A Questão Dialética & A Questão Do Poder
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A Questão Dialética & A Questão Do Poder - João Ribeiro De A. Borba
Introdução: Percurso intelectual entre Flusser, Proudhon e Kamper, em busca de uma dialética que vá além de si
Nos tempos de minha graduação no Departamento de Filosofia da USP – Universidade de São Paulo, já esboçava — sob inspiração indireta por um lado do autodidata Vilém Flusser (de sua dialética entre o sincrônico e o diacrônico), por outro de minhas experiências como ator amador, e por lado outro ainda da noção de aparência no ceticismo pirrônico¹ — uma espécie de dialética da aparência e da ação. A ideia cresceu depois recebendo influência do perspectivismo de Pascal², que reencontrei, estudando por conta própria, em Protágoras.
No Mestrado, entre os dois autodidatas que mais me haviam influenciado desde a adolescência, Flusser e o anarquista Pierre-Joseph Proudhon, escolhi estudar este último, em busca de material para o aprofundamento de meus rascunhos dialéticos. Mas só encontrei esse material quando insisti em Proudhon no Doutorado³, em outra obra dele. Concluí esse Doutorado em Filosofia em 2008.
Passei então a aprofundar ainda mais, sob essas influências minha própria concepção da dialética. Paralelamente, com um magnetismo irresistível, era atraído para um confronto com a lógica matemática elementar de primeira ordem (a também chamada lógica conjuntista
), sentindo ora a necessidade de refutá-la com o que chamava de minha paralógica
ou anti-lógica
, ora a necessidade de estabelecer o difícil, tortuoso e conflituoso diálogo dela com aquela dialética que eu vinha desenvolvendo.
No caminho, me enamorei malandramente de outra área da matemática: a topologia⁴ — mas apenas em seus princípios básicos, rompendo o namoro sempre que ela pretendia avançar para além disto. Nem por isso era (e é) uma paixão menos verdadeira. Passei a tentar pôr em diálogo a topologia e a dialética.
Nos toques finais, na costura final, dessa minha dialética com toques de topologia (ou topodialética
), aprofundei meu conhecimento de todo o elaboradíssimo trabalho dialético de Flusser, tomei conhecimento (um pouco mais superficialmente) da dialética também complexa de Mário Ferreira dos Santos, e finalmente, me apaixonei pela dialética de Ernst Bloch (que já interessava a Flusser), e me aprofundei ainda mais na dialética de Proudhon.
Incorporei, em suma, todas essas influências e aprofundamentos de influências à minha formulação da dialética — e consegui torná-la curiosamente mais simples, mais prática e útil, e menos abstrata do que era antes. Rebatizei o conjunto como topodialética multivariante
, ou mais simplesmente dialética multivariante
, porque é um modelo geral em certa medida eclético, que pode ser variado em seus elementos assumindo diferentes feições, para dar conta de diferentes concepções da dialética. Pretende, neste sentido, servir como uma espécie de metadialética geral para outras variadas versões da dialética.
Nem por isso deixa de oferecer um recorte específico no conjunto das concepções existentes de dialética, sendo — de propósito — mais facilmente adaptável para algumas concepções do que para outras.
Entretanto, quando estava satisfeito com meu resultado e já escrevendo este livro, para conhecimento da bibliografia de uma disciplina em um segundo Doutorado⁵ comecei a ler as versões brasileira e francesa do último livro publicado por Flusser em vida — em português, Gestos, em francês Les Gestes. E ali na versão francesa, para minha surpresa, constatei que, na Conclusão, Flusser faz uma crítica forte e consistente a todo pensamento dialético, questionando se é possível ultrapassar esse tipo de modelo, que ele mesmo utilizava antes, e afirmando que é preciso tentar… e que o mundo já está tentando há algum tempo, mas sem sucesso. Diz ainda que no entanto está se anunciando no mundo uma nova condição, pós-histórica
, em que será necessária essa superação da dialética.
A crítica é mais surpreendente na medida em que ele próprio recorre inúmeras vezes à dialética ao longo da vida em sua produção filosófica — em pontos cruciais dela — e sugere estar utilizando a dialética em inúmeros momentos inclusive no Esboço para uma introdução a uma Teoria Geral dos Gestos, da versão brasileira deste mesmo livro. De qualquer maneira, a crítica está lá. Como já disse, uma crítica forte e consistente.
E eu, justamente, terminando de formular minha própria concepção de dialética após décadas de estudos nessa direção!
Em vista disto, e sendo Flusser uma de minhas principais, mais antigas e mais enraizadas influências, não podia deixar de ter um acesso de riso diante meus próprios esforços, deliciando-me com o novo desafio, e considerar muito a sério e muito profundamente essa crítica em uma (nesta) introdução ao meu livro.
Teria que: ou reformular tudo, ou jogar tudo no lixo, ou arriscar fazer a crítica de Flusser — autor que é uma de minhas maiores paixões filosóficas. Três opções muito difíceis e dolorosas. Mas notei no texto de Flusser uma brecha interessante a ser explorada: o centro, o núcleo de sua crítica, não era direcionado à própria dialética em si, mas ao dualismo inscrito nela. E me ocorreu: mas será que é apenas o dualismo da antítese o que caracteriza a dialética? Será que não há nela algo mais que possa salvá-la da crítica de Flusser? E será que isto salvaria a minha concepção de dialética? Ou não? Ou em alguma medida? Em que medida?
A crítica flusseriana consiste basicamente no seguinte: devemos lutar (e lutamos de fato) para ultrapassar os condicionamentos que nos aprisionam, as nossas programações
, e o dualismo — inscrito na dialética como parte inseparável dela — parece ser algo programado em nós, seja pela estrutura sujeito-predicado da nossa língua, seja pelas nossas crenças. E a humanidade, em sua busca de conhecimento, já oferece inúmeros sinais de estar tentando superar esse dualismo. A evolução histórica recente dos gestos — que são o modo como se manifesta a existência humana no mundo — tem exigido novos modelos de conhecimento nessa direção.
Traduzo aqui, do francês, as palavras de Flusser:
(…) a observação dos gestos nos forçou a pôr em questão a visão dialética da realidade, e portanto, nos obrigou a pôr a questão da liberdade sob nova luz.
(…)
Por visão dialética da realidade
não quero dizer somente a tese segundo a qual o ser é um devir sob pressão externa e interna de tendências contraditórias. Não quero somente dizer a dialética moderna (aquela de Hegel, de Darwin, de Marx, etc.). Por visão dialética
eu afirmo, sobretudo, uma convicção muito profunda segundo a qual nós somos mergulhados em duas realidades muito diferentes uma da outra e cuja interação é incompreensível, e no entanto é presente em toda parte e sempre. Uma convicção que se manifesta, por exemplo, na frase eu tenho um corpo
. Trata-se de uma convicção muito antiga, anterior não somente aos sistemas epistemológicos e ontológicos de tipo cartesiano (coisa pensante e coisa entendida) ou aristotélico (motor e móvel), mas anterior também às distinções do tipo alma e corpo
, espírito e matéria
, ou mesmo ação e paixão
.
Talvez tenhamos que dizer que a convicção dialética profunda da qual falo é imposta ao nosso pensamento pela estrutura das línguas que falamos. Sua sintaxe (é assim que funcionam a estrutura das nossas frases em sujeito e predicado, ou as vozes passivas e ativas dos nossos verbos) nos obriga, talvez, a articular a realidade sob a hipótese da dualidade e nos impede de pensar a realidade sob outras formas. Talvez deva ser dito, ao contrário, que a estrutura de nossas línguas é uma consequência de nossa convicção profunda quanto à dialética da realidade, de nossa distinção fundamental entre sujeito e objeto, e que o feedback contínuo e tão antigo entre nossa convicção dialética e a estrutura de nossas línguas reforce as duas, de modo que se torna quase impossível escapar a elas. Em todo caso a frase Eu tenho um corpo
, que ela seja imposta aos meus pensamentos pela gramática francesa ou que seja consequência de minha convicção profunda quanto à dualidade da realidade, parece articular com certeza uma situação verdadeira e real.
(FLUSSER, Les Gestes, 1999 - p.186-187. Grifos meus)
Gostaria de chamar a atenção, neste longo trecho citado, para o exemplo eu tenho um corpo
colocado por Flusser. Trata-se de um ponto em que seu texto dialoga (é provável que propositalmente) com a teoria de Dietmar Kamper⁶: se tenho
um corpo isto significa que não sou
um corpo vivo e que existe aí um dualismo em que se separa o que sou
(uma alma?) daquilo que tenho
— uma abstração do corpo que Kamper associa por um lado ao medo da mortalidade a que o corpo está submetido, e por outro à própria morte, como se nessa abstração nos tornássemos parcialmente mortos em vida.
Esta observação de Kamper terá importância adiante quando formular mais claramente minha resposta a Flusser — minha própria concepção do problema que ele supõe ser o de um condicionamento dualista a que estamos presos.
Retomemos: estamos falando da crítica da dialética por Flusser na versão francesa de seu último livro publicado vivo: Os Gestos. Dialética como dualismo que vem de nossas crenças e condiciona nossa linguagem (sujeito-predicado) ou vem de nossa linguagem e condiciona nossas crenças — e que está em processo histórico de necessária superação mas do qual não conseguimos ainda abrir mão.
No Esboço para uma introdução a uma Teoria Geral dos Gestos, na versão brasileira do livro, Flusser nos apresenta sua constatação de que está em emergência um novo mundo pós-histórico
, e de que neste novo mundo não caberá mais o historicismo, conformando-se melhor a ele um estudo dos micro-eventos
(Flusser aqui dialoga com Abraham Moles). Esses micro-eventos seriam os gestos — ações cuja explicação não é plenamente satisfatória cabendo mais interpretar que explicar, porque não explicar atinge sua essência. A essência de tais ações (os gestos) está em que articulam liberdade a fim de se revelar ou se velar para o outro.
O gesto, segundo Flusser, é transdialético, transcende a dialética. Vários modelos de conhecimento de nossa época também o são, por exemplo o da Gestalt ou o da Teoria dos Sistemas.
O fato de Flusser estar tentando no momento se libertar da dialética não é fortuito em sua biografia intelectual: primeiro libertou-se da verbalidade textual (monodimensional) para trabalhar a dialética entre o textual (monodimensional) e o imaginístico (bidimensional), depois passou a apontar o filme (dotado de dimensão temporal) como libertador em relação à imagem estática, e do fílmico
passou a libertar-se no gestual (dinâmico e tridimensional).
Trata-se de um processo de crescente libertação (ou escapada) em relação ao abstrato, rumando para o concreto. Ainda que se trate de uma concretude democritianamente pulverizada em micro-eventos, devido a um processo histórico de crescente abstração do qual não se pode escapar plenamente — a pulverização das visões macroscópicas em micro-eventos
, paralela à evolução dos píxels e dos bits na informática, representaria um estágio casualmente favorável à liberdade, dentro de um terrível processo de abstração crescente que, no geral, nos faz escravos da entropia. A vida intelectual de Flusser é o esforço constante e crescente de realizar essa escapada tirando proveito de qualquer condição casualmente favorável à liberdade.
Não seria impossível acusar Flusser de estar projetando no mundo o seu caminho pessoal de libertação. Mas todo e qualquer estudioso — inclusive eu — opera esse tipo de projeção. O importante é que a projeção da biografia ajude a revelar algo de interessante ou importante sobre o mundo ao redor dessa vida projetada. Além disso vale lembrar que, a essa biografia de crescente libertação em relação ao abstrato, Flusser contrapõe a constatação dessa já mencionada escalada histórica de crescentes abstrações na cultura humana em geral, escalada que percorre a dialética texto X imagem e culmina nos pixels e nos átomos de informação da informática. Com sua valorização dos gestos, Flusser parece pretender salvar da extinção a intersubjetividade humana e a integralidade concreta do real vivido, adaptando-as a um ambiente pulverizado em abstrações.
A dialética parece ser a vítima sacrificial incontornável a ser oferecida em troca por essa escapada — porque está ela própria mergulhada de algum modo no ambiente das abstrações, com seu dualismo como último suporte de nossa prisão nesse ambiente, e como que oferecendo-se em sacrifício. Podemos nos salvar sacrificando-a como Flusser parece pretender? Podemos ao invés disso salvá-la conosco? Será que devemos salvá-la?
Parte de minha resposta ao desafio de Flusser passa pelo exame do que tem a nos oferecer um pensador dialético chamado Proudhon.
Curiosamente, o anarquista Pierre-Joseph Proudhon, no século XIX, antecipou-se a Flusser nesta perspectiva da necessidade de uma superação do elemento dualístico da dialética, necessidade combinada a uma profunda dificuldade nesse sentido. No caso de Proudhon, essa dificuldade parecia tão profunda que insuperável. Seria preciso de algum modo tentar romper a abstração dualista inscrita na dialética. Mas tal ruptura seria impossível, de modo que seria preciso estender-se do dualismo até para além dele, sem deixar de conviver criticamente com ele. Mas a própria dialética poderia fornecer o necessário para isto.
As duas obras de Proudhon a serem checadas (e colocadas em contraponto uma à outra) para o exame desta questão, são Da criação da ordem na Humanidade e Filosofia do progresso — ambas originalmente em francês e até o momento sem tradução para o português.
Na primeira dessas obras, Proudhon engloba a dialética — uma dialética antitética, sem síntese — dentro de uma teoria mais ampla e abrangente, a teoria serial: nesta teoria Proudhon examina séries progressivas de ideias, e considera a dialética como uma série binária, de duas ideias opostas. Proudhon trabalha aqui com a noção de que não temos acesso à realidade em si mesma, e sim apenas a ideias fenomênicas que fazemos dela, e que podem nos ajudar a nos orientarmos nela. Mas nos ajudam se forem realistas
, bem formuladas — porque podem nos atrapalhar se forem mal formuladas e irrealistas. Uma ideia é realista quando é prática, eficaz e ajuda a nos orientar em nossa navegação às cegas nessa na realidade inacessível.
Na segunda dessas obras (Filosofia do progresso) Proudhon, em duas longas cartas, procura explorar os fundamentos dessas séries ou progressões de ideias, chegando a firmar uma hipótese (ou em suas próprias palavras um preconceito favorável
) em relação a essa realidade inacessível para além das ideias fenomênicas: esse preconceito
da nossa constatação diária e comum de um movimento, em que tempo e espaço estão fundidos, e no qual inúmeros fenômenos se inter-relacionam a todo momento — de modo que podemos usar para isto tanto a expressão movimento
quanto a expressão relação
, desde que pensemos em um processo dinâmico e banalmente constatável de relacionamento dos fenômenos ao nosso redor, no desenrolar de nossas vidas.
Se Kant pensava no tempo e no espaço como duas categorias distintas em nossa mente, Proudhon critica essa concepção kantiana mostrando que pelo contrário, essas categorias são abstrações extraídas de algo anterior e mais concreto, que é esse nosso preconceito comum e diário em nossas vidas da presença do movimento ou processo constante de relacionamento de fenômenos ao nosso redor.
Do mesmo modo como abstraímos do movimento as categorias gerais tempo e espaço, extraímos dele as categorias mais particulares antes e depois, que são temporais, e as categorias aqui e ali, que são espaciais. Tais categorias binárias mais particulares, podem ser pensadas sem a abstração que separa tempo e espaço — ou seja, não como categorias
abstratas e sim como fenômenos espácio-temporais relacionando-se ao nosso redor, em movimentos que em nosso preconceito comum nos parecem evidentes. Pensados assim espácio-temporalmente em seu movimento ou processo de relacionamento, esses elementos que captamos juntando-se uns aos outros caracterizam as infinitas variações que a realidade apresenta do menor relacionamento possível (um relacionamento de dois elementos, antes e depois, ou aqui e ali) — e quando relacionam dois elementos, são relacionamentos dialéticos. Existe sempre uma tensão entre os elementos assim relacionados, são de certo modo opostos. E é das composições com mais de um relacionamento dialético que vão emergindo molecularmente séries maiores e mais complexas que as séries dialéticas.
Ao invés de uma síntese
como aquela hegeliana ou marxiana, o que encontramos em Proudhon — inclusive às vezes chamado por esse nome, síntese
— é na verdade um equilíbrio dinâmico (e sempre imperfeito) entre os elementos opostos da série, equilíbrio em que eles vão se compensando uns pelos outros e resolvendo parcialmente seus pontos fracos. É esse equilíbrio instável que faz com que os fenômenos (compostos por séries de outros fenômenos) perdurem pelo tempo que perduram, resistindo a suas deficiências. No desequilíbrio, muitos fenômenos são derrubados e perdem sua realidade, deixando de