Diferenças Em Relação A Flusser
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Diferenças Em Relação A Flusser - João Ribeiro De A. Borba
Diferenças em relação a Flusser
(espelhando-me criticamente nele)
por João Ribeiro de A. Borba
Introdução
Este livro não é um estudo acadêmico, você não encontrará nele por exemplo citações indicando sempre claramente as obras e páginas a que se faz referência. Também não é um material propriamente didático, e você sentirá falta, provavelmente, de exemplos para coisas ditas em termos muito abstratos. Nem sequer é um livro pensado e escrito para quem lê.
Trata-se na verdade de um material que preparei para entender-me comigo mesmo, a partir do entendimento do modo como meu pensamento é (profundamente) afetado pela filosofia de Vilém Flusser. Para isto, o livro alternadamente explica Flusser e explica meu posicionamento em relação a ele — que muitas vezes é apenas uma variação personalizada do que ele já havia dito, e algumas vezes é efetivamente uma crítica.
Tive contato com Flusser pessoalmente desde a adolescência e por sua influência ingressei, já desde aquela época, como autodidata, nos estudos de Filosofia — para só mais tarde ingressar na universidade e conhecer a filosofia acadêmica (sem nunca ter deixado de ser predominantemente um autodidata, com minhas próprias ideias e com propensões ensaísticas).
Colocarei aqui seis conjuntos de diferenças entre o meu pensamento e o de Flusser — eu poderia dizer seis pontos de expansão ou ruptura de sua bolha operacional em relação à minha — e ficará claro como meu pensamento emerge do dele sem por outro lado se manter preso a ele. Flusser, como se perceberá com clareza, é uma de minhas fontes principais (talvez a principal), mas não é a única (entre outros, relaciono-o por exemplo com Castoriadis, Proudhon, Stirner e Debord, e com autores especializados em mitologia). Aqui me diferenciarei dele fazendo bem poucas referências a essas outras fontes.
As diferenças em relação a Flusser serão observadas em vários pontos:
I. no modo como Flusser considera a interação entre o ser humano e as coisas do mundo ao seu redor, que interfere diretamente no modo como ele considera as interações entre o examinador filosófico e a coisa examinada filosoficamente;
II. no modo como Flusser considera os mitos e o pensamento mítico em geral, o que envolve a questão da linguagem;
III. no modo como Flusser considera aquilo que ser humano busca em sentido geral e mais amplo no seu desenvolvimento tecnológico, o que envolve o modo como Flusser considera a relação entre a cultura tecnológica humana e a entropia.
IV. no modo como Flusser considera a presença da linguagem como meio de programação da tecnologia — meio que a determina e que é marcado, segundo ele, por uma dialética entre textual e imaginístico.V. no modo como Flusser considera o jogo, assimilando-o às noções de programa
e sistema cibernético
— isto envolve a concepção que Flusser tem de entropia
.
VI. no modo como Flusser considera objetos como microcosmos de relações, o que envolve a questão do tempo.
Cada um desses seis pontos será uma divisão (uma Parte) do livro, anunciando o assunto geral tratado, e os capítulos serão subdivisões alternando-se entre o pensamento de Flusser sobre o assunto e minha resposta a Flusser quanto a esse assunto (uma rápida olhada no Sumário deve deixar clara essa organização do livro).
Desejo uma boa leitura, e espero que esse estudo de mim mesmo espelhando-me criticamente em Flusser possa ser proveitoso para você, que tem este livro diante dos olhos. Que possa ser proveitoso tanto para o conhecimento de Flusser quanto na forma de um estímulo para repensá-lo criticamente — junto comigo e por você mesmo, para desenvolver suas próprias posições enquanto nos acompanha (a mim e ao Flusser) aqui.
I – Interações
1. Flusser
Segundo Flusser há um processo constante de sintonia e dissintonia (ou choque) entre as pessoas e as coisas, que é um processo protagonizado pelas pessoas. As pessoas é que entram em choque com as coisas ou colocam as coisas em choque. Tudo o que existe de vivo ou não — incluindo os seres humanos — supõe-se que exista projetado na direção de outras coisas ao seu redor.
Mas só se pode afirmar isto com segurança das coisas projetadas em direção aos seres humanos e dos seres humanos projetados em direção às coisas: é o que a perspectiva fenomênica permite, porque os fenômenos são o modo como as coisas se dão ou aparecem para os seres humanos. Se dão ou aparecem nessa projeção mútua das coisas de um lado e dos seres humanos de outro, cada lado projetando-se na direção do outro.
Nessa projeção mútua, aquilo que se projeta se projeta de algum modo, há uma maneira como aquilo se projeta, aquilo se projeta em alguma versão de si mesmo, pois ocorre um processo de sintonização entre os dois lados e nessa sintonização a aparência muda para a obtenção de maior sintonia. Quem protagoniza esse processo de sintonização são os seres humanos: eles é que se sintonizam com as coisas, ajustando-se a elas, mas ao mesmo tempo captam aquele sinal das coisas pelo qual elas podem ser sintonizadas, ajustando as coisas a si mesmos.
Este modo de pensar de Flusser — no qual há muito de influência heideggeriana — marca fortemente o estilo da filosofia flusseriana, porque interfere no modo como a pessoa do filósofo interage com seus assuntos.
Flusser examina fatos e objetos do cotidiano isolados, examina o modo como se projetam em sua direção e como se projeta na direção deles — o que significa que os examina enquanto fenômenos —, e no seu exame é que vai entrelaçando assuntos de um fenômeno a outro, construindo elos e estruturas de raciocínio que os interligam. Faz isso ora com mais assertivamente, desenvolvendo dissertações mais prolongadas que atravessam o exame de diversos fenômenos, ora deixando que os exames dos fenômenos considerados isoladamente falem por si mesmos, e se entrelacem aos poucos espontaneamente, sem nenhuma pressão raciocinante no sentido de uma estrutura maior de coerência, deixando essa estrutura transparecer por si mesma, se vier a transparecer.
2. Minha resposta a Flusser
O processo de sintonia e dissintonia, em meu modo de ver as coisas, se dá entre formas vivas ou não. E o que entendo por forma
é apenas um conjunto de características descritivas que estão associadas, sintonizadas umas com as outras. Assim como a cor verde, a redondeza, um certo cheiro, o fato de servir para fazer limonada etc., formam um conjunto de características sintonizadas umas com as outras para dar sentido ao conjunto limão
.
Em minha abordagem, que é uma abordagem filosófica muito específica, esse conjunto — no caso chamado de limão
— não tem limites tão estreitos e precisamente definidos como aqueles que apresenta no senso comum.
Como pode ser associado à limonada, a limonada é uma característica associada a ele. Como através da limonada pode estar associado ao copo, o copo também é uma característica associada a ele. Como o copo pode estar associado à mesa, a mesa também é uma característica associada ao limão.
Esse conjunto de características inter-associadas é um conjunto indefinido, e se quisermos fazer um trocadilho, poderíamos arriscar dizer que, no limite, é um conjunto sem limite, um conjunto virtualmente infinito.
Entretanto não é bem assim. Não abrange tudo o que existe do mesmo modo como qualquer outro conjunto abrangeria. Se fosse assim, todos os conjuntos desse tipo seriam idênticos, todos eles infinitos e associando tudo o que existe. No entanto os conjuntos de características — ou formas — existentes não são indiferentes. Não são todos iguais uns aos outros. Não são todos uma mesma infinitude que recobre tudo o que pode estar inter-associado no universo. Se fosse assim, não poderíamos simplesmente dizer que os fenômenos que existem são essas formas, porque não teríamos como explicar as características diferentes que vemos nesses fenômenos comparando uns aos outros.
Se mesa é uma das características do limão e limão é uma das características da mesa, e os dois têm o mesmo conjunto infinito de características, como é que percebemos a mesa como algo diferente do limão?
As coisas não são assim, mesa e limão não são iguais, porque são conjuntos ordenados — são conjuntos em que existe uma raiz ou centro de referência
e existem critérios pelos quais tudo o mais vai se associando direta ou indiretamente a essa raiz… ou vai se mantendo dissociado dela.
Por exemplo a raiz limão
já mencionada. Essa raiz
é o ponto de partida das associações — no caso, o tipo de fruta que o senso comum reconhece como limão
, e essa raiz leva à possibilidade de certas associações e critérios de associação.
Ao invés de ser esse tipo de
fruta, a raiz poderia ser também uma fruta específica na qual se está tocando o dedo no momento — este limão específico. É uma questão de definição, do que é que se define como raiz
— e não é por acaso que prefiro chamá-la de raiz fantasma
. Definir a raiz fantasma
é definir do que é que estamos falando. E essa raiz é fantasma
porque é apenas um ponto de referência que assumimos num conjunto de associações indefinido que está diante de nós. Conjunto de associações que é um recorte que estamos fazendo no conjunto ainda maior da realidade ao nosso redor.
Destarte, por exemplo, se o critério é o limite do que está dentro de uma fruteira, a mesa provavelmente já não estará associada ao limão. Ou estará mais dificilmente associada (a probabilidade de haver uma mesa dentro de uma fruteira é bem menor, em vista da alteração das proporções habituais dessas coisas que isto implicaria… a mesa teria que ser minúscula ou a fruteira gigantesca para termos a mesa dentro da fruteira, as proporções estariam fora do que reconhecemos como normal
).
Se o critério for a semelhança da cor, um abacate e uma pedra coberta de musgo estarão mais associados ao limão do que uma laranja ou uma banana. Se o critério for a acidez do sabor, a laranja virá para mais perto nessas associações do limão do que o abacate, que irá mais para longe