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Sombras De Lobo
Sombras De Lobo
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E-book328 páginas4 horas

Sombras De Lobo

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Sobre este e-book

O livro pode ser lido como um romance ou como um conjunto de contos independentes. O tema gira sempre em torno da figura mítica do lobisomem e de situações de desequilíbrio emocional, e a narrativa se desenrola num complexo jogo de espelhos em que o conjunto vai se montando como um quebra-cabeças, a partir de perspectivas diferentes. Ao longo das histórias, capítulo após capítulo, Quincas e seu amigo Ludi enfrentam sua arqui-inimiga Arquimorte, que quer destruir no mundo o espírito filosófico e o espírito democrático, promovendo o autoritarismo e o fanatismo. Nessa luta, Quincas e Ludi precisam fazer uma espécie de viagem no tempo, para os primórdios da democracia na antiguidade, no tempo do filósofo Sócrates, e enfrentam também seus próprios problemas emocionais, que explodem no caminho.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de fev. de 2022
Sombras De Lobo

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    Sombras De Lobo - João Ribeiro De A. Borba

    Apresentação: Onde o sonho começa

    Aqui tudo se torna possível! Descer ao subir uma escada e fazer uma viajem invertida, que vai do depois para o antes — começar pelo fim e terminar pelo começo!

    O livro Sombras de lobo é a princípio um romance — um romance de ficção desvairada, e talvez um tanto juvenil, com um certo tempero filosófico e uma dose de experimentação linguística, envolvendo quase sempre um mesmo pequeno grupo de personagens. E o tom geral é de humor negro. De exaltação do equilíbrio em clima perda — no total desequilíbrio.

    Por outro lado esse romance pode ser lido como se fosse um livro de contos avulsos. Destarte os capítulos podem ser lidos independentemente uns dos outros... ou então podem ser lidos em conjunto mas em qualquer sequência, formando o quadro geral da história maior como num quebra-cabeças em que as peças vão se encaixando. Apenas o último capítulo — Fim de sonho — depende realmente da leitura de todos os capítulos anteriores (e também desta apresentação inicial) para formar o seu sentido completo.

    A título de curiosidade, os capítulos, que iam sendo escritos todos mais ou menos ao mesmo tempo, foram sendo terminados entre setembro de 2021 e fevereiro de 2022 na seguinte sequência: 1 Mergulho de Alice (Naufrágio de um sonho); 2 Jogo sangrento dos deuses no tabuleiro de Túrios; 3 Antícrato do Síbaris - o Daimon de Túrios; 4 Quincas cai; 5  Uma barca na garrafa; 6 Pêlos em pílulas; 7 Filhote de porta; 8 A Máquina do Tempo Fantasmagórico; 9 Fim de sonho; e por último esta Apresentação.

    Mas a sequência mais recomendada para a leitura do livro talvez não seja essa, e sim aquela em que os textos estão dispostos, que é a sequência em que aparecem no sumário. Pensei nessa disposição como a mais lógica e interessante depois que li o conjunto. De qualquer modo continua válida a ideia de que o leitor pode escolher uma outra sequência qualquer de leitura, montar a seu modo o quebra-cabeças.

    Alguns contos — ou capítulos — são bastante longos. Outros são bem curtos. As histórias giram sempre direta ou indiretamente em torno da figura mítica do lobisomem. Mas o lobisomem aqui é quase sempre tratado como uma metáfora.

    O leitor vai se deparar na maior parte do tempo, além disso, com um lobisomem um pouco diferente daquele monstro terrível ao qual nos acostumamos depois de tantos filmes de terror. Escrevo com a seguinte imagem em mente: um personagem está tomando café da manhã ao lado de um amigo que é inquilino em sua casa. Por algum desequilíbrio emocional — e não exatamente por causa da Lua — o amigo de repente começa a se transformar nessa fera terrível e assustadora, que ameaça sua vida, caçando-o pela casa e destruindo tudo no caminho. O clima é psicológico, porque um é espelho do outro.

    O personagem que foge, foge pela janela, mas o lobisomem, com seu tamanho descomunal, pula para o jardim atrás dele arrebentando os batentes da janela, e o encurrala contra uma árvore. Ele fica imóvel com os braços abertos, com os pés um na frente do outro em posição de equilíbrio, encarando a fera nos olhos (parece o Karatê Kid!). Mas mão esquerda está agora dentro da boca da fera, que morde muito de leve, sem ferir, como que à espera.

    E o personagem começa a dizer, com voz muito mansa mas firme: Calma, calma amigo… desacelera… fica comigo, vamos lá: sintonia. — enquanto se abaixa lentamente, sorrateiramente. E colhe com a direita um graveto que está ali no chão. "Aqui amigo… pega!" — arremessa o graveto. O lobo enorme larga sua esquerda e sai então saltitando alegremente, com a língua chacoalhando para fora, jogando saliva pra todo lado… e vai buscar o graveto.

    Leitores que devoram as palavras que despejo, desejo-lhes boa leitura, com muito mais aventura. Mordam as palavras com jeito, e corram atrás do graveto: é um estilingue de vento mirando no tempo do peito!

    Quincas cai

    Explosão ensurdecedora. Agora grande pano branco amassado, enrolado lá em cima. Aqui em baixo o pano vibra colado no corpo. Vertigem. Pedaços de céu aparecem lá no alto, quando o pano esvoaçante chacoalha… e desaparecem, aparecem. O ar zumbindo no pano. Queda livre.

    Os olhinhos piscando, surpresos e chocados demais para lágrimas. Os olhinhos chocados. Pessoas fizeram. Ele sabe. Gente grande. Adultos. Como isso, comigo?! Os olhinhos chocados. Como isso, comigo?!

    Meio dia. Viagem às pressas. Nem almoço.

    Não houve tempo.

    Explosão ensurdecedora. Sim. Casco de metal da parede se espatifando. Um buraco enorme. Fogo. Ventania quente. Nove anos de idade. As perninhas e o corpo flutuando no ar esticados, puxados. Frio na barriga. Cabelos esvoaçando. Os braços agarrados pelos braços da mãe. Ela solta um de seus braços, e lhe puxa sua cordinha no peito. Solavanco. Ela encolhe nos olhos de braços estendidos, encolhe no buraco de braços estendidos, encolhe. Parece chamar o seu nome. Tudo se passa num instante. Ele voa arrancado pelo buraco. Para longe. Ela some. Ela chama? O buraco escuro. Chama? As chamas. Tudo gira. Tontura. Agora grande pano branco amassado, enrolado lá em cima. Aqui em baixo o pano vibra colado no corpo. O corpo girando no vazio, girando. Vertigem. Pedaços de céu aparecem lá no alto, quando o pano esvoaçante chacoalha… e desaparecem, aparecem. O ar zumbindo no pano.

    Queda livre.

    Os olhinhos piscando chocados. Pessoas fizeram. Ele sabe. Gente grande. Adultos. Como isso, comigo?! Os olhinhos chocados. Como isso, comigo?!

    Ele sabe. Sempre sabe, das coisas.

    Sabia muito, de muita gente importante.

    Teclava no computador. Invadia. Sabia. Fazia piadas. Aquele político. Aquele outro, empresário. Aqueles oficiais do exército. Eram de vários países.

    Não acharam graça.

    Não acharam graça.

    Os olhinhos chocados. Como isso, comigo?!

    O corpo girando. A vertigem não passa. Frio na barriga. Pânico.

    Nove anos de idade, mas sabia de coisas. E eles ficaram sabendo que ele sabia de coisas. Soube que eles sabiam quando os homens fardados vieram em casa e deixaram a mamãe assustada. O chefe magro e alto se abaixou pra falar com ele enquanto os outros reviravam a casa e levavam o computador. O chefe magro olhava bem frio e bem fundo e bem dentro dos seus olhos.

    — É muito sério o que você fez, Quincas. Muito sério. E muito, muito perigoso. Você entende? Agora você vai ter que me ajudar. Precisamos de tudo o que você sabe. Pessoas perigosas vão vir atrás de você e da sua mãe. Mas podemos proteger vocês dois. Se me ajudar. Está entendendo?

    O magro alto fardado sorriu um sorriso forçado e lhe passou as mãos no cabelo. O menino Quincas franziu as sobrancelhas. Ele pensa que é como meu pai? — pensou. E disse, desconfiado e um pouco tenso:

    — Meu pai morreu.

    Tontura. Agora grande pano branco amassado, enrolado lá em cima. Aqui em baixo o pano vibra colado no corpo. O corpo girando no vazio, girando. Vertigem. Pedaços de céu aparecem lá no alto, quando o pano esvoaçante chacoalha… e desaparecem, aparecem. O ar zumbindo no pano.

    Queda livre.

    O chefe dos fardados ficou aturdido por um momento, em silêncio ali abaixado diante de Quincas. Olhou para trás, para a mãe do garoto que estava do outro lado da sala tentando oferecer nervosa um café para os policiais, com uma certa insistência.

    — Eu sei, Quincas — respondeu finalmente olhando de novo nos olhos do menino — …Morreu do coração três anos atrás. Sabemos tudo sobre você e a sua família. Vocês são importantes para nós, agora.

    Levantou-se e foi até a mãe de Quincas.

    Quincas o ouviu dizer para ela:

    — Vocês vão ter que se mudar. É perigoso continuar nesta casa. Temos um lugar seguro. Vamos levá-los de avião. Hoje mesmo.

    Explosão ensurdecedora. Casco de metal da parede se arrebenta. Um buraco enorme. Fogo. Ventania quente. Perninhas e corpo flutuando no ar esticados, puxados. Frio na barriga. Cabelos voando, batendo na testa. Os braços agarrados pelos braços da mãe. Ela solta um de seus braços, e lhe puxa sua cordinha no peito. Solavanco. Ela encolhe nos olhos de braços estendidos, encolhe no buraco de braços estendidos. Parece chamar. Ele voa arrancado dos braços dela pelo buraco. Para longe. Ela some. Ela chama? O buraco escuro. Chama? As chamas. Tudo gira. Tontura.

    Ventania, batendo de baixo para cima.

    Queda livre.

    Quando Quincas era bebê, tinham um gato na casa.

    O gato não gostava do bebê. Ouriçava os pêlos, grasnava ameaçadoramente, e uma vez pulou em cima com as unhas afiadas. Os olhinhos do bebê então mudaram. Seus pêlos também se eriçaram, engruvinhou a testa juntando as sobrancelhas, mostrou os dentes e unhas, rosnou e avançou feito um bicho. Não foi só a reação: tinha alguma coisa errada na criança. O cheiro talvez. O gato fugiu apavorado. Era um bebê que tinha essas reações quando irritado, animalesco, como um bicho. Assustava as pessoas. Assustava os pais. Então quiseram exorcizar o bicho no bebê. Incentivaram a brincar com com celular, televisão, aparelhos.

    Deram um velho notebook, para usar como brinquedo. Acharam que ia espativar. Não espatifou. Pelo contrário: foi aprendendo a usar. O bichinho selvagemdo papai e da mamãe se tecnologizou.

    Agora grande pano branco amassado, enrolado lá em cima. Aqui em baixo o pano vibra colado no corpo. O corpo girando no vazio, girando. Vertigem. Pedaços de céu aparecem lá no alto, quando o pano esvoaçante chacoalha… e desaparecem, aparecem. O ar zumbindo no pano. As mãozinhas se agitando inúteis, tentando tirar o pano que vem grudando no rosto e no corpo, pressionado pelo vento.

    Frio, muito frio.

    Sensação de estar flutuando. Mas aflitiva. Aflitiva.

    Lá no alto o pano se chacoalha, dá pra ver um pedaço de céu. E o avião virando no ar e passando para lá em chamas… Outra explosão no caminho, um pedaço chamejante voa atirado longe, e vem descendo veloz, descendo e avançando na mesma direção de Quincas… crescendo… crescendo…

    Aquilo vai cair em mim? Vai cair em mim pegando fogo?!

    Ou é apenas o sol?

    Quincas se chacoalha, agitando os braços para fora, mas o pano não se abre, não dá pra ver direito. Percebe que além do pano tem cordas também… está emaranhado em duas delas. Começa a tentar se desenrolar, dobrando o corpo. Mas acaba dando uma cambalhota no meio do pano, num rápido solavanco, e quase torce o pescoço. Sente um súbito enjôo. Mas percebe que agora consegue voltar à posição, de barriga pra cima, de costas para baixo, com o pano grudando nas costas. E lá em cima, bom… parece que um pouco mais do pano ficou aberto lá na frente, lá no alto. Dá pra ver melhor… dá pra ver o pedaço de fogo que vem caindo na sua direção, aquele que se arrancou do avião numa segunda explosão. Parece que o pano agora está se abrindo aos poucos, cada vez mais.

    Mas a coisa de fogo estourada do avião vem descendo em sua direção.

    A coisa de fogo.

    A coisa.

    Mamãe? — Por um momento, em sua fantasia, imagina que é sua mãe que vem numa bola de fogo para abraçá-lo. Chora. Sabe que não é. Chora mais. E a bola de fogo chegando lá no alto, crescendo…

    Ou é apenas o sol?

    Mas está ventando frio, de baixo para cima, muito muito muito frio.

    Quincas é dominado por uma súbita frieza. O raciocínio claro. A mente afiada. O pano se abrindo aos poucos cada vez mais enquanto chacoalha, lá em cima, mostrando o céu azul enorme. E a bola de fogo que cresce. Queima de arquivo — é como chamam. Queima de arquivo. Tenho nove anos de idade. Fizeram isso comigo. E com minha mãe. Minha mãe. Quincas se imagina digitando nas teclas do seu notebook, pro mundo inteiro saber, que os desgraçados fizeram queima de arquivo, com um menino e a mãe.

    Fecha os olhos.

    Aperta muito apertados os olhinhos, espremendo até o pensamento pular pro fundo do fundo do fundo da memória.

    Mamãe!

    Explosão ensurdecedora de sons, por todos os lados. É como se algo se arrebentasse, uma barreira orgânica. Um buraco, uma passagem apertada. A cabeça puxada. Ar gelado. O mundo é manchas, um borrão branco com manchas vermelhas. Perninhas e corpo flutuando no ar esticados, puxados, agora de cabeça para baixo, pendurado pelo pé. Frio na barriga. Uma pancada, um solavanco. Um soluço, entra ar no corpo. Ar frio. Ele chora, água esguichada no corpo, corpinho molhado. Pano macio. Corpinho úmido. Agora agarrado pelos braços da mãe. Quente, quente, gostoso. Mas algo puxa, ela solta. Solavanco. E vê tudo embaçado, só manchas. A mancha-mãe encolhe nos olhos de braços estendidos, manchas alongadas estendidas. Parece chamar suavemente. Mas ele voa arrancado para longe, puxado para um pano branco. Para longe. Ela some. Ela chama? O pano branco enrolando no corpo. O mundo gira, e o levam embora. Está num colo diferente, com cheiro diferente. Não gosta. Ele chora.

    Ventania, batendo de baixo para cima.

    Queda livre.

    Abre os olhos.

    O pano está escorregando para fora do seu corpo, está indo embora. Começa a sentir o vento batendo direto e frio, muito mais forte em metade do corpo, e de repente um novo solavanco o faz virar de barriga prá baixo, com vento direto na cara e olhos fechados, e depois de barriga pra cima outra vez. Abre os olhos. O grande pano branco foi embora lá pra cima, voando em direção à bola de fogo que se aproxima, e… fufff…!!!

    Silencioso, o pano queimou lá no alto, na bola de fogo que se aproxima.

    E sumiu.

    Vou queimar assim também?!

    Medo.

    Ou vou me espatifar no chão?!

    Se virar a cabeça pode ver o horizonte, e o mundo chegando, se conseguir manter os olhos abertos na ventania. Mas tem medo de se desequilibrar e começar a rodopiar. Não importa. Quincas tem medo de ver o mundo.

    Também tem medo de rodopiar se tentar, e acabar quebrando o pescoço.

    Sim, medo de ver o chão do mundo chegando. Mas também de se espatifar de repente, do nada, porque não está vendo o chão chegando. Medo de ver e não ver. Olhando pra cima, o que vê é a bola de fogo, e tem medo da bola de fogo o alcançar antes de tudo, de o fogo o atropelar e queimar. É o que parece, que vai alcançar, pensa Quincas… parece que a bola de fogo vai me engolir no vento. Tá crescendo, crescendo, crescendo…

    Medo de ver e não ver, de olhar pra cima e pra baixo.

    Medos por todos os lados.

    MEDO!

    Começa a agitar as perninhas. Mas não tem por onde fugir. Agita as mãozinhas em desespero no ar, inutilmente, porque não há onde agarrar.

    Não existe onde se agarrar.

    Não existe onde… (o coração começa a pulsar muito forte, dando pulos de estalo no peito)… onde agarrar!

    Só tem vento!

    Quincas tenta agarrar o vento, mas ele escorre gelado entre os dedos.

    Desespero. A bola de fogo chegando. Queima de arquivo! É isso o que eu sou? É o que eu fui? Fúria angustiada. Indignação e angústia. Os pelos dos bracinhos se ouriçam. Os pelos das pernas se ouriçam. Arrepios pelo corpo, e um estalar na coluna, dois, três. Sente a coluna toda estalando. E a camisa rasgando nas costas.

    A bola de fogo chegando. E o vento batendo.

    Quincas cai.

    Começa a sentir um leve bafo quente vindo do da bola de fogo, já enorme.

    Mas algo mais quente o queima por dentro. Os dedos da mãozinha se engruvinham como garras. As unhas parecem mais longas.

    As mãos estão cheias de pêlos. O peito se inchando peludo. A camisa rasgando na frente. Quincas arranca os farrapos, está furioso com aquilo, com aquela bola de fogo que quer resumir sua vida.

    Sente que o bicho está vindo, então se encolhe no vento.

    Virou uma bolinha peluda, caindo fofa no céu. E atrás a bolona de fogo, enorme, implacável, chegando queimando e chegando.

    De repente a bolinha fofa se expande — quatro patas e olhos vermelhos, rosnando feroz para o fogo, contra o pano de fundo das montanhas. A bola de fogo é enorme, o calor já é insuportável, e queima as copas das árvores.

    Quincas cai com estrondo, fazendo um buraco no chão.

    E em cima cai o sol, com estrondo muito maior, derrubando árvores ao redor. Um buraco em chamas, é o que temos. Como um caldeirão dos infernos. O sol desabou.

    Tarde cai — é o começo da noite.

    Então uma pata aparece, uma pata em chamas — mas com os pêlos milagrosamente intactos — pousada na borda do buraco.

    Outra pata.

    Um lobo em chamas pula fora dali e se ergue nas patas traseiras, uivando pra Lua da beira do buraco. Tem partes de metal pelo corpo — parecem formar uma armadura. Tais partes de metal liso, encravadas no corpo do lobo, refletem por detrás do fogo e da luz mortiça da lua mil cenas do passado e do futuro, de toda a história da humanidade.

    E o lobo dispara pra floresta, apagando o fogo no vento da corrida.

    O corpo todo tem sede. Está em busca da vida, está em busca do rio.

    Uma barca na garrafa

    Era um lobo roubando as galinhas, garoto. E estavam todos reunidos em volta da fogueira na praia — na verdade não todos, mas muitos. Muitos dos caiçaras estavam ali. Podia-se dizer que era quase todo o Conselho da aldeia… Conselho rá rá rá, exagero meu. Na verdade quase todo o grupo dos que decidiam as coisas, dos que decidiam na prática, só isso. Todo mundo junto ali. Por causa do lobo. Bicho esquisito. Bonito, pernas compridas, orelhas compridas. Eu disse que era um lobo-guará. Expliquei que não devia estar no litoral. Alguém observou que além de estar fora de lugar, era um lobo descarado, não tinha medo de ninguém. Esquisito mesmo.

    Queriam saber o que fazer com ele. Como é que se caça um lobo?

    As galinhas eram importantes, principalmente no tempo que não dava pesca. A aldeia vivia de pesca, mandioca e galinha (os ovos, principalmente)… e claro, na falta, também de cachaça caseira. (É que alivia o estômago, e esvazia a tensão.) De vez em quando alguém fazia um serviço na cidade, um bico de pedreiro por exemplo, e aí comprava outras coisas, por exemplo mais galinha. Mas não tinha turismo. Diziam que a praia era feia e que às vezes fedia a peixe. A água diziam que era ruim pra nadar e surfar… pior ainda com as redes espalhadas.

    E agora o problema com as galinhas. O lobo. Onde já se viu lobo na praia? Ali não era território de lobo não. Que é que o bicho veio fazer nessas bandas? Mas o fato era que veio. E vinha atrás das galinhas.

    Tinham me chamado pra escutar, como sempre, o meu… conselho. Não costumo descer do morro. Mas insistiram e desci. Me chamam de Velho Sábio fazendo graça com isso, veja só que coisa, garoto, mas pedem meu conselho quando acontece algum problema mais complicado.

    Essa coisa começou quando perceberam que eu gostava de livros e lia muito. Livros pra quê? — me diziam. Mas não deixavam de se impressionar. Nasci aqui, mas fui viver na cidade grande. Lá estudei, depois fui professor, e tomei gosto mesmo por livros. Quando voltei da cidade já estava velho, aposentado, e não me enturmei com os outros caiçaras, demorei pra refazer amizades, e preferi morar mais longe, no alto do morro.

    O Geraldo uma vez disse que eu devia ajudar com estudo, fazer uma escola pro pessoal, coisa assim. Não tem escola na aldeia. As crianças a gente já sabe, vão quase todas sair mais tarde, pra ir morar na cidade. Dificilmente uma fica, pra crescer aqui e afundar jundo com a aldeia. Quem sai pra estudar e trabalhar nunca volta. Fui exceção da exceção, e professor ainda por cima. Por isso o Geraldo insistiu que eu fizesse a tal escola. O Geraldo andou animado por um tempo com a ideia de mudar as coisas na aldeia. Mas ninguém se animou muito não. Confesso que nem eu: estava cansado. Aposentado. Queria sossego. Aí o Geraldo sossegou também.

    — Esse lugar não tem jeito — ele disse.

    Vivo minha vida sossegado.

    Desde que cheguei pago pra me levarem peixe e mandioca lá na cabana. Mas de tempos em tempos desço e vou até a cidade pela trilha buscar minha aposentadoria e comprar mais mantimentos. Pago um rapaz pra trazer pra mim na volta, num carrinho de mão. É um longo caminho. Mas estou bem das pernas. Muito bem, na verdade. Acho que por causa do tempo que vivi aqui. A vida caiçara deixa o corpo duro e saudável.

    — A gente não pode matar um lobo-guará, tem que caçar ele vivo, entregar pras autoridades — falei. Vão levar pra uma reserva ou alguma coisa assim.

    — O bicho come nossas galinha e a gente tem que deixá vivo! — Esbravejou Zé das Cana — De jeito ninhum! Vamos fazê um grupo agora mesmo e ir atrás dele!

    Tito chegou discretamente com duas garrafas de cachaça, deu um gole de gargalo na primeira e passou para circular pela direita. Catatau deu um gole e passou adiante. O silêncio imperava. Aurora fez a mesma coisa, e Zaqueu, do lado dela, lhe deu uma cutucada de cotovelo:

    — Pára de beber, mulher!

    Levou dela uma bofetada no ombro:

    — Pára ocê ómi, chato de galocha!

    Zaqueu passou a garrafa para Tuiuiú, que depois de um gole tomou a palavra:

    — Num vai adiantá, qui num é Lua cheia.

    — Que qui tem a Lua cheia? — Perguntou Zéfa, puxando a garrafa e dando também um gole.

    — Ele só ataca as galinha na Lua cheia — respondeu Tuiuiú.

    — Ma quê Lua cheia! — esbravejou outra vez o Zé das Cana — atacou minhas galinhas outro dia mesmo, com a Lua toda preta!

    — Mas prefere a Lua cheia que Lua preta — insistiu Tuiuiú — porque fica mais forte. Já vi até se levantar em duas patas e abrir a porteira.

    — Quê, Tuiuiú, vai dizer agora que o bicho pegou a galinha nos braços e saiu correndo em duas patas! — contradisse Geraldo, do outro lado da roda.

    — Só estou falando — resmungou Tuiuiú.

    — Vai ver que enxerga melhor na Lua cheia — opinou Geraldo.

    Aurora foi de quatro pela areia, ladeando a fogueira, até a Zéfa, e puxou a garrafa pra dar mais um gole. Mas Zaqueu pegou a perna dela:

    — Chega, mulher! — e levou dela uma bofetada no braço.

    — Chega ocê, ora bolas!

    Telinho, que estava do lado de Zéfa, reclamou de Aurora:

    — Aqui, me dá essa garrafa que é minha vez! Você, Dona Aurora, pode esperar lá que quando der a volta a garrafa chega em você!

    — Alguém mais já viu esse bicho? — perguntou Tito, que discretamente já vinha bebendo sozinho da segunda garrafa.

    — Pois eu vi, e estou falando que vi o bicho andando em duas patas… — disse Tuiuiú — abriu a porteira do nosso galinheiro, e pegou uma galinha com os dentes mas abraçando com a pata direita assim, ó, ó… e foi embora correndo feito gente, nas duas patas de trás.

    O grupo começou a dar risada, menos Zé das Cana, que estava mau-humorado:

    — Assim não vou mais fazer a cachaça, porque ninguém mais leva as coisas a sério! — era ele quem fazia a cachaça.

    — Se não fabricar não vai ter como eu comprar — disse Tito, e aí cê vai ter uma renda a menos. Vai depender mais ainda das galinhas. E lá vem o lobo…

    Riram mais ainda, em volta da fogueira, e o Zé das Cana emburrado. Além dos que estavam falando, tinha outros na roda que estavam quietos. O Zico Fuínha, a Marinalva e mais sete — eu contei.

    A aldeia já era pequena. Os jovens iam saindo pra estudar e trabalhar na cidade e não voltavam mais. A aldeia ia ficando mais e mais miúda. Logo ia acabar cabendo todo mundo numa só barca. Puxar a rede em dia de pesca era um sufoco. Precisava chamar ajuda da aldeia da praia vizinha. E aí dividir o peixe — mas nem sempre queriam ajudar. Ali eles tinham turismo, todo danado feriado. Aqui não tinha. As galinhas eram fundamentais.

    — Mas o problema é sério — disse Zéfa, tentando

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