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Ausentes (Portuguese Version)
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E-book268 páginas

Ausentes (Portuguese Version)

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Sobre este e-book

São José dos Ausentes era uma cidade turística como tantas outras, mas, quando Ana
encontra um crânio humano em um passeio pelo lugar, vira palco de uma intensa
investigação policial. À medida que revelações sobre o caso se desenrolam, evidências
mostram a importância de mais duas mulheres para a elucidação do mistério envolvendo
um possível assassinato: Marina, viúva da vítima, e Jéssica, esposa da última pessoa a
solicitar seus serviços como geólogo.
Alternando entre os pontos de vista de Ana, Marina e Jéssica, mulheres completamente
diferentes, Ausentes deixará o leitor ávido por respostas. Afinal, quem matou Rodrigo e
por quê?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2021
ISBN9788553271986
Ausentes (Portuguese Version)
Autor

Edelweis Ritt

I am a writer, a grandma and a nerd.Fervid reader.Pregnant with lots of books ;)

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    Ausentes (Portuguese Version) - Edelweis Ritt

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    Trabalho cedo, penso cedo. Sou pássaro. Meu marido é coruja, então facilmente nos desencontramos, o que não é problema para um casal que não depende da atenção um do outro, como é o nosso caso. Aproveitamos momentos juntos, mas aproveitamos ainda mais momentos individuais em uma independência simbiótica e incomum. Não somos comuns. Meu marido é alemão e veio para o Brasil nem ele sabe bem por quê. Quando o conheci, me fascinou a ideia de um físico alemão no Rio Grande do Sul, o que me parecia algo atípico em sua natureza.

    Sim, as coisas inusitadas me atraem. Primeiro porque nasci diferente. Tenho ciclotimia, uma versão moderada do transtorno bipolar. Segundo porque nasci em cidade pequena, onde não ser igual aos outros imediatamente gera mal-estar.

    Quando conheci Frank, me convenci rapidamente de abandonar uma longa vida de empresária solteira convicta, o que eu já havia aceitado como uma realidade imutável. Sempre amei ficar sozinha, mas somente com Frank me dei conta de que era possível ficar com alguém e sozinha ao mesmo tempo. Eu estava em uma fase boa, sem nenhum episódio de depressão nem euforia, com uma sensação de estar gerenciando bem meu diagnóstico de paciente ciclotímica.

    E lá estávamos nós, juntos no meio do nada e com a sensação de estarmos distantes apesar de apenas alguns quilômetros nos separarem do local em que nasci, a cidade de Bom Jesus. Estávamos com nosso cão, um buldogue inglês pachorrento e mal-humorado que compartilhava de nossa leve misantropia.

    O dia estava nublado, uma névoa fria encapsulando o verão, reforçando a ideia da distância; havíamos deixado dias antes uma Porto Alegre açoitada por um verão insalubre. A mesma alta umidade relativa do ar que tornava o pôr do sol maravilhoso fazia com que nos sentíssemos como se estivéssemos expostos todo o tempo ao hálito de um enorme dragão virulento.

    Nos campos de cima da serra, perto de uma virada do ano sem fogos de artifício em um ambiente rústico e asceta, em um quarto digno de monge budista desprovido de interesse em bens materiais, havia uma densa neblina e um frio agradável, quase aconchegante.

    No prédio principal da pousada, um homem tímido de olhos azuis trouxe café em uma térmica já cansada. A esposa, o que inferi pelo contexto, era uma moça alta com unhas bem-feitas contrastando com os cabelos de mechas de um tom amarelado pouco natural que não harmonizava com as sobrancelhas escuras. Usava maquiagem barata e pesada para o café da manhã, mas realçava os olhos também azuis. Apareceu com alguns pratos e desapareceu na cozinha, sem nenhum comentário.

    O café da manhã era generoso. Tudo fresco e gorduroso. Muita coisa frita com banha de porco, como se estivéssemos de volta a uma Idade Média que o Brasil nunca acolheu.

    Barriga cheia, casacos e cão acostumado à cabana, fomos andar. Entender onde estávamos. Sentir o cheiro de um mato diferente, o mato de um lugar quase solitário na virada do ano; a motivação de mais dois casais para estar lá nos intrigava tanto quanto a nossa própria.

    Estávamos a cem metros de um dos cânions do Rio Grande do Sul, um lugar esquecido pela civilização, onde milhares de anos esculturaram abismos verdes e intrigantes. Andamos por gramados imensos, um caminho plano e limpo. A grama molhada sob meus pés me reportava à minha infância. A vegetação, a umidade e o cheiro eram familiares e tinham a capacidade de me envolver como um útero materno.

    Era importante para mim sair da rotina. Eu adorava meu café, mas, naquele ano, as longas sessões de terapia haviam esgotado minha energia. Eu estava precisando de um local para esvaziar completamente meu cérebro e focar na forma de lidar com meus altos e baixos. Não podia imaginar voltar a viver ali, mas a região tinha um poder intenso de recarregar minhas baterias, refazer algumas sinapses e liberar endorfinas, pelo menos no curto prazo.

    Até a chegada à área dos cânions, o gramado se estendia de forma monótona, mas as nuvens já começavam a trazer a neblina; nos aproximávamos no horário em que as diferenças de temperatura e pressão fazem toda a região ser envolvida por sua massa molhada. Eu havia visto esse fenômeno, conhecido na região como viração, mil vezes na minha infância, mas seria a segunda vez de Frank.

    Não é incomum a chuva seguir a viração. Assim, voltamos em meio à neblina em uma caminhada irreal, como se estivéssemos em algum romance da Marion Zimmer Bradley, em uma terra de fadas. Então a chuva veio, e veio com vontade.

    A cabana era extremamente simples, digna de um anacoreta penitente. O quadro de Ignacio Pinazo Camarlench me veio à mente, eu o imaginei dentro daquele quarto lendo seu pesado livro amarelado. O chão de lajota, o acabamento barato, as marcas de mofo em alguns pontos das paredes brancas… tudo isso me lembrava as fazendas de parentes distantes que eu visitara em minha infância. Não era o que o Frank esperaria de um hotel, mas ele estava no Brasil havia tempo suficiente para não tecer comentários a respeito. Creio que achou pitoresco. Além disso, no meu ponto de vista, ele parecia imutável em qualquer tipo de alojamento ou ambiente em que nos encontrássemos, o que, mesmo depois de anos de convivência, me intrigava e fascinava.

    A cabana devia ter uns trinta metros quadrados compostos de quarto, sala e banheiro. Um quadro torto em cima da lareira, com o vidro empoeirado e quebrado, revelava a falta de cuidado das pessoas da pousada com o todo. As camas pareciam limpas, e o banheiro era absurdamente simples: água fria, chuveiro elétrico, janelas rachadas. Entretanto, tudo fazia parte de estar no fim do mundo, onde não há luxo nem modernidade, mas sim um ascetismo novo para Frank e velho para mim.

    O dono da pousada veio nos visitar pouco antes do almoço. Com seu chapéu de abas largas, ele se parecia com todos os donos de fazenda que eu havia conhecido em Bom Jesus. Para Frank, ele parecia alguma caricatura de um filme mexicano. As sobrancelhas fartas e escuras contrastavam com o bigode branco adornado pelos dois sulcos que a idade esculpe no rosto das pessoas mais velhas. Trazia óculos de leitura que avultavam dois olhos verdes sorridentes e um excesso de pele, especialmente sobre as pálpebras. Deveria ter mais de setenta anos, mas era difícil precisar.

    Chimarrão na mão, nos contou sobre quando comprara a área e romantizou a narrativa com uma série de causos, o que nos fez rir alto algumas vezes apesar de estar claro que a história estava embaixo de uma camada grossa de fantasia. Ele tivera esperança de que, além dos cânions, a região tivesse algum valor adicional. Contou-nos de quando tivera a ideia do hotel após os problemas de saúde terem dificultado a lida do campo.

    Enquanto escutávamos, divertidos, as histórias cheias de aventuras inventadas pelo nosso novo amigo, apareceu no horizonte, em alta velocidade, uma Hilux de um vermelho vibrante. Sentado na direção, um senhor de meia-idade acenou com euforia e desapareceu.

    — É o meu vizinho, doutor Álvaro. Milionário! — comentou com um ar de falsa reverência, colocando as mãos nos bolsos da bombacha. Lembrei que minha mãe chamava aquele tecido pela marca: Tergal. — Deve estar indo preparar a casa para as festas de final de ano. Dizem que a festa é maravilhosa. Já nos convidou, mas minha mulher não quis participar. Muita pompa, segundo ela — comentou com um sorriso maroto demonstrando sua ironia para com a empáfia do vizinho.

    Ele pigarreou e serviu um chimarrão com dedos grossos e unhas maltratadas. Via-se que ele cuidava de suas terras com as próprias mãos. Contou de algumas fazendas vizinhas nas quais foram encontradas reservas de terras raras que transformaram seus donos em milionários. Ninguém sabia bem onde as jazidas ficavam, comprar aquelas terras parecia ter feito parte de algum tipo de loteria em um passado próximo. Em princípio, todas as jazidas pareciam já ter sido descobertas; não havia nenhuma na propriedade do hotel, para a sua infelicidade. Assim, continuava a explorar o turismo e a vista dos cânions.

    Depois do almoço o sol abriu novamente. Resolvi sair com o cão para explorar o ambiente enquanto Frank terminava um livro que trouxera. Segui a estrada que nos levara até ali, visto que a chuva havia tornado a região um enorme lamaçal. Somente a estrada cheia de pedregulhos se encontrava em condições de travessia. Um riozinho seguia a estrada e estava tão cheio de vegetação que, se não fosse pelo barulho da água corrente, eu sequer o teria notado. Samambaias e avencas misturadas ao capim e ao mato alto o tornavam quase invisível aos olhos de quem seguia a estrada.

    Após cerca de trinta minutos de caminhada, me convenci de que podia soltar o cão da guia. Não havia visto nenhum ser humano ou veículo durante todo o trajeto, e ele raramente tinha chance de andar solto pela cidade, pensei. Entretanto, não demorou muito para eu me dar conta de que não fora uma boa ideia. Um gambá resolveu mostrar a sua cara preta e branca cheia de dentes afiados de rato do mato. Meu cão já o havia farejado mesmo antes de eu me dar conta e ladeou o córrego, latindo muito. Rapidamente, achou um ponto onde conseguiu passar para o outro lado, se distanciando da estrada com o firme propósito de destroçar o gambá, que já havia sumido na mata, deixando seu rastro fétido.

    Assustada porque o cão poderia entrar na mata e se perder, ou até ser mordido por alguma cobra, tentei fazer o mesmo trajeto que ele por cima do amontoado de lixo e restos de plantas, mas a estrutura cedeu com meu peso e me vi atolada até os joelhos. Soltei um urro tão diferente que o cão notou a urgência e, para meu alívio, ficou estarrecido me olhando com um misto de estranheza e insegurança. Apesar de estar suja, as mãos totalmente enlameadas, consegui rir da situação estúpida, da minha imprudência e falta de bom senso por não ter testado o chão antes de pisar.

    — Enfim — resmunguei, resignada, observando os pingos de lama espalhados pela minha blusa branca.

    Tive de me movimentar e tentar me alavancar em meio às plantas de forma a ter força para retirar os pés daquele amontoado de lama. Minha mente foi totalmente tomada por um medo absurdo de ver alguma cobra d’água enrolada em meu pé, e tenho de admitir que imaginei, inclusive, estar em areia movediça, pensamento que espantei ao me lembrar de que estava no Brasil, onde encontraria, no máximo, um atoleiro. Tenho a tendência de imaginar situações de perigo absurdas em incidentes comuns.

    Percebi, para a minha surpresa, que junto com meu pé veio um amontoado de folhas mortas e pegajosas, e em cima destas um crânio que me pareceu ser humano. Aquilo foi tão inesperado que demorei a acreditar no que via. Mais uma invenção da minha percepção ciclotímica?

    Sacudi a perna e os restos se acomodaram na parte mais rasa do riacho. O crânio ali, meio exposto, virado para mim. Ok, não era imaginação.

    Ponderei que deveria ser um crânio de animal, pois não fazia sentido para mim a existência de um crânio humano naquele lugar. Humanos são enterrados em cemitérios, não ficam boiando até serem encontrados por turistas desavisadas.

    Em um torpor inesperado e com o cão na guia, voltei pela estrada até a pousada. Cheguei a cogitar a possibilidade de levar o crânio, mas não me pareceu de bom senso andar por aí com aquilo nas mãos.

    Meu marido olhou, divertido, para o estado deplorável dos meus tênis, que de manhã haviam acordado brancos. Notei para onde ele olhava e pensei na idiotice que havia cometido ao não calçar as botas à prova d’água, das quais eu havia me gabado no dia anterior. Contei a ele sobre minha descoberta inesperada; confesso que sequer a mim pareci convincente.

    Fiquei em dúvida acerca de comentar o fato na pousada, mas acabei decidindo contar a eles apesar de estarmos certos — Frank mais do que eu — de que esse seria o pequeno mico da viagem.

    Para a nossa surpresa, quando fomos tomar café da manhã no outro dia, uma viatura da polícia de Bom Jesus estava estacionada na frente da pousada. O crânio era, sim, humano.

    Ausentes

    estava estacionada em frente à pousada. Frank não pôde se conter ao comentar quanto dinheiro a polícia da região parecia ter.

    Uma moça de óculos retangulares de aro escuro se apresentou como Fernanda junto com outra moça de cabelos cacheados com mechas claras, que ficou calada o tempo todo depois de ter se apresentado como Mônica. Elas estavam ali com a perícia para examinar o local. E o crânio era, sim, com segurança, humano.

    Senti um pequeno abalo pelo corpo. Um crânio humano! Pareceu-me ao mesmo tempo irreal e improvável, mas não posso negar que senti uma ansiedade estranha. Comecei a fantasiar histórias que pudessem explicar o ocorrido. Mas o ponto é que a ideia de ligar o crânio a um ser humano que vivera em algum momento, talvez em um passado distante, não me parecia real.

    Frank me olhava, impaciente, esperando que eu decidisse algo em vez de ficar parada ali, olhando o burburinho de olhos arregalados e distantes. Eu conhecia Frank muito bem, notava quando seus olhos ficavam azuis e imperceptivelmente mais estreitos. Então sabia que estava impaciente. Ninguém percebia, mas eu sabia.

    Não fomos acompanhar a operação. Frank jamais teria aceitado, pois ele aprendera cedo a não se aproximar de locais de acidentes ou investigações. Um bando de curiosos atrapalha, e em alemão existe até uma palavra para isso: gaffer. Não creio haver tradução em português.

    Resolvemos explorar a região de carro e deixar a equipe de policiais fazer seu trabalho. Nosso buldogue entrou sorridente no carro, mas não lhe dei muita atenção. Meus pensamentos estavam lá, com a polícia, especulando sobre quem seria o morto.

    A história não tinha a ver comigo, exceto pelo fato de eu ter passado a ser uma testemunha, se é que se pode considerar dessa forma. Mesmo assim, já me sentia no direito de saber de quem era aquele crânio que se colocara no meu caminho.

    Evitei falar sobre o assunto. Depois de quatro anos de casada, eu já sabia o que ele receberia bem e o que não. Conseguia antecipar o que diria, e nem sempre a antecipação me agradava. É a quantidade das coisas

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