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A Importante Herança Marxista
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A Importante Herança Marxista
E-book367 páginas5 horas

A Importante Herança Marxista

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Sobre este e-book

Este livro pretende ao mesmo tempo instruir sobre Marx e as diversas correntes do pensamento marxista, e mostrar um posicionamento crítico, ora favorável, ora desfavorável, em relação a elas. A principal proposta é quebrar aquela percepção preconceituosa em que muitos, por falta de conhecimento, consideram o marxismo em bloco como se fosse uma coisa só, seja para se posicionar a favor seja contra. Pretende-se deixar clara, portanto, a enorme diversidade do marxismo e a grande variedade de versões que ele apresenta, para que o leitor possa se posicionar mais cuidadosamente, examinando os prós e os contras de cada uma delas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de jun. de 2022
A Importante Herança Marxista

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    A Importante Herança Marxista - João Ribeiro De A. Borba

    Apresentação:

    O autor deste livro e a proposta ao escrevê-lo

    1.

    O objetivo geral deste livro é instruir sobre Marx e o marxismo ao mesmo tempo me posicionando criticamente em relação aos mesmos. É um livro pensado para consultas rápidas mais do que para uma leitura de cabo a rabo. Ele está longe de esgotar o exame das contribuições intelectuais do marxismo, pois se concentra apenas naqueles marxistas que representam uma variação do marxismo como um todo, do posicionamento político marxista, ou então uma variação da dialética marxista ou do modo como o marxismo compreende a racionalidade.

    Neste sentido, as maiores lacunas, que reconheço e  pelas quais me desculpo, são, por exemplo, dois grandes pensadores da psiconeurologia, da linguagem e da pedagogia: Alexander Luria e Lev Vygostsky, que mereceriam talvez um capítulo cada — ou até mesmo um livro inteiro dedicado aos dois, pois sua importância (e julgo que principalmente no caso de Luria, embora Vygostsky seja mais conhecido no Brasil) é tremenda. Outras lacunas são o grupo Krisis e sua dissidência EXIT! — mas temos um capítulo sobre Moishe Postone, que oferece as bases teóricas mais consistentes de sustentação das propostas desses dois grupos.

    Falta também o genialíssimo brasileiro Milton Santos, gigante da geografia política… mas me pareceu difícil determinar em que medida ele seria marxista ou anarquista, ou (mais provavelmente) alguma outra coisa impossível de categorizar em termos tão simples dentro do campo geral da esquerda, visto que era um pensador independente e muito mais voltado para a prática direta da geografia política e crítica do que para tomadas de posicionamento no nível meramente ideológico, deste ou daquele lado.

    Falando de anarquistas, teria sido importante mencionar um poderoso crítico brasileiro do marxismo, o filósofo auto-didata Mário Ferreira dos Santos, criador de uma versão muito particular da dialética (a decadialética), e que a utiliza nessa crítica. Deixo meus comentários sobre Mário Ferreira dos Santos para um outro livro que está entre meus projetos para o futuro, um livro de ensaios sobre a dialética.

    Ficou faltando também um capítulo sobre o excelente grupo marxista quase anarquista Socialismo ou Barbárie — cujos principais membros eram Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, Jean-François Lyotard e Edgard Morin; antes de se separarem e desenvolverem cada um sua própria filosofia (a de Castoriadis se tornando mais próxima ainda do anarquismo).

    A questão é que infelizmente tive um problema imprevisto ao confeccionar este livro: ao buscar contribuições importantes ou interessantes do marxismo sempre aparecia mais uma, o livro foi ficando muito extenso e parecia que não ia acabar nunca – então pus um fim nisto arbitrariamente, deixando muita coisa de fora. Isto não quer dizer que meu posicionamento geral seja favorável ao marxismo — minhas críticas em relação a toda essa linhagem de pensamento ficarão acredito que bem claras. Mantenho críticas mais favoráveis apenas para algumas das variações de marxismo aqui apresentadas, e mesmo assim quase sempre com fortes ressalvas.

    Por outro lado, no seu aspecto crítico é mais um livro de tomada de posicionamento — isto é, de crítica a partir de um posicionamento externo diferente daquele do marxismo — do que de análise crítica aprofundada.

    Uma análise crítica aprofundada só seria o caso em um trabalho de crítica interna à própria lógica do marxismo denunciando suas falhas. O que pretendo aqui não é nada de tão pretensioso, embora talvez venha a indicar pontualmente, aqui e ali, caminhos para uma ou outra possível crítica desse tipo, mais profunda. O que este livro pretende é mais simples: é instruir sem preconceitos, da maneira mais correta possível, antes de apresentar, também, posicionamentos meus bem incisivos, ora favoráveis ora contrários.

    Não se trata então de modo nenhum de um livro que vise como objetivo julgar Marx e o marxismo no sentido de condená-los. Nem por outro lado de defendê-los. Mas o livro se permitirá fazer além da instrução um pouco de julgamento pró ou contra especificamente nos capítulos em que me dedico a meu posicionamento pessoal.

    O mais preciso seria dizer que há um duplo objetivo: (1) instruir as pessoas a respeito, e (2) expor vários de meus próprios posicionamentos em teoria política tomando Marx e o marxismo como panos de fundo de contraste (apresentando-me ao público a partir de minhas diferenças em relação a Marx e ao marxismo).

    Sabe-se como é difícil (talvez até impossível) ser neutro quando se tenta instruir alguém a respeito de teorias e posicionamentos políticos. Mas não custa tentar. Neste sentido, não deixa de ser útil mesmo para o leitor interessado apenas na parte instrutiva do livro, saber de saída qual o perfil geral de meu posicionamento político em relação ao que estou examinando — para que possa avaliar possíveis contaminações desse meu posicionamento no modo como procuro instruir sobre Marx e sua descendência teórica.

    Útil não significa que seja algo simples, porque meu posicionamento é bastante multifacetado.

    Pois bem: vejo Marx como um adversário valoroso — classificação em que situo diferentes autores e correntes de pensamento que me sinto fortemente estimulado a ler e estudar, mas dos quais quase sempre discordo muito profundamente. Considero-os valorosos porque muito profundos ou consistentes, e muito bem elaborados ou convincentes em seus argumentos, resistindo muito bem às críticas e às vezes até me influenciando um pouquinho em um ou outro pequeno detalhe, apesar de em todo o resto me colocar contra eles. Valorosos também porque são autores cujo enfrentamento estimula o desenvolvimento de minhas próprias ideias em contraponto, autores que cresço muito combatendo — sendo possível até que assimile algum pequeno traço deles, como já mencionei.

    Às vezes não são autores, mas posicionamentos gerais. E às vezes coloco como adversário valoroso um conjunto de autores ou posicionamentos interligando-os uns com os outros.

    São adversários acima de tudo filosóficos, e não políticos. Inclusive nem sempre são autores cuja filosofia esteja ligada a posicionamentos políticos — na verdade muitos deles não são. Ou têm posicionamentos políticos que para mim são indiferentes e simplesmente não me importam nem me interessam. Mas os que por acaso têm ligado à sua filosofia algum posicionamento político que me interessa discutir, se distribuem indiferentemente da direita à esquerda política. Esses meus adversários valorosos incluem além de Marx por exemplo Karl Popper, a lógica clássica matemática, Hans Kelsen, Platão, Kant, o psicólogo B. F. Skinner, a Teoria matemática dos Jogos entre outros.

    Segue abaixo a última lista completa que fiz (no ano de 2020) desses meus adversários, incluindo aquelas pequenas influências que, apesar de tudo, acabo recebendo deles:

    Platão — influência sobre mim: idéia de escrever em forma de diálogos (mas acho o próprio Platão incompetente nisto).

    Rousseau — influência sobre mim: o fato de valorizar a questão das máscaras sociais, mas ele assume um purismo anti-máscara que não aceito.

    René Girard — influência sobre mim: nenhuma.

    A Lógica Elementar Matemática (incluindo Frege, Tarsky e Carnap) — influência sobre mim: valorização do princípio de formalização, mas o entendo de modo muitíssimo diferente, como um esboço parcial e dinâmico de formalização do que está na subjetividade, como parte de um processo dialético de auto-esclarecimento em confronto com essa versão formalizada da nossa subjetividade.

    Teoria Matemática dos Jogos — influência sobre mim: acho que apresenta algo de interessante se for combinada à topologia vetorial de Kurt Lewin. Mas peca pelo excesso de formalismo matemático, principalmente na consideração reducionista dos agentes e suas motivações.

    Popper — influência sobre mim: o falsificacionismo pode ser interessantemente transportado para o campo político, na busca da vontade popular ao invés da busca da verdade. O falsificacionismo aliás é interessante de um modo geral, mas peca pelo apego excessivo ao positivismo lógico e pela pressuposição dualista de uma realidade com a qual as teorias devem buscar correspondência.

    Kelsen e Hart — influência sobre mim: de Kelsen, praticamente nada; de Hart, o fato de que sua inversão é útil para a compreensão do proudhoniano Georges Gurvitch.

    O conjunto Locke,                Nozick, Mises e Escola Austríaca (se não forem considerados em conjunto ficam fracos demais, perdem o valor para mim e se tornam insuficientes como adversários valorosos) — influência sobre mim: de Locke, a ideia de que algo se transmite da pessoa que trabalha para seu produto, e de que esse produto é extensão dela. Dos outros: nada.

    Adorno — influência sobre mim: há algo de bem interessante na crítica da cultura de massa (mas prefiro Benjamin). Também na dialética negativa (mas só aquilo em que vejo nela uma retomada inconsciente de Proudhon). Do resto só me interessa o que é predominantemente marcado pela influência do trabalho conjunto com Horkheimer, e mesmo aí tenho críticas.

    Habermas — influência sobre mim: História da Esfera Pública (mas eu a repensaria de outro modo) e até certo ponto a teoria da ação comunicativa (mas sinto que falta muito nela, talvez devesse ser retomada do ponto de partida e a partir daí inteiramente reconstruída com um perfil diferente).

    Kant — influência sobre mim: alguns elementos da sua estética, a autonomia como horizonte ético e jurídico, a valorização do esclarecimento, do autoconhecimento e da autocrítica. Mas concordo com a crítica de Fichte a ele, e também com a crítica feita coincidentemente por Wittgenstein e por Proudhon — às categorias como categorias da língua alemã e não universais. Proudhon ainda critica também a separação de espaço e tempo em duas categorias. Além disso daria um passo atrás recuperando muito do ceticismo que Kant julga ter ultrapassado.                E criticaria a supervalorização da razão pura. Em suma, há mais críticas a fazer a ele do que furos em uma rede de pesca.

    O conjunto Tecnocracia, Comte e Littré + Taylor, fordismo e Administração científica — influência sobre mim: nada.

    Schelling — influência sobre mim: valorização do único e da arte, conexão entre a arte e o infinito no finito. Mas critico o que chamaria de apego ao absoluto (ou absolutismo).

    B. F. Skinner — influência sobre mim: nada.

    Weber — influência sobre mim: os tipos de dominação podem ser repensados de outro modo, e além disso com ênfase nos dominados (que na verdade sustentam a dominação); a influência da ética protestante pode ser relativizada acrescentando as influências de outras crenças, e pensada a partir do imaginário e do mítico. O método dos tipos ideais oferece algo de interessante mas pode e deve ser reformulado.

    E finalmente Marx — influências mais gerais sobre mim: valorização do antiformalismo, valorização de uma dialética materialista (mas eu a reformularia totalmente, pois considero a de Marx limitada e forçada), valorização da praxis, historicismo (mas eu romperia com qualquer resquício de determinismo valorizando as diferenças entre contextos históricos) e teoria do fetichismo da mercadoria, mas eu a reformularia ampliando-a e aprofundando-a, e ao mesmo tempo deslocando-a para bem além do campo da economia (tirando seu centro do campo da economia, inclusive). Fetichismo — não necessariamente da mercadoria. Aliás o termo fetichismo talvez não seja o mais apropriado e deva ser abandonado, uma possibilidade é a incorporação no conceito de espetáculo adotado pelos situacionistas.

    O caso de Marx é o de um pensador realmente denso, complexo, interessante e profundo. Do qual apesar das influências acima apontadas, discordo quase que totalmente.

    Minhas discordâncias não se limitam aos desenvolvimentos teóricos que Marx apresenta, avançando também para o campo político. Em Marx, que é assunto deste livro, a construção teórica está claramente interconectada a um posicionamento político. E considero Marx como um autor que, por essa sua qualidade teórica, merece ser estudado  independentemente do seu posicionamento político e de concordarmos ou não com este posicionamento.

    Por outro lado, também me posiciono sim politicamente em relação a ele: do ponto de vista político, faço-lhe uma crítica à esquerda — sob influências fortes principalmente do Anarquismo, do Situacionismo e do Autonomismo, sem no entanto me prender ou limitar a nenhuma dessas posições especificamente (procuro manter, até por uma questão de princípios, um posicionamento independente, desapegado de qualquer espécie de ismo).

    Dentro do universo das referências anarquistas na crítica a Marx, reconheço que a centralidade do que me influencia está em Proudhon.

    Entretanto assumo ainda uma vasta extensão de diversas outras influências no meu pensamento, que nem sempre entrarão em foco quando me posicionar criticamente em relação a Marx e ao marxismo. Uma extensão de influências tão vasta e tão variada que acho impossível considerar-me com justiça seguidor desta ou daquela corrente de pensamento, deste ou daquele filósofo.

    Se o leitor acaso quiser insistir em me situar como seguidor de alguém, os melhores candidatos seriam Flusser, Proudhon, Castoriadis e o pirronismo, porque estão no centro mais estável e constante dessas influências que assumo… — mas a verdade é que cada vez que procuro me situar deste modo, mapeando minhas posições por minhas influências, esse mapeamento parece mudar, e mudar frequentemente com uma oscilação em que as influências de Max Stirner, de Pascal, de Camus, de Maquiavel, do relativismo filosófico e das teorias psicológicas de Otto Gross e Kurt Lewin penetram neste núcleo mais estável chegando bem perto das outras já mencionadas.

    Conhecer um pouco de meus posicionamentos, aqui, pelo que se pretende neste livro e pelo teor de seus assuntos, pode ter uma função pedagógica importante. Pode permitir ao leitor interessado ir acompanhando depois com maior senso crítico meus resumos sobre Marx e o marxismo, porque se estiver disposto a fazer o esforço de ir confrontando esses resumos com as influências que sofro de outros autores, pode conseguir detectar erros ou distorções que eu talvez tenha cometido sem querer, por causa da força dessas influências sobre o que capto do marxismo.

    Os autores que me influenciam (e que eu classificaria como meus aliados em minha imersão nos debates histórico-filosóficos) não se limitam a estes já mencionados. Poderia acrescentar também Artaud, Wittgenstein, Nietzsche, Bergson, Moreno, a teoria da Gestalt, E. Goffman, Bakhtin, Ernst Bloch, Krause ou Fichte, Vaihinger, Newton Da Costa, Feyerabend, A. Moles, Protágoras, Sócrates, Hobbes e muitos outros.

    Alguém pode dizer: Caramba! Mas são muitos autores e teorias, é uma salada, uma colcha de retalhos! Isso é péssimo, porque assim você não consegue se aprofundar em nenhum desses autores!.

    Na verdade consigo sim: em mim mesmo.

    O que tende a causar essa estranheza diante de uma rede tão variada e complexa de influências como a que assumo, é o fato de que as pessoas habitualmente lêem os autores em busca de alguém a quem seguir (…ou a quem atacar — mas neste último caso com frequência fazem uma leitura superficial em que não procuram instruir-se de fato sobre aquilo que estão atacando).

    Há também, decerto, quem passe a vida estudando um só pensador sem se preocupar em segui-lo ou persegui-lo (atacá-lo), dedicando-se a isto apenas para entendê-lo. Na verdade, por paradoxal que pareça, é de estudiosos como estes últimos que mais me aproximo. Só que o autor que estudo sou em próprio — e estudar-me é ao mesmo tempo ir construindo-me enquanto pensador.

    Em outras palavras, de minha parte leio as teorias à maneira de Flusser e de Stirner: apropriando-me delas, digerindo-as (o que significa sim despedaçando-as) e pensando em como contribuem para o desenvolvimento da minha própria.

    Por outro lado, esse despedaçamento não significa coisificação dos autores estudados, e sim uma espécie de canibalismo modernista ou tropicalista de minha parte (para usarmos uma linguagem dos conhecedores da história da arte no Brasil): tais autores e teorias são para mim como fantasmas queridos com os quais convivo e dos quais absorvo os poderes à maneira de um canibal tupi-guarani, de modo que também quero dialogar efetivamente com eles, tal como efetivamente pensam — o que implica sim tentar efetivamente compreendê-los antes de devorá-los, e portanto evitar uma leitura superficial. Sou neste sentido um devorador de fantasmas teóricos.

    E o que é uma teoria para mim?

    Em resumo, é uma abordagem ou perspectiva coerente, sustentável no confronto argumentativo e com os fatos, pela qual podemos captar de um certo ângulo os problemas do mundo e da vida — e que nos orienta no tratamento prático desses problemas.

    3.

    Poderia tentar apresentar meu posicionamento neste livro de maneira mais simples e direta, em vista do assunto tratado. Poderia apresentá-lo como um todo: Marx: sim ou não? Em quê? Por quê?. Teria a vantagem de satisfazer mais facilmente o leitor. Mas a desvantagem de ser uma resposta superficial e inautêntica, em última análise mentirosa… além de tirar do leitor a liberdade de efetivamente fazer a mim alguma crítica minimamente válida no modo como apresento Marx e o marxismo.

    A efetividade de uma crítica é importante, e para isso, dialogar tão efetivamente com o próprio autor criticado, tal como ele apresenta seus pensamentos, faz diferença. E a atenção a detalhes na leitura de um autor também faz diferença. Infelizmente, na falta de tempo disponível na vida para nos dedicarmos a tudo o que faria nossas leituras mais efetivas, ficamos então nessa constante tensão, equilibrados na corda-bamba entre a dedicação ao estudo minucioso dos autores e a dedicação ao desenvolvimento minucioso do nosso próprio pensamento. São coisas que não há como desconectar aliás uma da outra, mas que são antinômicas quanto ao tempo que dedicamos a elas — o que quer dizer que são sim conciliáveis, mas só até certo ponto, porque em certa medida o tempo dedicado a uma tende a consumir o tempo de dedicação à outra e vice-versa.

    É nessa condição paradoxal que me coloco, enquanto devorador de fantasmas. Devorador de fantasmas que ao mesmo tempo, por outro lado, tenta dar a eles uma vida que já não têm, dialogando com eles como se ainda estivessem vivos, e pudessem portanto defender seu pensamento indiretamente através de mim. Ao mesmo tempo que defendo em seu nome os fantasmas que estudo, procuro simultaneamente dedicar-me à construção atual dos diferenciais característicos de meus próprios pensamentos — alimentando-me desses fantasmas e neste sentido desmantelando-os.

    Nessa tensão, os estudiosos (assim como eu) fazem suas escolhas, e podemos categorizá-los em função dessas escolhas sem que isso desabone qualquer categoria. Seja a dos que preferem dedicar toda a vida ao exame minucioso de um único autor, seja a dos que preferem desenvolver sua própria teoria com maior originalidade, devorando para isso todo um vasto leque de teorias e autores — categoria a que Flusser, Aristóteles ou Marx, por exemplo, pertenciam (embora as leituras habitualmente tão limitadas que se costuma fazer de Aristóteles tendam tantas vezes a reduzi-lo, muito incorretamente, a uma mera variação de Platão).

    4.

    Marx, que está em foco neste livro, é um autor que gera habitualmente atrações e repulsas. Essas atrações e repulsas de que é foco, normalmente estão ligadas ao seu posicionamento político, como o mais influente de todos os pensadores comunistas. Neste sentido, é provável que muitos leitores preconceituosos (seja movidos por preconceitos favoráveis ou por preconceitos desfavoráveis em relação a Marx) estejam mais interessados em saber de meu posicionamento político quanto a Marx do que de meu posicionamento teórico em relação a ele — antes de decidirem se lerão ou não este livro.

    Gostaria de poder evitar a discussão deste tipo de bobagem preconceituosa, mas não posso — porque não costumo esconder meus posicionamentos políticos e os leitores não terão dificuldades de pesquisar a respeito. Entanto, são posicionamentos que, apesar de consideravelmente radicais, talvez confundam o fanático e o preconceituoso, acostumados a posições taxativas do tipo ou é preto ou é branco. Vou colocar com toda clareza que puder estes meus cinzentos ou pardos posicionamentos políticos aqui e agora, com a maior simplicidade com que me for possível fazê-lo.

    Vou começar falando do que fui durante a juventude e já não sou mais.

    Durante a maior parte da juventude fui militante anarquista, da linhagem do anarquismo clássico que emergiu das lutas políticas das classes trabalhadoras por seus direitos — uma linhagem de posicionamento rival do marxismo, mas que lutava paralelamente a ele e como ele contra o capitalismo. Se o marxismo era anticapitalista e para lutar contra o capitalismo pretendia usar o poder do Estado, o anarquismo clássico era contra o capitalismo e também contra o Estado.

    Então comecei a princípio como um jovem anarquista clássico. Primeiro um pouco confusamente, sem clara noção do que era o anarquismo clássico. Depois seguindo essa linha mais clara porém moderadamente. E depois seguindo-a mais e mais radicalmente.

    Mais adiante, porém, conheci outro posicionamento que também passou a me influenciar, embora não tão marcantemente: o situacionismo (proposto entre outros por Guy Debord, Raoul Vanheigein e Asger Jorn) — que propunha revolução social e urbana através da arte. E depois, um terceiro posicionamento veio a me influenciar ainda mais fortemente que o anarquismo clássico: o autonomismo (fundado por Cornelius Castoriadis), que defende a autonomia dos indivíduos e grupos sociais colocando-os no controle direto das instituições.

    É preciso ser claro aqui: muita gente considera o autonomismo e o situacionismo tão próximos do anarquismo que nem chegam a notar diferença, e acabam considerando-os como variações mais modernas do anarquismo clássico.

    Entretanto, o correto seria afirmar que atualmente (no ano de 2022, e já há pelo menos uns 12 anos) não sou mais exatamente um anarquista — mas não deixo de ter ainda alguns traços de influência desse posicionamento, assim como do situacionismo e principalmente do autonomismo.

    Para pôr os pingos nos is, o fato é que apesar dessas influências, não tenho mais ismos em política. Tornei-me muito mais pragmático. Não me sinto parte de nenhum grupo ou tendência conhecida ou a que se possa dar facilmente algum nome, e se participo das atividades de algum grupo ou tendência, é sempre considerando aquilo como um instrumento provisório que no momento está em condições de, em alguma medida, ser colocado por mim a serviço de alguma de minhas ideias ou ideais em política.

    Compreendo que há sempre um custo no sentido de que o grupo ou tendência exigirá de mim que me coloque a seu serviço também em alguma medida. Avalio o quanto posso realizar de minhas ideias e ideais políticos ali para decidir se vale à pena. — E como sou, além de pragmático, pessimista e desconfiado, na maioria dos casos evito participar com muito compromisso do que quer que seja.

    Portanto, para entender meus posicionamentos, é preciso entender de um lado as ideias e de outro os ideais políticos que os norteiam. Essas ideias (ou propostas) variam, são na verdade projetos esboçados e engavetados à espera de oportunidades, e são norteados pelos ideais. E esses ideais políticos que me norteiam, por outro lado, são consideravelmente simples e fáceis de se entender.

    É o seguinte.

    Defendo democracia (anarquistas em geral fazem a crítica também da democracia, mas peço que não apressem o julgamento se quiserem compreender meu posicionamento e em que medida podem se aproveitar dele — adianto que de fato não é mais completamente um posicionamento anarquista, mas insisto que pode oferecer algo de útil aos anarquistas clássicos).

    Trata-se porém de um tipo específico de proposta dentro das diferentes possíveis versões da democracia.

    Defendo uma democracia que se organize em torno de um movimento crescente de participação pluralista da sociedade, e do controle social do poder. No horizonte disto, está uma utopia que me serve de referência: uma democracia direta que seja intensamente pluralista. E por detrás disto, um sonho ainda mais utópico apenas esboçado: o de uma situação em que todas as atividades humanas e sobretudo o que se chama trabalho fosse transformado em arte. Mas deixemos esse sonho e nos apeguemos a esta utopia mais próxima de um projeto, que é a democracia direta pluralista como horizonte.

    Considero o pluralismo um elemento fundamental nesse meu posicionamento. Imaginar aquela mesma utopia que tenho no horizonte de meu pensamento como uma democracia direta de massa pura e simplesmente, sem diversidade de posicionamentos, sem jogo de divergências, e principalmente sem divisões do poder decisório dessa população em diferentes órgãos decisórios oficiais contrapostos uns aos outros, seria imaginar algo tão perigoso quanto um sistema político fascista.

    Note-se: quando digo diferentes órgãos decisórios oficiais, penso em órgãos oficiais mas tomados tanto quanto possível e crescentemente pelo controle direto da população, não por representantes eleitos. É uma simplificação grosseira pensar, como muitos fazem, que uma democracia direta, sem representantes eleitos, teria que ser necessariamente sem órgãos decisórios oficiais e sem divisão de poderes.

    O que importa esclarecer aqui, mais simplesmente, é que na impossibilidade da utopia de democracia direta — a não ser como referência orientadora colocada num horizonte inatingível — fico com o que já mencionei: defesa de uma democracia com movimento crescente de participação pluralista da sociedade, e do controle social do poder, ultrapassando e descartando toda representação política indireta que for possível ultrapassar e descartar.

    É evidente que todo este meu posicionamento político, que não é tão complicado de se entender afinal, e também um pouco de meu complicadíssimo posicionamento teórico, irão transparecendo cada vez mais e melhor como contraponto crítico por detrás dos esclarecimentos que estarei fazendo a respeito de Marx e do marxismo.

    Contudo compreenda-se: faz parte de minha abordagem ou perspectiva evitar considerar as coisas — no caso o marxismo — simplesmente em bloco, recusando-as ou aceitando-as como um todo. Procuro sempre esquadrinhar e avaliar os pontos positivos e negativos das coisas — o que julgo que qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico deveria fazer.

    Se por acaso chegar a rejeitar algo em bloco será a posteriori, como resultado desse exame de prós e contras, por não ter encontrado nada de favorável na coisa examinada — o que é muitíssimo improvável que aconteça, embora não impossível.

    5.

    Marx (que é um de meus adversários valorosos) e igualmente Bakunin (que considero um aliado, pelo qual tenho simpatia) infelizmente costumam se posicionar em relação às coisas considerando-as  em bloco, e fazem isso mesmo quando começam por uma análise crítica de uma teoria parte por parte. Fazem a análise já se colocando

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