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Reconhecíveis
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E-book141 páginas2 horas

Reconhecíveis

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Sobre este e-book

Vinte contos, de temas variados, que trazem em comum a observação da natureza humana. O autor traz, em meio à escrita realista e pessimista, aspectos que reconhecemos. Alguns para rir, outros para chorar, uns para se envergonhar e outros que pedimos a Deus que não sejam reconhecidos em nós mesmos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de abr. de 2020
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    Reconhecíveis - Anderson Câmara

    Anderson Câmara

    Reconhecíveis

    1º Edição

    Anderson Câmara do Nascimento

    2020


    Dedico minha obra mais feia

     à dama mais bela, minha amada Daiene.


    Prezado leitor.

    No momento em que escrevo esta breve apresentação, há  apenas dez anos desde que decidi ser escritor, se é que isto se permita decidir. Neste período, que marcou o auge e o fim de minha fresca juventude, percebi como alvo a caótica, rançosa e multicolorida natureza humana. Com este eixo reuni vinte contos, escritos dentro deste período de dez anos. É claro que me orgulho de uns mais do que me envergonho de outros; alguns por ter eu (e outros) percebido uns padrões, e isto, é claro, me fascina tanto quanto enraivece. Enraivece porque toda criatura que se entrega à pretensão de se chamar de intelectual teme com amargor a possibilidade de ser entendido e explicado, prefere permanecer um mistério intocado até para si mesmo, característica que o difere dos demais. Ser explicado significa, portanto, se tornar comum, e isto escritor nenhum quer, ou não publicaria. Fascina, contudo, porque percebo que sou muitos dos que inventei, expliquei, expus e envergonhei nestes contos. E assim como amargamente me encontrei nestes arquétipos, espero que o leitor também reconheça a si mesmo.

    Belford Roxo

    30/08/2020

    Microfonia

    Josival empunhou bravamente sua vassoura. Atravessando a porta de ferro, recém pintada de azul escuro, pôs a vassoura no ombro e percorreu o largo corredor em direção ao refeitório. Alguns alunos remanescentes passaram por ele, apressados, pois o sinal tinha acabado de tocar e sabia, de ouvir falar, que o Marco de matemática era implacável com o horário da aula. Ele se virou, um pouco mais desdenhoso do que percebeu, para acompanhar a corrida dos garotos. Iam se ferrar, se não corressem. Era bom sofrer as consequências para aprender a ter responsabilidade. Olhou para a frente, satisfeito consigo mesmo. Josival permanecia dez anos incólume naquele trabalho, sem nunca, nem um dia, nem mesmo quando sua tia-avó morrera, deixar de brandir sua vassoura.

    Adentrou um refeitório de quatro mesas, bem clareado por luz natural, onde o azul escuro dividia espaço com um cinza claro. Levou uns dois segundos admirando orgulhosamente a linha perfeitamente horizontal em que as duas cores se encontravam. Depois disso viu as mesas. Os últimos jovens tinham largado as bandejas ali mesmo, onde também havia arroz, suco derramado, copos descartáveis e frutas comidas pela metade. Respirou fundo, jogou os restos de comida na lixeira, levou as bandejas para a pia, deixando ali um boa tarde, Lucinha, e começou a jogar todo o lixo no chão para então varrer. Estava satisfeito, era um emprego simples que pagava bem. Detestava aqueles outros que viviam a reclamar sem motivo. Punha-se sempre a repreendê-los, lembrando-os dos tantos moradores de rua que havia naquela cidade.

    – Josival!

    – Fala aí, Lucinha!

    – O Seu Beto quer saber se já chegou os pano de chão novo!

    – Chegou nada, Lucinha. To achando que o diretor enfiou esse pedido…

    – Olha!

    Josival riu e completou.

    – Enfiou numa gaveta e esqueceu.

    – Ah, mas deve ser mesmo. Saiu de férias com pressa e não falou nada pro Fabiano. O coitado deve tar perdidinho.

    – É nada, Lucinha. Ouvi dizer que a escola tá sem dinheiro.

    – Como assim?

    – Depois do coronavirus, teve bem menas gente matriculando as criança aqui.

    – Ah, Josival. Tá sem dinheiro pra cuidar da piscina, né? Pano de chão é barato! Eu já vi o orçamento que o seu Beto faz. Vejo direto.

    Em meio às vassouradas e às pancadas de uma bandeja sobre a outra na pilha que Lucinha montava enquanto lavava a louça, Josival pensou sobre como pessoas que ostentavam cargos e títulos conseguiam ser tão incompetentes. Imaginou um pedido de compra de panos de chão deslizando de uma pilha de papéis para baixo de algum armário no escritório da direção, imaginou o diretor irritado porque sua sala tinha cheiro de pano de chão velho e descobrindo que a falha tinha sido de seu braço direito. Enquanto isso, o antigo faxineiro Josival terá apenas feito muito bem o seu trabalho, como sempre. E, mais revolucionário e vingativo do que podia perceber, riu.

    – Tá rindo de quê?

    – Alguém vai ser demitido quando o diretor voltar.

    – Ai, que isso, Josival. Benza Deus! Ninguém tá podendo ser despedido nesses tempos não.

    Josival, tendo terminado de varrer o salão e limpado as mesas, com um trapo que já estava cinza, aliás, pôs de novo sua vassoura no ombro e lançou um olhar risonho a Lucinha.

    – Vai vendo.

    Lucinha o viu se afastar e continuou a lavar as bandejas, bastante preocupada. Josival estava ali fazia tempo, ela não. A quarentena tinha sido penosa para ela, era um milagre conseguir um emprego logo assim que a vida voltou ao normal, tendo ainda tanta gente que não conseguiu se recuperar. Ela ainda temia que encontrassem uma bandeja com um resto de caldo de feijão grudado e levassem uma reclamação adiante. Sua visão já não era tão boa para essas coisas, por isso lavava sempre a mesma bandeja duas vezes.

    – Não acabou não, Lucinha? – disse o Seu Beto, atrás dela. – Deixa isso pra depois, lava logo a panela que hoje começa o turno da noite, e aí vai ter janta.

    – Ai, meu Deus, seu Beto. Eu já termino, tudo bem?

    Seu Beto era um homem grande e um pouco corpulento, responsável pela cozinha e pela limpeza na escola. Tinha um grande coração; era atencioso porque sabia que seu serviço exigia que exigisse muito dos outros. Notou logo, pelo tom, que Lucinha não estava normal.

    – O que foi, Lucinha? Aconteceu alguma coisa?

    – Ai, Seu Beto. É que o Josival me contou uma coisa.

    Josival era antigo. Além de conhecer bem o funcionamento da escola, a natureza de seu serviço fazia com que tivesse contato com todos os ambientes e pessoas dali. O que ele dissesse não era de se jogar fora.

    – Foi o que, Lucinha? Vão cancelar as aulas de novo?

    – Não, pelo amor de Deus! – Inclinou-se para ele e sussurrou bastante alto. – Ele falou que alguém vai ser despedido.

    O pobre homem sentiu seu coração acelerar perigosamente e, sem dar resposta a Lucinha ou se despedir, saiu da cozinha pensando em seu remédio de pressão. No corredor, Josival, tranquilo e inatingível, passava pano no chão. Seu Beto saiu por uma porta lateral, atravessando a quadra poliesportiva, se esgueirando entre o ginásio e a piscina, já um pouco verde, e chegou ao estacionamento. Andou apressado até a vaga onde deixara seu Fusca, o sol carioca de Fevereiro era cruel e fazia sua situação piorar. Entrou no carro e encontrou sua bolsa, onde estava a cartela de remédios. Deixava ali para não tomar desnecessariamente, mas não havia dúvidas de que precisava agora.

    Um carro não muito mais novo que o seu estacionou na vaga ao lado. Reconheceu a professora Patrícia, de biologia.

    – Boa tarde, Patrícia.

    – Oi, Seu Beto. Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

    – Sim, mas… quer dizer, não… é… você tem um pouco de água aí, pra eu tomar o remédio de pressão?

    A professora se alarmou e foi imediatamente vasculhar a mochila, dando a ele a garrafa térmica que usava na academia. Seu Beto depositou o comprimido na língua e derramou a água na boca sem tocar os lábios na garrafa. Agradeceu e suspirou.

    – Meu Deus, Seu Beto. O que houve? Tá passando mal?

    – Não se preocupa. Eu ouvi uma coisa que… Ah, nada. Melhor deixar pra lá. – E fez menção de sair de entre os carros.

    – Ai, me fala, pelo amor de Deus! Se não eu não vou conseguir dar aula hoje. Vou ficar pensando nisso.

    Recostados cada um no seu carro, ela o ouviu discorrer durante cinco minutos que a pandemia de coronavirus tinha deixado consequências desastrosas no Brasil e a escola não era diferente, porque nem sequer um fardo de pano de chão eles estavam podendo comprar. Deu como exemplo a piscina, carro chefe da propaganda da escola, que não era tratada há um mês. E ela ouvia, concordando, aceitando a plausibilidade, com o cenho franzido. Seus olhos arregalaram quando ele chegou ao final: estava para ocorrer demissões na escola.

    – Ah, não! – Disse ela. – De novo não. Tenho umas cinco contas de luz pra pagar!

    – Eu, nem se fala. Mas deixa eu ir lá, que se eles me mandarem embora, não vai ser por fazer meu trabalho desleixado! Obrigado pela água, Patrícia.

    – Por nada… – Ela falou com ar aéreo, abismada que estava.

    Trancou o carro, pôs a mochila no ombro e foi em direção à sala de professores. A crise era real. Achou que a redução do corpo docente não tinha acontecido ainda por se tratar de uma escola particular. Não duvidava nada que, nas escolas públicas, o presidente já tinha sugerido demitir professores de disciplinas que ele considerava desnecessárias. Certamente artes seria a primeira. Biologia em seguida, com certeza. Depois de ser tão xingado por atacar a ciência, ele iria querer revidar. Tinha certeza disso.

    Andara tão distraída que mal se dera conta de já ter chegado à sala dos professores. Entrou, guardando as coisas no seu escaninho. Queria voltar no tempo e não ter pedido ao Seu Beto para lhe contar aquela coisa terrível; agora sim é que não conseguiria concentração para a aula dinâmica e divertida que despertava a simpatia de seus alunos.

    – Patrícia!

    Subitamente percebeu que alguém a estivera chamando e, de tão absorta em sua mente, ignorara por completo o mundo exterior. Olhou e viu o rosto velho e negro de Marco, de matemática. Acumulava à docência a função de coordenador do ensino médio, o que significava para Patrícia um cargo de chefia que lhe impunha temor. Tinha sempre receio de estar perto dele e não se comportar adequadamente. Nesta tarde, sentiu-se gelar ao ver que Marco lhe estendia uma folha de papel.

    – Ah, não.

    – Ah não o que, Patrícia? Tá no mundo da lua? Assina isso aqui e vai na secretaria pegar teu cheque.

    Ela ficou observando o professor ainda um pouco aturdida e então se deu conta da própria estupidez.

    – Aah… desculpa, eu achei que… já tava sendo despedida.

    Marco, que por quarenta anos convivia bem com sua mente lógica, sabia que Patrícia era muito fatalista e não era boa em fazer piadas. Sabia também que sua ética a impedia de fazer piadas sujas ou imorais; demissão certamente não estaria na sua gama de temas para piadas ruins.

    – Onde você ouviu isso? – Indagou, veemente.

    Patrícia lhe devolveu a folha assinada ainda mais espantada que antes. Aquela resposta de Marco, que tinha frequentes reuniões com a direção, soava como a confirmação de tudo o que Seu Beto lhe contara.

    – Foi… foi o… O cara da limpeza…

    – O Josival?

    – Não, o que fica na cozinha. O Seu Beto.

    – Hum… – Murmurou, pensativo, depois completou. – Vai na secretaria pegar teu cheque antes das quatro.

    – Tá bem.

    Marco saiu da sala dos professores com intenção de voltar à sala de aula, onde deixara trinta alunos tentando descobrir a razão de uma progressão aritmética para ir ao banheiro. No caminho, vira Patrícia andando apressada e achara uma boa oportunidade para colher aquela assinatura. Em vez de retornar à sala,

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