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Pandora
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E-book291 páginas3 horas

Pandora

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Sobre este e-book

Após o desaparecimento de Lúcio, sua filha Pandora é levada de volta para sua cidade natal, onde deve se passar por homem para assumir o papel de Sacerdote. Envolvida em uma trama complexa entre inimigos, líderes ditatoriais e aliados secretos, ela precisa decidir seu próprio caminho: desfazer tudo pelo que os Surdos lutaram, ou seguir os passos de seu pai.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de set. de 2021
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    Pré-visualização do livro

    Pandora - Vivian Cabrelli Mansano

    PANDORA

    (Trilogia Dantálion – Livro III)

    Vivian Cabrelli Mansano

    Nunca é alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo.

    Friedrich Nietzsche

    Prólogo

    Lenora está sentada sobre a cadeira, observando a criança brincar na orla enquanto as ondas quebram à distância.

    Já faz mais de dois anos que Lúcio desapareceu sem deixar nenhum vestígio.

    Ela leva a mão ao peito, a saudade ainda ferindo seu coração.

    O pior de tudo é a incerteza sobre seu destino: estaria ele morto, levado pelas águas do mar, ou a teria abandonado de propósito, incapaz de suportar o peso do passado sobre o presente?

    Se ao menos soubesse o que houve com ele, poderia se agarrar àquela certeza, e as dúvidas não mais a perturbariam.

    A menina levanta uma das mãos, exibindo com orgulho uma concha alaranjada que encontrou na areia. A mãe solta a costura por um instante, batendo palmas em aprovação. A criança sorri.

    De qualquer modo, já fazia tempo que Lúcio era atormentado pela insanidade. Não era raro acordar no meio da noite, gritando sem parar, chamando por vários nomes de pessoas mortas. Ele não tinha superado o passado. Quem teria? Quem, afinal, seria capaz de passar pelo que ele passou e continuar são? Ela mesma, em determinadas ocasiões, chegava a ter crises de pânico ao lembrar-se da vida antiga, dentro dos limites da cidade. Se ela sofria os traumas, imagine ele, que, além de participar, havia sido o responsável por muitos acontecimentos terríveis e tomado em suas mãos a culpa...

    E então, num dia qualquer, disse que ia tomar um banho de mar para refrescar a mente e não retornou. Talvez o mar o tenha tragado. Talvez ele tenha fugido. Talvez alguém o tenha interceptado...

    Nenhuma das hipóteses é boa.

    Ela olha novamente para a filha, que continua a caminhar sobre a areia, coletando conchas. Que tipo de futuro a aguardava? Ali, sozinha, sem nunca ter conhecido nenhuma outra pessoa além dos pais, uma criatura quase selvagem que pouco falava e pouco tinha a dizer? Que tipo de futuro poderia ter num mundo devastado pela miséria humana?

    Para piorar a situação, agora já não tinha o pai. Se algo lhe acontecesse, como a filha sobreviveria sozinha?

    Um movimento em sua visão periférica chama sua atenção.

    Ela vira o rosto.

    Sentindo o corpo gelar, fecha os dedos instintivamente ao redor do cabo negro da adaga, mantendo a arma escondida sob as roupas que costura, preparada para atacar o estranho que caminha calmamente em sua direção.

    Pandora continua a brincar, sem notar a presença do intruso.

    Ele segue diretamente para a mulher, sem qualquer tipo de receio ou ameaça. Pela fisionomia, deve ser mais velho, embora seja difícil dizer pela barba mal feita e pelo chapéu amassado que cobre boa parte de seu rosto. Poderia ter desde trinta a cinquenta anos. Pelas roupas, porém, ela sabe dizer exatamente de onde ele vem.

    - Senhora Kali? – ele pergunta, apertando os olhos para vê-la melhor.

    Seu julgamento estava correto. Ele vinha da cidade. Muito mais que isso: vinha diretamente dos Surdos.

    - Quem é você?

    - Sou um amigo.

    - Eu não tenho amigos. – rosna.

    - Não era assim que costumava conversar comigo, Kali.

    Ela olha de relance para a filha, que, tendo finalmente percebido a presença do estranho, observa a mãe com os olhos arregalados.

    - Diga-me quem você é, ou eu te mato. – rosna novamente, exibindo a lâmina nas mãos.

    O homem sorri, retirando o chapéu.

    - Você não mudou nada, minha companheira. Sou eu, Buer. Não me reconhece sem aquela máscara?

    Lenora estreita os olhos, incapaz de acreditar no que acaba de ouvir. Restavam alguns deles vivos, então.

    - O que você veio fazer aqui? Está perdido? A cidade fica para o outro lado.

    Buer amassa o chapéu velho entre os dedos, deformando-o.

    - Nós tivemos um problema.

    - E quando foi que vocês não tiveram um problema? Problemas da Decapital não são problemas meus. Vá embora.

    O homem ergue o olhar em direção à menina, que continua imóvel, observando-os.

    - Você não acha que sua filha merece uma vida melhor do que esta? Na cidade ela terá comida, roupas, abrigo, amigos...

    Um soco atinge seu rosto, fazendo-o tropeçar alguns passos para trás.

    - Nunca mais fale de minha filha, está ouvindo?! Não meta ela nessa conversa!

    Sem se irritar, Buer apenas sorri, massageando a bochecha com os dedos.

    - Desculpe-me pelo inconveniente, Kali. Vou direto ao ponto, se preferir. O que acontece é que uma guerra civil está prestes a estourar, e eles querem o filho do Sacerdote para governá-los e tentar colocar as coisas nos eixos de novo. Por isso eu resolvi procurar Lúcio. – seus olhos varrem toda a extensão da praia – Mas tenho certeza que se ele estivesse aqui já teria aparecido a esta altura, não é verdade?

    - Ele precisou sair. – ela responde entredentes, contendo as emoções para não deixar nada transparecer – E não voltaria para aquele lugar, nem que sua vida dependesse disso. Não há nada para fazer aqui. Além do mais, ele não tem nenhum filho homem para suceder o Palácio.

    Erguendo as sobrancelhas para a criança, Buer sorri.

    - Sabe que, de longe, ela até parece um menino?

    PARTE I

    Junto à porta, Mulan tece,

    Quando, de repente, a lançadeira cessa

    Ouve-se um suspiro cheio de angústia

    Oh, minha filha, quem está em sua mente?

    Oh, minha filha, quem está em seu coração?

    Não há ninguém em minha mente

    Não há ninguém em meu coração

    Mas noite passada li sobre a batalha

    Eram doze pergaminhos

    O Khan sorteará os que irão à guerra

    O nome de meu pai está em todas as contas

    Ah, meu pai não tem um filho crescido

    Ah, Mulan não tem um irmão mais velho

    Mas comprarei uma sela e um cavalo e me unirei ao exército no lugar de meu pai.

    No mercado do leste ela compra um corcel

    No mercado do oeste ela compra uma sela

    No mercado do norte ela compra um longo chicote

    No mercado do sul ela compra uma rédea

    Na alvorada ela se despede da família

    No crepúsculo ela se assenta à beira do Rio Amarelo

    Ela não mais ouve seus pais a chamarem

    Sob seu travesseiro, as águas sussurram

    No crepúsculo ela chega à Montanha Negra

    Ela não mais ouve seus pais a chamarem, mas sim os gemidos dos cavalos tártaros nas montanhas de Yen

    Ela cavalga milhares de quilômetros rumo à guerra que deve honrar

    Ela atravessa altas montanhas como uma águia nas alturas

    Das tempestades do norte, no frio que fustiga, ecoa o sino do guarda

    A luz fria e azulada do gelo ilumina sua armadura

    Generais morrem em cem batalhas

    Nosso guerreiro está de volta

    Dez anos voaram.

    Balada de Mulan (século V A.D.)

    Autor Desconhecido.

    1.

    - Em nome de nosso amado Sacerdote, eu venho até o Púlpito trazer-lhes novamente as palavras de nossa santíssima Voz! - Camilo sorri, as mãos levemente erguidas - Por anos, os inimigos da Voz tentaram destruir tudo que nossos ancestrais construíram sobre esta cidade... - resguardados pelas barreiras de proteção, os membros da guarda mantêm as armas apontadas casualmente para a multidão - Mas aqui estamos, de pé, diante de nosso eterno e inabalável Templo! Louvada seja a Restauração! - ele agora grita, sua voz potente ecoando pelos muros de concreto que isolam o centro.

    Camilo então pende a cabeça para o lado, movendo os lábios num contraste de doçura e malícia, suas palavras cedendo para um tom suave:

    - E todos aqueles que se opuserem a nós serão executados.

    Aplausos de euforia estouram através da multidão reunida diante do palanque. Os estalos de contentamento, porém, são claramente desuniformes, e há vãos entre as mãos que aplaudem. Há vazios no meio da plateia, vácuos de mãos que fingem aplaudir, mas permanecem silenciosas. É para estes vazios duvidosos que apontam as armas da guarda.

    Os Surdos.

    Camilo reflete, esforçando-se para manter a firmeza de seus gestos.

    Os malditos Surdos que nunca morrem.

    2.

    Pessoas não crescem da noite para o dia, como algumas flores. Elas crescem como o passar da lua e das estações, lenta e progressivamente. Como o sol, que tomba para um dos lados durante o inverno.

    É preciso observar com atenção as sombras para perceber que o sol muda de posição. A mudança das estações é muito natural, e, ainda assim, poucas pessoas percebem os sutis detalhes que a desencadeiam.

    Pessoas crescem assim, menos de um milímetro por noite, menos de um fio de cabelo por dia, até que sejam irreconhecíveis.

    Eu cresci somente com minha mãe por companhia, e talvez por isso o único detalhe de meu crescimento que pude notar foi minha sombra, cada vez mais distante de meus pés. Será que é assim para todos? Nós só sabemos que crescemos porque nossa escuridão também cresce? Meu verão deve ter acabado faz algum tempo, então, porque minha sombra tem crescido exponencialmente.

    Conchas também não crescem da noite para o dia, elas simplesmente existem em seu tamanho real. Os bichos da praia trocam das menores para as maiores, mas nunca vi qual dos bichos fez a concha. Ela sempre esteve lá, presença eterna e imortal. Por isso as conchas me fascinavam. Eu poderia trocar para conchas cada vez mais amplas, e ainda assim nunca seria capaz de fabricar minha própria. Eu estaria me protegendo sob algo que outros criaram, principalmente sob algo que homens criaram, porque homens são especialistas em criarem conchas para esconderem mulheres. E a concha sob a qual Pandora se escondeu recebeu o título de Sacerdote.

    Essa concha foi formada lentamente através dos eventos de minha vida. A primeira estrutura pétrea, porém, veio na forma de uma simples frase:

    - Suba na moto. Não tenho o dia todo para perder com você.

    Ele estava sério, seus olhos encobertos pelas espessas lentes escuras que usava. Eu observava sua barba dura, saltando como espinheiros de sua pele acidentada. Era assim que eram os homens?

    - Eu não vou repetir, garota. Suba logo, ou eu terei que ir até aí pegar você.

    - Mãe?

    - Sua mãe virá depois, eu já te disse um milhão de vezes. Você não sabe falar nada além disso?

    - Mãe? – repeti, olhando para trás, onde nossa pequena cabana de madeira se mantinha firme contra o vento que erguia as ondas.

    Ele resmungou com irritação e se levantou da moto, avançando sobre mim e me erguendo do chão.

    - Está vendo só o que acontece quando alguém cresce no meio da selva como você? Se torna um macaco que mal sabe balbuciar meia dúzia de palavras. Para sua sorte, você não vai precisar falar muito no lugar para onde vamos. Mas se puder me obedecer, já seria uma grande coisa. Não me obrigue a usar a força para te fazer obedecer, menina, seria um equilíbrio de poder muito injusto para o seu lado.

    Ele me posicionou sobre o assento traseiro.

    - Não solte as mãos de mim. Espero que saiba obedecer isso, ou então vai acabar perdida no meio do mato. Você consegue entender?

    Sacudi a cabeça, sem tirar os olhos da cabana.

    - Não quero sem minha mãe. – murmurei.

    - Sua mãe vai chegar dois dias depois que nós. Fique tranquila, já está tudo acertado para ela. Mandarei alguém vir buscá-la assim que chegarmos ao Palácio. Se formos rápidos, estaremos lá antes da noite. Agora comporte-se e seja uma boa menina, sim?

    - Mãe? – sussurrei, observando a cabana que se afastava de mim.

    3.

    Camilo percorre o pescoço com seu lenço encardido, secando as gotas de suor que traçam caminhos brilhantes por sua pele. Sua expressão, como usual, é tranquila e animada.

    - E então, senhor Sacerdote, preparado para a cerimônia de amanhã?

    Pandora suspira, desamarrando a última tira da túnica cerimonial para vestir suas roupas cotidianas, tão largas que poderiam abrigar duas ou três dela.

    - Nunca.

    - O que é isso, meu senhor? – ri Camilo, segurando nos braços dobrados a túnica que ela deposita sobre ele – O casamento é o momento mais importante da vida de um Sacerdote. A escolha que definirá todo seu futuro.

    Ela encara as pontas dos dedos dos pés, quase encobertas pela barra enorme da túnica cotidiana.

    - Que escolha?

    Pandora não teria escolha alguma, a cerimônia já estava acertada há meses. Deveria escolher a garota que estivesse usando o sinal, uma agente da Ponte, que dividiria com Camilo e os outros a responsabilidade de reequilibrar a sociedade após a ruptura da Revolução Surda. Camilo já havia repetido aquele sermão dezenas de vezes nas últimas semanas, como sempre repetia tudo que dizia, com medo que a mente fraca de Pandora esquecesse.

    - Não se esqueça que deve escolher a garota certa. – ele diz, quase que para confirmar suas reflexões.

    - Você ainda não disse qual o sinal.

    - Ah, é mesmo... – ele ajeita os ombros para que sua própria túnica cinza se assente em seu corpo esguio – Ela estará com um lenço vermelho no cabelo. Não a confunda com ninguém, senhor, eu sei que sua visão não é muito boa.

    - Pare de chamar de senhor.

    Os dentes pontiagudos do Auxiliador se revelam, um ou outro espaço vazio nas gengivas de baixo.

    - Não é porque estamos entre quatro paredes que você deve desfazer seu disfarce, senhor Sacerdote. Lembre-se que as paredes têm ouvidos, ouvidos Surdos que escutam muito bem. Você sabe que esses vermezinhos conseguem se infiltrar em qualquer buraco, são piores que ratos.

    Pandora pisca os olhos algumas vezes, observando fixamente uma falha na parede de pedra do Palácio. Os murmúrios das vozes lá fora se distanciam conforme a multidão de espectadores se dispersa.

    - Você era um deles, Camilo.

    O Auxiliador sorri novamente, soltando um grunhido abafado.

    - Todos nós cometemos erros, senhor Sacerdote.

    4.

    Ele parou a motocicleta no meio da floresta. Estávamos cercados por árvores que não me deixavam ver além de alguns passos de distância. Os arbustos estalavam de vez em quando, embora eu não pudesse descobrir o que exatamente os fazia estalar. Aquele homem, ainda um estranho para mim, desmontou sua moto e caminhou para onde eu estava, uma lâmina em suas mãos.

    - Sua mãe te explicou o que viemos fazer aqui, Pandora?

    Eu não sabia se deveria mover a cabeça para cima ou para os lados, então fiquei quieta enquanto ele aproximava a lâmina de mim. Meu corpo esfriou. Eu sabia do que lâminas eram capazes, minha mãe caçava com aquela velha adaga com o cabo escuro, e nenhum animal continuava vivo depois do segundo ou terceiro golpe. Às vezes nem mesmo do primeiro.

    Camilo agachou à minha frente para olhar na altura de meus olhos.

    - Nós estamos voltando para a cidade onde seu pai e sua mãe nasceram. Seu pai era o Sacerdote, o que significa que você é a herdeira natural do Palácio. – ele soltou uma lufada de ar com ironia – O problema é que o Palácio só pode pertencer a homens, e você é uma menina. Conhecendo sua mãe, porém, sei que você provavelmente não terá muitas curvas, e isso será bom para seu disfarce. Mesmo assim, precisamos dar um jeito em seu cabelo antes de cruzarmos a fronteira.

    Ele me estendeu a lâmina, e só então eu entendi para que ela serviria.

    - Você prefere que eu faça ou você mesma quer fazer as honras?

    Peguei a faca de sua mão. Era mais leve que a adaga de minha mãe, mas ainda assim pesava.

    Puxei a parte de trás de meu cabelo, que chegava até a metade de minhas costas, e deslizei o dente de metal pelos fios que chiaram antes de se soltarem em meus dedos.

    Depois de alguns minutos, o chão da floresta estava cheio de cabelos castanhos, e eu estava pronta para deixar de ser quem sempre fui.

    5.

    Uma fileira de túnicas cinza, formada por todos os Auxiliadores escolhidos por Camilo, permanece cuidadosamente alinhada sobre o palanque. À frente deles está o próprio Camilo, ocupando a posição de Auxiliador pessoal do Sacerdote. O Sacerdote, por sua vez, tenta reprimir os tremores da garota que se esconde sob seu manto dourado.

    Logo abaixo das presenças masculinas, um punhado de mulheres aguarda, vestidas de maneira precária, com o máximo de extravagância que podiam arcar. As diferentes origens e classes econômicas de cada uma se estampam nas cores e qualidade dos tecidos que vestem.

    Pandora fecha os olhos e tenta manter a concentração. Não há motivos para sentir medo, basta apontar para a garota certa e tudo estará acabado em poucos minutos, sem que nenhuma dentre as milhares de pessoas que a observam descubra a fraude de que ela não passa.

    Camilo profere um discurso longo e acalorado, ao qual ela não presta muita atenção. Em meio a centenas de palavras desconexas, ele fala sobre o amor, a união e a sacralidade do casamento. Pandora estremece, contendo um riso maldoso.

    O amor, a união e a sacralidade de um casamento que, além de ser totalmente motivado por interesses políticos, não passa de uma fraude. Ninguém está se casando hoje, muito menos duas mulheres numa cidade que condena à morte relações entre iguais. Hoje, esta cerimônia não passa de mais uma afirmação de como a cidade é construída sobre mentiras e ilusões. A mentira sobre os textos sagrados, a mentira sobre a Voz, a mentira sobre o Sacerdote...

    A Ordem dos Surdos havia destruído o véu que encobria muitas dessas mentiras, seus rostos escondidos sob as máscaras negras haviam exposto as entranhas malcheirosas daquela cidade. E, mesmo assim, falharam.

    Quase duas décadas depois da rebelião liderada por Lúcio, ali estavam novamente os Auxiliadores diante do Templo, revivendo rituais antigos, preservando as tradições do passado com todo o esplendor que lhes era possível, embora o abalo das estruturas sociais tenha claramente deixado sequelas irreparáveis. Como as rachaduras que desciam pelas laterais do Templo e se alastravam pelo chão, as cicatrizes abertas pelos Surdos não poderiam ser encobertas ou disfarçadas. Estavam ali para quem quisesse ver. E, como qualquer trinco, ameaçavam a solidez da pedra sobre a qual os Auxiliadores agora pisavam.

    O acesso ao mundo externo havia garantido eletricidade, tecnologia e armas, coisas que haviam mudado definitivamente a forma como aquelas pessoas compreendiam a vida, apesar de serem caríssimas e acessíveis apenas aos mais poderosos. Os grupos de trabalho haviam mudado radicalmente, e, pela primeira vez, havia pessoas sem ocupação, que vagavam pelas ruas pedindo esmolas. O próprio dinheiro era algo totalmente novo, e completamente desajustado, o preço de alimentos básicos variando imprevisivelmente da noite para o dia, ora gerando filas enormes para abastecimento, ora fazendo pilhas e pilhas de nutrientes preciosos apodrecerem em depósitos largados aos céus.

    Sem um sistema legal ou legisladores, a criminalidade subiu para níveis alarmantes. Assaltos, sequestros e assassinatos tornaram-se rotina. Pessoas matavam outras pessoas para arrancar-lhes algumas notas de papel que mal tinham um valor fixado. O Palácio, antes protegido apenas pela Voz, agora era cercado por atiradores de elite armados de fuzis. E os Surdos, ou o que restou deles, aproveitaram seu anonimato para fugirem antes que fosse tarde demais, deixando o governo à deriva para quem tivesse mais balas para encher os fuzis.

    Era por isso que o retorno do

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