol nascer, cambaleando no escuro em direção à sua camisa de algodão fresca, e antes que a chaleira fervesse, a porta da frente fechou-se e ele desapareceu. Nada de adeus, só um resmungo e um aceno. Voltei para a cama por uma hora, mas não consegui dormir. 

    Arrumei as compras e lavei as mãos antes de cortar cuidadosamente a carne em cubos pequenos. Eu tenho uns bons truques sobre como fazer o cordeiro durar mais, tal como encher meus pratos com vegetais e molhos pesados, o que me poupa algumas libras todas as semanas, e o que Jameel chama de meu dinheiro de boa administração da casa. Faço as mesmas economias nas compras de pacotes e enlatados, comprando latas amassadas a preços reduzidos ou tomando o ônibus para negociar em lojas onde eu posso fazer as libras renderem mais. Faço isto há muito tempo e, até onde sei, o meu marido não faz ideia do dinheiro que já poupei. É uma boa soma, guardada numa conta bancária que a Shazia me ajudou a abrir, e está lá, até o momento.

    Tivemos uma boa conversa esta tarde, a Shazia e eu. Ela é a minha única amiga de verdade e eu confio nela. Hoje falamos sobre nossas filhas: sempre uma preocupação para uma mãe asiática na sociedade ocidental. A filha de Shazia, Maryam, está treinando para ser enfermeira em um hospital local. Está lá desde que terminou seus exames na escola e permanecerá até encontrarem um marido adequado para ela quando tiver vinte e cinco anos. Acho que Jameel tem o mesmo plano para a nossa filha, Uzma, mas duvido que ele discutirá o assunto em detalhes comigo. Ele acredita que os homens da família devam cuidar de tais arranjos, não importa se é a coisa certa a fazer ou não. Ele já está arrependido da sua decisão de permitir que Uzma fizesse um curso de arte em Paris no verão passado. Acredito que Jameel achou que ajudaria a filha a livrar-se da sua ambição de se tornar uma artista, chocá-la de modo a perceber como seria difícil ganhar a vida vendendo seus quadros. Se você me perguntar, o plano falhou, porque ela tem estado amuada e abatida desde seu retorno, passando horas sozinha em seu quarto desenhando, ou sentada na frente de seu computador.

    Lembro-me do dia em que Jameel cedeu. Uzma estava esperando o momento propício, preparando uma bebida para o pai, perguntando sobre seu dia e virando os olhos na direção dele enquanto entregava o folheto sobre o curso.  Sentei-me na minha cadeira para assistir, fingindo que costurava um par de meias e, ocasionalmente, enfiando um gulab jamoon* na minha boca, enquanto ela explicava entusiasticamente os detalhes do que iria aprender na cidade francesa.  Fiquei surpresa quando, apenas três dias depois, Jameel fez dois cheques, um para o professor de arte e um para a senhora cuja casa Uzma se hospedaria durante a sua estadia. Eu não disse nada, apesar de temer terrivelmente pela minha filha, mas tudo estava resolvido, e ela dançou de satisfação.

    O telefone no corredor está tocando, e envia um eco alto pelas escadas, por isso desligo lentamente a panela de carne assada no fogo e vou ao corredor para ver quem poderia estar ligando a esta hora do dia.

    Aí está você!, a voz afirmou se maneira seca, Você demorou um bom tempo para responder.

    * Doce feito a partir de leite em pó, muito popular nos países do sul asiáticos.

    Estou preparando o jantar. respondo, "Carneiro com arroz biryani.

    Meu marido dá uma tossida rápida, limpando sua garganta e então continua, Eu não estarei em casa até as oito. Você vai ter de adiar o jantar.

    Constato que se trata mais de uma ordem do que de um pedido e que não posso (respirar), mas, pelo menos, tenho agora algumas horas. Sim, claro. Alguém se junta a nós esta noite?

    Não, esta noite não,, diz Jameel, mas precisa garantir que o quarto de hóspedes esteja pronto, já que vamos ter convidados amanhã. Explico depois.

    Eu quero perguntar quem, como é raro que alguém passe a noite, a menos que esteja visitando parentes de fora ou de outra parte da Inglaterra, mas o outro lado da linha já foi desconectado e eu devolvo o telefone à base.

    Eu olho para o meu reflexo no espelho na parede, a segunda vez hoje que percebo a mim mesma, e orgulhosa da minha cintura engrossada. Estou bem para a minha idade, acho eu, embora Jameel não concordasse. Talvez tenha passado muitas tardes comendo doces com Shazia quando, ao invés disso, deveria estar fora caminhando ou fazendo trabalhos domésticos para queimar algumas calorias e fazendo minha túnica começar a parecer mais justa.

    Voltando à cozinha, desligo o fogão e pego a chaleira. Posso dar-me ao luxo de me sentar com uma xícara de chá de hortelã-pimenta agora, só por um tempo. Uma pontada afiada ataca-me a espinha enquanto me acomodo na minha poltrona de couro. É tudo o que preciso, o início do ciático! Eu passo pelos canais de TV, parando num canal de compras onde uma mulher branca e magra está correndo rapidamente numa esteira elétrica, com o rabo-de-cavalo alto a balançar enquanto ela pisa na borracha. Olho para o único retrato de família que temos e vejo uma eu mais jovem e mais magra, sorrindo para mim.

    Uzma tinha apenas seis anos de idade, e Khalid três, quando Jameel anunciou que estávamos fazendo uma viagem ao estúdio fotográfico local. Até me encorajou a comprar um novo sári* para a ocasião. Depois, ele levou-nos para tomar sorvete num café italiano local, a primeira e única vez que Jameel nos levou lá.

    Lembro-me de acidentalmente pingar molho de chocolate no meu sári e foi a primeira vez que reparei na forma como o Jameel olhou para mim. Foi um olhar condescendente, como se eu também fosse uma criança que tivesse se portado mal, causando-lhe embaraço enquanto ele rapidamente olhou em volta para ver se alguém tinha notado sua esposa desajeitada e irresponsável. Não foi muito depois disso que os dias fora acabaram, Jameel culpando sua carga de trabalho e eu culpando a mim mesma.

    Ainda tenho aquela linda roupa turquesa bordada com ouro, mas agora está embrulhada em papel de seda numa gaveta debaixo do nosso divã. Talvez um dia, quando tiver perdido peso suficiente, possa voltar a usá-lo. Embora, enquanto Jameel estiver vivo, duvido que iremos a uma festa juntos, a menos que seja um casamento comunitário ou familiar. Acho que Jameel preferia não me ter na vida dele agora, embora saiba que ele adora os nossos filhos.

    ––––––––

    *Traje feminino típico da Índia.

    Quando fiquei noiva de Jameel aos dezoito anos, vindo para a Grã-Bretanha como parte de um casamento arranjado acertado por meus pais e seus primos de segundo grau, percebi que eu era muito ingênua. A minha mãe ensinou-me bem, por isso sabia cozinhar refeições decentes e limpar a casa, mas não estava preparada para a vida que me esperava, a milhares de quilômetros da minha casa. Jameel é seis anos mais velho que eu e já tinha passado nos exames de direito antes do nosso casamento. Tenho de admitir, fiquei bastante impressionada com o homem alto e moreno que usava ternos ocidentais e dirigia um grande veículo de passeio.

    Quando o meu pai me disse que o Jameel Rafiq planejava comprar uma casa para vivermos, fiquei tão feliz. Era tudo o que podia desejar. Meus pais estavam tão orgulhosos - ainda estão - embora eu raramente possa visitá-los agora. E eu estava feliz apenas porque minha prima mais velha e mais bonita, já estava casada e assim não poderia ser a escolhida a se mudar para Londres e viver no luxo. Em retrospectiva, fui uma tola.

    Pego o controle remoto e pressiono-o para mudar de canal. Algo sobre assassinos em série aparece na tela e eu deixo-a ligada por alguns minutos. O homem fala muito rápido e tem um pesado sotaque americano, mas, a partir do título na parte de baixo da tela, posso ler que uma mulher foi acusada de matar um grupo de idosos no asilo onde trabalha. Há uma foto da casa e o retrato da mulher, que parece normal na minha opinião. Soube que ela tem dado medicamentos extra misturados com as refeições a eles, mas nunca ouvi falar dos nomes das drogas que ela usou. Elas devem ter sido bem insípidas para as pessoas não perceberem.

    Depois de mais alguns minutos, desligo a TV e levanto-me, percebendo que estou sentada há quase meia hora e que o meu chá esfriou. Pergunto-me se a senhora que estava no ônibus está sentada assistindo a seu programa favorito neste momento; como deve ser não ter mais ninguém que dependa de você para lavar, cozinhar e limpar? Ela nunca teria de esperar que o banheiro estivesse livre todas as manhãs. Percebo que tenho inveja de uma pensionista de cabelos acinzentados, muito embora ainda não teria um gato.

    De volta à cozinha, peneirei farinha na superfície de mármore. Jameel está sempre me repreendendo por fazer tanta bagunça na cozinha, mas esta é a maneira tradicional de preparar o paratha, do modo que minha mãe me ensinou.  Fica mais gostoso misturado desta maneira, usar uma tigela força o ar para fora.

    Os meus pensamentos voltam à mulher na televisão enquanto eu ponho água quente num pequeno furo no centro da farinha. Por um segundo, pergunto-me se há alguma coisa no nosso armário de medicamentos que possa ser usado para envenenar o meu marido. Talvez, ao colocá-lo no pão, o sabor seria disfarçado. Prendo minha respiração. Que pensamento perverso! Deus vai ver minha terrível atitude e me repreender no dia do Juízo Final... Inclino a cabeça e repito as palavras do nosso Alcorão Sagrado: se não prestarem atenção, sabei que Deus conhece os iníquos.'

    A casa está inacreditavelmente quieta para uma sexta à tarde. A esta altura, o Khalid normalmente está aqui, faminto como todos os adolescentes tendem a estar, e então Uzma deveria chegar logo depois de seu irmão, correndo para o andar de cima antes que eu possa ver seu batom e olhos maquiados que ela aplica para o colégio todos os dias. Ela acha que eu desaprovo, mas não, mesmo. É com Jameel que ela devia preocupar-se. Se ele a apanhasse voltando para casa de camiseta justa e cheia de maquiagem, a tiraria da faculdade sem pensar. Acho que a minha filha é bonita o suficiente sem precisar usar maquiagem, mas estou disposta a deixá-la ter um pouco de liberdade antes que ela sossegue.

    Pessoalmente, acho que não vai demorar muito antes que o Jameel comece a pensar num parceiro adequado para a Uzma. Na verdade, talvez devêssemos pensar que temos sorte por ela ainda não se interessar por rapazes. Pergunto-me onde estão meus filhos. Ambos estão atrasados.

    Vou até o corredor e pego o telefone, teclando o número do celular do meu filho, que sei de cor. Toca seis vezes.

    Oi, mãe!, grita o meu filho de dezessete anos através do barulho exterior. O que foi?

    A que horas vai chegar em casa? Eu grito no telefone: Seu pai vai se atrasar, o jantar será às oito.

    Tudo bem, vou comprar alguma coisa.

    Logo me preocupo que o meu filho vai comer batatinhas gordurosas e frango frito.

    Onde você está agora? Mal consigo te ouvir, Khalid.

    No saguão de jogos., ele me diz, levantando sua voz para que eu possa ouvir: Escute, vou passar a noite na casa do Ali, vamos ver uns filmes.

    Os pais do Ali são boas pessoas. Não me importo, desde que saiba onde está o meu filho. Você já verificou com eles? Khalid? Khalid?

    O nível de barulho aumentou tanto que já não consigo ouvir o que o meu filho está dizendo e, ao mesmo tempo, ambos desligamos o telefone ao mesmo tempo. Estou irritada por não conseguir ser ouvida e imagino que Khalid tenha coisas melhores para fazer do que ouvir a mãe dele.

    Logo depois, tentei o telefone da Uzma. Chama e chama, mas ela não atende. Ainda não estou muito preocupada, pois ela vai com frequência a um café depois da faculdade às sextas-feiras, embora ultimamente venha direto para casa e direto para o seu quarto.

    Jameel acha que a nossa filha passa tempo demais no computador e quer que se limite a uma hora todos os dias. De acordo com Shazia, todas as jovens são iguais, então eu tento desviar Jameel para outro tópico sempre que ele fala do assunto. Eu não minto para Uzma. Afinal, como posso se não tenho certeza sobre o que ela está vendo na internet? Mas confio na minha filha em fazer escolhas certas. Ela é uma boa moça muçulmana e sabe o certo e o errado. Eu suponho que ela esteja pesquisando sobre moda ou conversando com seus amigos naquela coisa do Facebook na qual parece que todo mundo está falando. Todos estes sites de redes sociais só me confundem. Posso apenas achar o botão certo para ligar o computador!

    Com a casa ainda vazia, volto a cozinhar, pensando profundamente sobre o comentário do Jameel. Ele disse que os convidados vêm amanhã e estou curiosa em saber quem são e por quanto tempo vão ficar. Já passou algum tempo desde que alguém ficou no nosso quarto dos fundos e tenho de lembrar-me de arejar os lençóis logo de manhã. Talvez um dos primos do meu marido venha de Coventry. Não vemos nenhum deles há mais de um ano. Eles são advogados também.

    Vou à lavanderia, pego numa pilha de roupas dobradas e carrego-as lá para cima para guardá-las. Por cima estão as camisetas pretas do Khalid, por isso, abro a porta de seu quarto e ponho-as em cima do edredom, ainda embolado desta manhã, como ele o deixou. Digo aos meus filhos que já têm idade suficiente para limpar o quarto deles, mas parece entrar numa orelha e sair pela outra. Este garoto ainda vai me matar. Há dois copos vazios na mesa de cabeceira, ambos com espessos sumos de laranja no fundo, que parecem estar ali há dias. Pacotes de salgados e revistas velhas enchem o cesto de papel.

    Fecho a porta do Khalid e levo o shalwar kameez azul pálido da Uzma ao armário dela. Ela o usou com um cachecol creme estampado no fim de semana passado para ir à mesquita e a cor realmente combina com ela. O guarda-roupa está metade vazio. Eu fecho e abro os olhos duas vezes me perguntando se eles me enganam. Não, não estou vendo coisas. As roupas tradicionais paquistanesas da Uzma estão todas aqui, penduradas lado a lado, mas todas as suas roupas ocidentais: jeans, camisetas, jumpers, vestidos, desapareceram.

    Sento-me na cama da minha filha e respiro fundo, olhando para o armário, pensando no que isto significa. De repente, um pensamento me ocorre e me ajoelho para olhar debaixo da cama. A mala preta da Uzma desapareceu. Eu choro num misto de raiva e dor, não sei o devo fazer.

    Volto ao corredor, telefone grudado no ouvido, mas ainda nenhuma resposta do telefone da Uzma. Vai direto para a mensagem de voz e desta vez deixo uma mensagem, embora depois me pergunto se soa confuso: Uzma, onde você está? É a mamãe, por favor atende o telefone, estou preocupada com você.

    Eu não sei o que mais dizer e coloco o telefone de volta na base, apenas para apanhá-lo de novo segundos depois. Eu preciso ligar para o meu marido e procuro no meu caderninho azul de telefones por seu número.

    Sem resposta, apenas o apito familiar da secretária eletrônica. Claro que o Jameel foi jogar badminton, ou é o que ele diz. Eu raramente ligo para ele e isto agora parece anormal de fazer, quase como se estivesse me intrometendo numa parte da vida do meu marido da qual não sei nada a respeito. Pergunto-me se ele voltará a ligar quando vir a chamada perdida no visor. Provavelmente não. Talvez ele pensará que eu, sua estúpida e distraída esposa, vai pedir a ele que compre alguma coisa. Sua estúpida e distraída esposa.  Sem dúvida que o telefone está

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