Desmilitarização da polícia no contexto da Justiça de Transição: desarticulando velhas engrenagens
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Desmilitarização da polícia no contexto da Justiça de Transição - Natália Baldessar Menezes
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é defender a desmilitarização da polícia como parte essencial da necessária reforma institucional que se deve promover no contexto da justiça de transição.
Para que a reflexão que realizamos não se reverta em um trabalho vazio é essencial incorporarmos à justiça transicional a crítica neoliberal cônscios de que sem atentar para os abusos e usos utilitaristas do discurso transicional não conseguiremos afirmá-lo como referencial seguro para promover a verdadeira justiça que só se opera por meio de mudança, rechaçando a manutenção de estruturas opressivas e de privilégios sociais que somente se sustentam com a exploração das massas, extermínio de indesejáveis e emudecimento dos que clamam por mudanças.
A compreensão sobre a necessidade de desmilitarização da polícia não se faz, igualmente, sem que nos seja possível apreender o que é a militarização da polícia e o que seria uma polícia desmilitarizada. Para compreender o primeiro ponto precisamos investigar o amplo projeto de controle de massas, esvaziamento da vida pública, militarização da sociedade e centralização do poder nas mãos dos militares, realizado com grande eficiência pelo regime ditatorial com o auxílio da elite civil e dos Estados Unidos.
O reconhecimento da manutenção das mesmas estruturas militarizadas e da polícia como instrumento de controle dirigido pelos chefes do Executivo e pelo Exército nos compele à mudança e a necessidade de conter as violências, abusos e mortes provocadas pelas mãos daqueles que em tese estariam encarregados de realizar a segurança da sociedade.
Resta a difícil e ousada tarefa de refletir sobre a reforma da polícia e o fazemos conscientes de que no Brasil não há quem estude seriamente a polícia sem considerar sua utilização no controle das massas e no extermínio de indesejáveis e no Exterior muitos pretendem transformar o policial em um assistente social armado. Ainda não conseguimos superar a barreira da força e enquanto a opressão for o viés para solução de conflitos a sociedade continuará clamando por mais polícia, mais armamento e mais prisão.
A proposta que apresentamos ao final configura-se na base mais segura e difícil para transformar a polícia, entregando o seu controle e aprimoramento a quem de direito, ao povo e não àqueles que nos governam segundo seus próprios interesses.
O trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro abordaremos a justiça de transição em sua acepção moderna incorporando a crítica neoliberal a fim de viabilizar o necessário projeto de mudança. O segundo capítulo é dedicado a expor o projeto militarista de controle social e evidenciar a manutenção das estruturas opressivas autoritárias. No terceiro capítulo trazemos uma reflexão sobre polícia, suas funções e possibilidades de mudança.
2 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
2.1 O MODELO TRADICIONAL E O PROJETO NEOLIBERAL: UMA ANÁLISE CRÍTICA
Para melhor definirmos os contornos do trabalho, nos cabe iniciá-lo com uma análise sobre os contornos do ramo, fazendo um contraponto entre o momento de surgimento da doutrina transicional e os avanços atuais, após mais de 20 anos de práticas no cenário internacional. Igualmente, diante da inevitável crítica que se faz nesse trabalho, nos cabe antecipar a crítica neoliberal, com a finalidade de recuperar os valores originais de desenvolvimento do ramo e evitar a subversão de seu uso com fins utilitaristas.
O ramo da justiça de transição surge diante das transições para regimes democrático, em sua maioria, experimentadas por sociedades que passaram por um contexto de guerras, conflitos de grupos armados, genocídios e outras graves violações de direitos humanos.
Para Teitel, a justiça de transição é uma concepção de justiça associada a períodos de mudança de regime político, caracterizada por respostas legais para confrontar as transgressões do regime predecessor.¹
De acordo com Thomas Obel Hansen², o mais correto é dizer que a noção de justiça de transição origina-se nas discussões sobre como as novas democracias da América Latina em meados e fim dos anos 80, deveriam responder às graves violações de direitos humanos praticadas.³ Em sua grande maioria essas discussões são focadas no entendimento estatal (originado do Estado) sobre agentes e fóruns para accountability, descobrimento da verdade e entre outras maneiras de responder às graves violações de direitos humanos.
O ponto de partida das discussões era atingir o máximo de justiça possível sem colocar em risco a nova democracia, ou, realizar a justiça para contribuir para a consolidação da ordem democrática liberal. Essas premissas preliminares do ramo derivam das próprias condições de sua origem que decorre da fusão dos discursos de direitos humanos com os de transição para a democracia, contexto no qual a justiça e a transformação política foram colocadas como aspecto central, com igual importância. Em razão dessa associação passou-se a ver a justiça realizada no contexto transicional como uma maneira oposta à justiça comum.⁴
Tradicionalmente o ramo enxergou o Estado (mais especificamente, o Executivo) e a nova liderança política como as chaves para as decisões e escolhas relacionadas aos vários mecanismos de justiça de transição. No entanto, como muitos estudiosos (Huntington, Linz e Stepan⁵) enfatizaram que a transição para a democracia se deu em razão de uma escolha das elites, a justiça de transição (e a seleção de seus mecanismos), igualmente, poderia ser vista resultado de escolhas da elite e de tal maneira, potencialmente restrita aos seus interesses.
Por outro lado, talvez incorporando essa crítica, estudos mais modernos enfatizam que o Estado é (ou deve ser) apenas um dos vários atores sociais que devem estar envolvidos e influenciando o processo transicional.⁶ Dentre a classe vários atores
inserem-se também os atores internacionais, o que tem grande importância por permitirem que a justiça possa ser feita mesmo quando a liderança política local carecer de princípios de accountability, além de serem capazes de influenciar as definições de novas lideranças, candidatos e alianças políticas, gerando impacto nas eleições locais.
Uma das consequências mais marcantes dessa mudança no ramo está no crescimento das instituições de justiça criminal. Para Teitel, a afirmação do modelo de Nuremberg na justiça transicional torna o processamento de crimes contra a humanidade uma questão de rotina conduzida sob a prevalência de normas internacionais. Apesar de essa afirmação poder dar excessivo valor aos julgamentos internacionais, hoje pode-se afirmar com relativa segurança que as instituições internacionais assumem papel cada vez mais proeminente na implementação de processos transicionais.⁷
A internacionalização da justiça transicional se mostra evidente, também, na implementação e suporte aos mecanismos de justiça de transição, assim como no assessoramento dado por atores internacionais (Agências da ONU, parceiros internacionais para o desenvolvimento e ONGs internacionais). A justiça de transição hoje passa a ser vista no cenário internacional como um mecanismo de boa governança, parte fundamental na implantação de programas de direitos humanos e de construção da paz. Muito embora sua implementação esteja associada a países em desenvolvimento, economias atrativas e mais ainda, a países que as agências internacionais atuam.⁸
Em oposição à resistência sobre práticas de justiça transicional que parecem ser implementadas de cima para baixo (Miller, Cavallaro, Albuja, Oomen⁹) muito embora essa seja uma prática criada e aplicada em países em crise, modernamente, advoga-se sobre a importância de conclamar a participação social e se considera fundamental para a eficiência dos mecanismos, dar enfoque às necessidades e demandas particularizadas de cada sociedade. (Huyse¹⁰). Por tal razão, muitas vezes no contexto internacional se priorizou formas alternativas de solução de conflitos sociais para que a transição pacífica seja realizada em consonância com as vontades das vítimas-sobreviventes, atendendo à noção de justiça de cada comunidade. Em muitas comunidades da África, por exemplo, a justiça formal, ou a própria instituição de um árbitro estranho à comunidade para julgar as graves violações perpetradas, não era um mecanismo capaz de trazer pacificação social, simplesmente porque aquela comunidade não reconhecia a validade dessa forma de justiça, a justiça maior seria feita para elas se o ofensor passasse pelos métodos comunitários e tradicionais de julgamento.
Nesse sentido, o ramo percebeu que a justiça, para trazer pacificação, necessitaria ser feita da forma que a comunidade e as pessoas envolvidas no conflito a considerassem legítima. A esse respeito muito se discute sobre se os atores internacionais devem tomar controle da justiça de transição localmente implantada – e, nesse caso de que modo – ou se deveriam apenas influenciar os atores locais.
Outro ponto relevante para se enquadrar os limites da presente pesquisa dentro do campo de justiça de transição se refere à sua expansão horizontal com a proliferação de discursos transicionais aplicados a casos que não são caracterizados como liberalização política transicional, seja por não haver transição política liberalizadora (como são exemplos as comissões da verdade do Canadá e Austrália instauradas para apurar abusos contra as populações indígenas), por ainda haver graves violações de direitos humanos ocorrendo em larga escala (Uganda e Colômbia), ou por que a transição não é liberal, ou há transições de conflitos armados para situações de paz relativa. Questiona-se, então, até que ponto as fronteiras do ramo devem ser estendidas.
Não obstante a discussão sobre a extensão horizontal da utilização dos mecanismos de justiça transicional em todos os casos em que se questiona a situação fática da sociedade em que tais mecanismos são implementados, estamos diante de graves violações de direitos humanos e da necessidade de responder a tais violações.
Quanto ao período de implantação dos mecanismos transicionais, a literatura moderna, conforme será amplamente discutido no presente trabalho, tem dado forte ênfase à desnecessidade de que os mecanismos estejam circunscritos a um período claramente marcado como de transição, dados os amplos objetivos da justiça transicional e os vastos programas e modificações sociais que o projeto enceta.
Ademais, o cenário internacional de negociações entre estados e entidades internacionais, e, sobretudo, diante da grande presença de transições negociadas, conforme aponta Stepan e circunscrever a aplicação de mecanismos de justiça de transição ao momento social de transição entre regimes políticos e parece atender muito pouco à necessidade de se oferece respostas às violações de direitos humanos e muito mais aos interesses das elites pré-transição em manter tudo como está.
Tais questionamentos são relevantes para enfatizar a importância que o discurso transicional assume atualmente a nível global, e para advertir os estudiosos, operadores, e atores envolvidos nos processos transicionais para a utilização proforma de tais mecanismos com a finalidade de passar uma imagem internacional de respeito aos direitos humanos dissociada das práticas reais de cada país.
Nesse ponto, consideramos ser justo delinear os contornos do amplo projeto de justiça que o ramo de estudos transicionais propõe.
Franzki e Olarte¹¹, fazem uma crítica ao uso das concepções e dos mecanismos de justiça da transição para a facilitação de construção de democracias liberais ao arrepio da vontade popular. As autoras chamam a atenção para a falta de neutralidade do termo justiça de transição
. Para elas, a transição deve ser acompanhada de reflexão social sobre o projeto socioeconômico e político que será escolhido para substituir o regime autoritário. As autoras explicam que o termo cunhou uma teoria de solução de conflitos¹² fortemente atrelada a um contexto liberal forjado pelo desaparecimento de antagonismos políticos após o fim da Guerra fria. Para elas o termo toma o mundo (e a sociedade a que se direciona) como uma realidade dada, como se fosse livre de valoração, ignorando os valores que carrega ao não questionar as relações sociais pré-existentes e as relações de poder dadas sob as quais as instituições sociais são organizadas.
Nesse sentido, os valores do campo justiça transição refletiram o contexto demo-liberal
no qual o ramo emergiu na década de 90, assim, a escolha de um modelo de transição para democracias liberais em detrimento de outros modelos organizacionais seria parte do projeto demo-liberal global e não uma opção socialmente construída.
As autoras apontam que a exclusão de debate econômico e de seus reflexos nas políticas de transição não é acidental e argumentam que o sistema de rule of law atrelado aos processos de justiça transicional servem para legitimar uma estruturação do estado em modelos neoliberais sem permitir uma reflexão sobre as implicações políticas dessa escolha que se toma por pressuposto.
O liberalismo político associa o liberalismo – que para as autoras é uma forma cultural – à uma prática política, a democracia no qual o consenso em direitos iguais e em instituições democráticas, marcas da democracia pura, reduz-se a um consenso sobre economia de mercado e um governo constitucional (que assegure essa economia).
Franzki e Olarte, criticam o uso da teoria democrática liberal como politicamente neutra, e sua relação de mútua legitimação com a justiça de transição. Dessa forma, os objetivos a serem alcançados com as medidas de justiça de transição já se encontrariam circunscritos pelo projeto democrático (liberal) o que justificaria a interpretação dada aos injustos cometidos no período de exceção e a preferência por julgar violações a direitos civis e políticos em detrimento das violações de direitos humanos.
Conforme apontam, democracia não necessariamente deve significar representação, constituição, deliberação, participação, livre-mercado, direitos, universalidade e equidade. Assim entendem ser necessário considerar a possibilidade de o modelo internacional transicional ser utilizado para legitimar a constituição e formação de instituições liberais, avaliando em que medida os mecanismos de justiça dissimulam ideais liberais de justiça.
Orientadas por valores liberais, as instituições serão avaliadas de acordo com a sua capacidade de proteger as liberdades individuais (lidas, em muitos casos, como direitos de propriedade). As autoras defendem assim que não se pode dissociar do campo de justiça de transição o quadro de iniquidades econômicas pré-existentes e que sobrevivem aos processos de transição, e criticam a ausência de questionamento sobre os benefícios econômicos (e seus beneficiários) geradas pela ditadura e sobre o cenário econômico neoliberal por detrás dos regimes autoritários vividos na América Latina.
Essas seriam questões cruciais para se alcançar o que chamam de justiça social histórica, que parte da percepção de que o conhecimento da história das vítimas revelam que na verdade elas não eram verdadeiramente ameaças, mas que a idealização do mal comunista as utilizou