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Onde as estrelas se escondem durante o dia
Onde as estrelas se escondem durante o dia
Onde as estrelas se escondem durante o dia
E-book284 páginas4 horas

Onde as estrelas se escondem durante o dia

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Sobre este e-book

Desde que se mudaram para a mesma casa na cidade do Rio de Janeiro, Tatiana e sua namorada, a nebulosa vampira Sibel, têm se distanciado cada vez mais. Depois de passar quase toda sua vida viajando com seu clã nômade, a bruxa de cabelos cacheados não consegue se adaptar ao estilo de vida reservado que a outra deseja para as duas. Quando Tatiana decide abrigar dois outros sobrenaturais recém-chegados à cidade, será que a relação sofrerá com a decisão? A princípio, a resposta parece óbvia. Mas a situação poderá se provar pior do que a bruxa imaginava quando Sibel conhece a fada Lírio, com o passado tenebroso e o sonho de infância de encontrar onde as estrelas se escondem durante o dia.
IdiomaPortuguês
EditoraCaligari
Data de lançamento22 de mar. de 2023
ISBN9788594496171
Onde as estrelas se escondem durante o dia

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    Onde as estrelas se escondem durante o dia - Lucas Benamor

    Texto Descrição gerada automaticamente

    Para todes à procura de pertencimento e amor.

    Imagem em preto e branco de pipa Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Prólogo

    Já é bem tarde da noite, e as estrelas iluminando o caminho permanecem incertas. No clã, a gente sempre vai onde os Astros nos levam, mas hoje, prever sua vontade está quase impossível, por algum motivo que desconheço ainda. Apesar disso, a gente não deixa de seguir em frente pela trilha de terra, escondidos nas sombras da mata verde em volta, nossos passos abafados pelos zumbidos de insetos. A gente não tem escolha, porque já se fez um mês em nosso último destino, e o clã nunca arrisca ficar mais tempo do que isso no mesmo lugar.

    Estou afastada dos outros, por insistência da vampira que esteve junto com a gente desde nossa visita à incansável São Paulo, alguns meses atrás. Posso sentir os olhos dela coçando em minha pele enquanto seus dedos apertam os meus com mais força do que nas outras noites. Viro-me com uma sobrancelha erguida para a mulher ruiva e pálida ao meu lado, e, como todas as outras vezes, ela desvia o olhar e finge demência. Balanço a cabeça, alguns cachinhos caindo na frente de meus óculos. Contenho minha língua, porque sei que se eu perguntar o que ela está tramando, ela nunca vai me contar.

    Volto minha atenção para os bruxos à frente, que carregam suas vassouras e suas malas, cheias de livros, mapas e outras tralhas, alguns acompanhados por uma bola de cristal flutuante. Quando isso não basta como distração, decido tentar uma nova leitura no céu acima de nossas cabeças.

    O chefe do clã, Diogo, parecia preocupado enquanto o resto se preparava para a viagem, tanto que considerou melhor que a gente não voasse. E é óbvio que algumas pessoas do grupo encontraram um jeito de culpar a vampira por esse aborrecimento, por mais vezes que ela já tenha se juntado ao voo em sua forma de morcego durante viagens anteriores. Não que eu também não esteja com dor nas pernas e entediada de tanto andar, só que essa repulsa é ridícula e vai contra todos os valores que a gente aprendeu com Diogo. Finjo não perceber quando essas mesmas pessoas olham com desgosto por cima dos ombros para nós duas. Elas me culpam mais do que a vampira, porque é por minha causa que Sibel está viajando com a gente.

    Concentrada nas curvas que alguns dos pontinhos brilhantes fazem, identifico o desenho de uma bifurcação no meio das constelações: um sinal comum de mudança, quase sempre de separação. Pelo canto do olho, espio a vampira, que, mais uma vez, desvia seu olhar de mim, e meu coração despenca dentro de meu peito. É por isso que ela está tão inquieta?

    A gente a encontrou em uma noite tranquila, tipo a de hoje. As estradas de concreto na orla da floresta estavam vazias de carros, e não ventava muito. Em outras palavras, era uma noite perfeita para voar sem a gente ser visto. Mas, também naquela noite, alguma coisa na leitura das estrelas alertou Diogo a não montar nas vassouras. Tem quem chamaria isso de sorte, porque o clã era a solução de que a vampira precisava.

    Ela estava um caco. Diferente do que se lê e se vê nos livros e filmes humanos, os seres noturnos não são imortais. É verdade que são mais resistentes a doenças e inevitavelmente mais fortes e mais rápidos de noite, mas eles envelhecem igual a todas as outras criaturas vivas — talvez um tico mais devagar. Só que, tendo perdido a maior parte do sistema digestório durante a transformação, vampiros precisam dos nutrientes no sangue dos outros para manter seu coração batendo e o resto dos órgãos funcionando.

    Muitos não têm problema nenhum em beber de outras pessoas; alguns bebem com tanta frequência que sua pele até chega a ficar menos pálida. A maioria prefere evitar a consciência pesada, igual a Sibel. A coitada se afastou das cidades humanas para não ficar tentada, pensando que poderia sobreviver com o sangue de animais. Mas, infelizmente, não é tão simples assim, e ela acabava vomitando quase tudo que bebia.

    Não era a primeira vez que o clã cruzava com um vampiro, daí a gente pôde ajudá-la a se recuperar com uma mistura que é um melhor substituto. Nenhum encontro é mera sorte, ou coincidência. Os Astros são sacanas demais para que não tenha nenhum motivo escrito nas entrelinhas.

    Isso se tornou ainda mais claro quando eu me apaixonei por Sibel.

    — Tati? — a vampira sussurra sua primeira palavra desde o início da viagem. — Você já pensou em como seria não viver mais com seu… grupo?

    — O que exatamente cê está me perguntando? — digo, dessa vez sem me virar para ela, parte de mim com medo de que, se eu fizer isso, ela se fechará de novo.

    — Bem… Você me ama, certo? Porque eu te amo, e você disse que me amava também naquela outra noite…

    — Sibela, que voltas são essas? Cê não costuma ser assim tão indireta.

    Ela para de andar e me para também, sua mão ainda entrelaçada à minha. Na mesma hora, eu começo a puxá-la para a gente não arriscar se perder do clã.

    — O que você acha de morar comigo? — ela grita sua proposta e cala meus protestos.

    Não entendo de cara o que ela quer dizer, porque a gente já mora uma com a outra. Uma semana depois que ela se juntou ao clã, talvez até menos, a gente já estava dividindo os mesmos lençóis e dormindo — entre outras coisas — na mesma tenda.

    — Tipo nas cidades humanas? — pergunto, assim que a possibilidade brota em minha mente.

    Sibel confirma com a cabeça, o brilho em seus olhos azuis mais intenso do que o usual.

    — Evidentemente, seria uma grande mudança, e compreendo que não temos muito dinheiro e que seria complicado…

    — Eu topo! — interrompo-a, finalmente fazendo sentido do arranjo misterioso das estrelas. Copio o sorriso no rosto magro de Sibel, uma empolgação desenfreada me enchendo tipo um frasco de poção. Beijo sua boca e lanço meus braços em seus ombros. Quando ela abraça minha cintura, levanto os pés do chão. Um gemido engraçado escorrega de seus lábios com a surpresa, mas a gente não cai, sustentadas pela força que a lua garante à vampira.

    De volta à terra firme, percebo Diogo se aproximando pelo canto de minha visão, os cabelos brancos e longos do chefe balançando durante os passos apressados e brilhando tanto quanto os olhos de Sibel no escuro da noite.

    — Tatiana, o que foi? Cê sabe que não deve fazer barulho — Diogo me repreende na mesma hora que alcança a gente, as mãos na cintura, acima da barra da calça de estampa parecida com a do lenço em sua cabeça. Ele usa o mesmo tom de voz que usava quando, mais de vinte anos atrás, eu era criança e insistia em perturbar os pássaros no topo das árvores que cercavam o acampamento do clã, confiante de que poderia convencê-los a me ensinar a voar. Eu não aguentava mais esperar por minha própria vassoura, muito menos pela idade adequada.

    — Está tudo bem? — ele pergunta, seus olhos saltando entre mim e Sibel, a expressão cansada em seu rosto disfarçada pela barba cheia.

    Puxo-o para o abraço mais apertado que consigo oferecer, e as pedras de nossos colares se chocam umas contra as outras, as correntes se enroscando e desenroscando. Com a força de meus braços, tento comunicar toda minha gratidão pelo acolhimento de tantos anos. Quando finalmente o solto, nós dois temos lágrimas nos olhos. Nem preciso contar sobre a proposta de Sibel. Ele já entende.

    — Pelo jeito, cê encontrou seu pássaro — Diogo diz, uma das mãos cheias de anéis em meu ombro e a outra esfregando o mesmo nariz arrebitado de todos os outros bruxos do clã, que, durante toda minha infância, eu invejei.

    De repente, sinto mais certeza na escolha que estou prestes a tomar, no rumo que estou prestes a seguir e com o que, na verdade, parte de mim sempre sonhou.

    — Sim, encontrei — concordo, voltando para os braços e o sorriso de Sibel.

    Imagem em preto e branco de pipa Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Capítulo 1:

    A fuga do reino da Cantareira

    Quando acabam os dez minutos que Peônia me pediu para esperar, o ritmo acelerado dentro do meu peito apenas piora. Saio ao encontro da noite e fecho a porta atrás de mim com o máximo possível de cautela, a fim de não acordar os vizinhos. Balanço minhas asas até os arbustos floridos no chão, o vento gelado arrepiando minha pele sensibilizada pelo nervoso.

    Pouso devagar e volto ao meu tamanho original, sem mais necessidade de permanecer um brilhinho minúsculo. Começo a planar, afastando-me das árvores agrupadas em meia-lua e com as moradas penduradas nos galhos. Embora não seja sempre eficaz, dormir no alto é a melhor forma de as fadas evitarem visitas indesejadas de vampiros sedentos.

    No meio do caminho, uma sensação incômoda pesa nos meus ombros e me força a parar. Viro-me para os troncos repletos de ranhuras profundas que me acolheram durante toda a minha vida, e meu olhar vaga à procura das dezenas de fadas que se escondem nas folhas no topo. Continuo a encarar o grupo de árvores robustas, incapaz de acreditar que esta será a última vez que estarei diante delas e que verei todos do Vilarejo.

    — Venha logo!

    Assusto-me com o sussurro gritado e salto para longe da mão que agarra meu ombro, pensamentos pessimistas se enroscando em meu coração inquieto, até eu reconhecer o rosto que me encara em confusão. Embora ela não esteja mais com suas asas à mostra, o brilho esbranquiçado das minhas é o suficiente para iluminar as bochechas magras e o nariz sardento da minha irmã, que todas as outras fadas dizem ser idêntica a mim.

    Logo que o susto passa, solto um suspiro de alívio. Peônia, por sua vez, ergue as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa, os braços cruzados abaixo do cordão de gravetos contorcidos pendendo sobre seu vestido cavado.

    — Estou bem — digo, tropeçando nos pés em uma tentativa de evitar seus olhos castanhos, outro traço que compartilhamos.

    — Se queres me enganar, terás que melhorar tuas estratégias, Lírio. — Ela me impede de seguir adiante, uma das mãos mais uma vez no meu ombro. — Eu já te expliquei que será deveras arriscado se trouxermos mais fadas conosco. Não poderemos diminuir de tamanho, tampouco poderemos voar… na verdade, não poderemos usar mágica alguma sem arriscar uma reação dos sensores que os bruxos têm espalhados pela Cantareira. Sabes disso. E, sinceramente, quem concordaria em participar?

    Não respondo. De fato, as outras fadas no Vilarejo nunca se interessaram por nossos esquemas de sabotagem, ou, como preferem chamar, nossos "devaneios de resistência". Peônia as ressente por isso. Mas eu entendo o medo que deve assombrá-las.

    Há séculos, o reino da Cantareira está submetido às vontades da aliança dos bruxos com os vampiros, e a maioria na comunidade esteve presente desde o início da tirania. Sempre ao me avistar, o ancião Crisântemo puxa-me pelo cotovelo para outra rodada de histórias sobre rebeliões fracassadas de tempos passados. Pelo que me disse, mesmo fugas bem-sucedidas resultavam na elaboração de uma nova tática para conter as fadas, tal como a criação dos sensores em 1924.

    Será que o mesmo acontecerá se eu e Peônia conseguirmos fugir nesta noite?

    — Quem dera as fadas tivessem sido banidas junto com os lobisomens após a Guerra das Duas Alianças.

    — Quem dera as fadas e os lobisomens tivessem vencido, queres dizer? — Peônia retruca, um sorriso crescendo nos lábios arroxeados pelo escuro. — Consegues imaginar uma Cantareira onde a energia que o Vilarejo coleta do sol seria usada em prol das fadas, em vez de ser usada para os artifícios e sensores estúpidos dos bruxos? Ah, melhor ainda: uma Cantareira onde os vampiros não teriam imunidade ao sol! Pois vampiro nenhum beberia de meu sangue se estivéssemos no comando.

    Os cantos de minha boca sobem em um riso frágil com o sonho que ela pinta em nossas mentes. Quem sabe um dia não se concretize, mesmo sem nós dois aqui para vermos acontecer? Agarro-me à vaga possibilidade enquanto tento espantar dos meus pensamentos a sensação incômoda que me paralisava.

    Preciso me concentrar no plano desta noite para que ele dê certo. Ele precisa dar certo antes que a saída que descobrimos, juntamente com todas as esperanças que nos trouxe, seja bloqueada da noite para o dia, e acabemos presos na Cantareira por mais dois séculos e meio.

    — Estou pronto.

    — Ótimo! Só não te esqueças de… sabe? — Ela não termina a frase, recuando e apontando por cima do meu ombro.

    Concordo com a cabeça, resignado. Tais quais as asas de qualquer outra fada, as minhas são integralmente compostas do pó mágico naturalmente produzido por nossos copos. Por mais que eu não goste de escondê-las, não há grandes problemas em guardá-las temporariamente. Deito-as nas minhas costas e mesclo-as com a minha pele, que arde, arde, arde. Tranco a boca a fim de permanecer em silêncio e, logo que o processo termina, suspiro toda a dor para fora do corpo.

    Com um último sorriso para mim, Peônia vira as costas e começa a se movimentar. Nos apressamos pelas fazendas, pelos jardins e pelas oficinas em que as fadas trabalham durante o dia, coletando e preparando ingredientes para as poções dos bruxos, ou convertendo os raios solares em energia manipulável. A minha garganta torna-se mais e mais seca a cada construção baixa de madeira pela qual passamos. Infelizmente, o único caminho até a saída é pelo Distrito dos Bruxos.

    Não demora para que as trilhas de terra sejam substituídas por estradas de cascalho e os nossos pés descalços comecem a reclamar. Mais à frente, atravessamos uma ponte curva, e eu evito que a minha atenção escorregue para a água fresca do rio, marcando o limite que as fadas não devem ultrapassar sem permissão. No Distrito, a vegetação abundante que nos cercava é substituída por estátuas rabugentas, cujos olhos de metal às vezes parecem me acompanhar, e casarões repletos de torres.

    Eu e Peônia logo encontramos uma ilha de árvores magras e arbustos sem flores, onde nos refugiamos para averiguar os arredores à procura de patrulhas. Os vampiros na Guarda Monárquica — ou Guarda Pálida, como preferimos chamar — não têm a mesma visão prejudicada que nós temos à noite. Por isso, não precisam de tochas ou feitiços dos bruxos para rondar as estradas. Felizmente, o tom pálido e reluzente de sua pele, sobretudo em contraste com a armadura vermelho-rubi, é quase tão chamativo quanto as luzes que nos ajudariam a prever a sua aproximação. Se pelo menos pudéssemos evocar nossas Auras…

    Esbarro o olhar no castelo dos vampiros ao longe, quase tão alto quanto os troncos enfeitiçados que nos separam dos humanos e suas fogueiras. Mal consigo enxergá-lo através da névoa azulada, de forma que a edificação sem luzes nas janelas mais parece um fantasma a pairar sobre o resto do reino tal qual uma ameaça encoberta.

    A ameaça que ele representa torna-se imediatamente mais clara quando ouço passos metálicos se aproximando e duas vozes distraídas em uma conversa preguiçosa. Peônia puxa-me para o chão e cobre as nossas bocas. Enquanto os ruídos crescem nos meus ouvidos, resisto ao impulso de libertar as asas e arriscar voar. Em vez disso, prendo a respiração e não movo sequer um dedo, o olhar fixo na expressão firme no rosto da minha irmã.

    Passado um tempo, após as vozes cansadas tomarem certa distância, Peônia espia por cima dos arbustos. Ela enfim solta as minhas bochechas e nos levantamos. De volta à estrada e à fuga, confiro no céu o quão longe estamos da saída. Foi por tremenda sorte que esbarramos naquela conversa de ontem, entre o vampiro nobre e um dos bruxos artífices responsáveis pela muralha contra o mundo externo. Desvio de uma constelação esquisita, que me lembra uma bifurcação, e encontro aquela com o caminho até o ponto fraco por onde planejamos partir.

    Não é incomum que os vampiros saiam da Cantareira vez ou outra — embora seja expressamente proibido que as fadas o façam. Eles são incapazes de ter filhos e, como não podem transformar as fadas — crias do sol e imunes ao vampirismo —, tampouco os seus fiéis aliados bruxos, procuram seus herdeiros do lado de fora. Não imagino que a crueldade seja inata aos humanos sequestrados, mais provável que lhes tenha sido ensinada, a despeito dos horrores que insistam em nos contar sobre os povos não-sobrenaturais.

    Será que são de fato piores do que a Aliança tirana? Ou será que tudo que nos contaram não passa de uma mentira para nos manter próximos?

    Desperto de tais questionamentos com uma cutucada de Peônia, que, sem eu perceber, recuou para ficar ao meu lado enquanto seguimos em frente. Ela me lança um sorriso conspiratório e ergue a estrela de bronze presa ao cordão de gravetos que nunca sai de seu pescoço.

    — Animado pra descobrir onde as estrelas se escondem durante o dia?

    A tensão em meus ombros evapora à medida que a pergunta feita resgata da memória o sonho de infância mais duradouro e mais caro que já tivemos. De repente, é como se os riscos não existissem mais, e a liberdade estivesse mais próxima, o ar preenchido por seu aroma dulcíssimo.

    Os bruxos não são os únicos obcecados pelas estrelas — tão obcecados que até mesmo a localização da saída foi confiada aos seus preciosos Astros. Eu e Peônia não as consideramos mediadoras do universo e do destino; contudo, sempre invejamos os brilhinhos voando sem restrições no céu, longe do alcance de qualquer mal-intencionado. Com mais intensidade do que o calor do verão, desejávamos chegar ao lugar em que as estrelas se escondiam durante o dia. Ansiávamos por convencê-las a nos levar ao céu para conhecer a lua, dançar nas nuvens e saborear a vida longe da Cantareira.

    Será que enfim realizaremos esse sonho?

    Mais próximos da parede colossal de troncos enfileirados, consigo sentir sob meus pés as raízes que se esticam da serra em nossa direção. É tanta vida que se comunica a cada novo passo que começo a me mover mais rápido, revigorado e levemente tentado a convocá-la à superfície. A muralha é tão antiga quanto o reino, fruto de um feitiço poderoso e preservado ao longo dos anos e, diferente do resto da natureza, ela é inflexível aos comandos das fadas. Contudo, também consigo sentir na sola dos pés o tal ponto fraco, onde os troncos são mais retorcidos e, aparentemente, mais complacentes. Mal consigo conter o sorriso que se espalha por todo o meu corpo.

    Ergo a mão, prestes a tocá-los e enchê-los com o meu pó quando um guincho de morcego ecoa sobre as nossas cabeças e afunda o sorriso dentro de mim em medo. Segundos depois, eu e Peônia somos interrompidos pela aparição de um vampiro ruivo de olhos azuis, um bigode arrogante acima do sorriso sem dentes. Reconheço-o de imediato: Augusto, o tenente mais cruel de toda a Guarda Pálida, como se tivesse prazer em atormentar as fadas, descontando no Vilarejo algum rancor secreto dentro do seu peito.

    — Indo a algum lugar?

    Eu e Peônia recuamos alguns passos, os braços erguidos em defesa contra as suas palavras, tão perigosas quanto os punhos fortalecidos pela noite. Se corrermos, seremos capazes de despistá-lo? E se voarmos? Incerto do que fazer, olho para minha irmã, mas sua expressão é indecifrável.

    — Fadas insolentes! Acharam mesmo que não seriam impedidas? — Alguns dos fios penteados para trás escapam e caem sobre a sua testa, uma risada seca saindo dos lábios finos.

    Continuamos em silêncio, atentos a qualquer investida súbita. Não é a primeira vez que somos flagrados e precisamos decidir entre nos rendermos ou lutarmos. Até hoje, evitamos confrontos, uma vez que o uso de mágica contra os vampiros é punido com morte. Todavia, esta é a primeira vez que passar algumas noites nas masmorras não é mais uma opção. Se eu e Peônia não fugirmos agora, Augusto sem dúvida sumirá com a saída que descobrimos, e talvez nunca mais tenhamos outra chance, o que em nada me ajuda a acalmar o tremor nas pernas.

    De novo, olho para minha irmã. As linhas esticadas em sua testa me revelam que ela está pensando o mesmo. Infelizmente, Augusto também parece perceber.

    — Melhor que não estejam tramando algo de que se arrependerão. Não há nada que valha tanto esforço além da muralha. — Uma sombra atravessa os seus olhos cintilantes antes de ele continuar, alargando o sorriso: — Considerem-se sortudos: concordarei em ignorar seu descaso pelo toque de recolher se permitirem que os meus guardas dedicados bebam um tiquinho. — Ele abre os braços em um gesto deveras largo para o Distrito, e minhas pernas trêmulas ameaçam

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