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Direitos políticos à deriva autoritária
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Direitos políticos à deriva autoritária
E-book289 páginas3 horas

Direitos políticos à deriva autoritária

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Sobre este e-book

A presente obra pretende analisar a captura dos direitos políticos e da democracia pelos regimes híbridos que conseguem operar dentro das regras democráticas. Ao ascenderem ao poder por meio de eleições, esses governos aparentemente democráticos iniciam um processo gradativo de erosão da democracia para repetir sua vitória nas urnas, revelando um paradoxo dos direitos políticos: o governo é eleito por meio deles e, em seguida, inicia um processo de captura desses direitos para evitar que opositores vençam as eleições. Ao conjugar elementos democráticos e autoritários, é preciso indagar quais as possíveis soluções para que a democracia prevaleça diante das estratégias executadas pelos regimes híbridos. A dificuldade de enfrentamento desses regimes reside na aparência democrática por eles sustentada, pois é por meio de um "jogo teatral" que os regimes híbridos capturam os pilares democráticos e neutralizam os controles constitucionalmente previstos. Assim como os efeitos de luz no palco de uma peça de teatro, esses regimes manejam os holofotes para manter o foco do público nas características democráticas, enquanto tornam invisíveis seus "bastidores autoritários". A névoa autoritária que está presente no palco envolve os direitos políticos, sem que o público possa assistir com nitidez à tragédia fatídica da democracia. É, preciso, portanto, resgatar os direitos políticos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de jun. de 2022
ISBN9786525241890
Direitos políticos à deriva autoritária

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    Direitos políticos à deriva autoritária - Christiane Costa Assis

    1 INTRODUÇÃO

    A democracia consiste em um regime político difícil de conquistar e difícil de manter. Após períodos autoritários, o resplendor democrático é sempre celebrado pelo povo, mas sua permanência é constantemente ameaçada, exigindo da democracia a capacidade de resistência. Historicamente, a democracia sempre enfrentou desafios, mas até então seus opositores eram razoavelmente reconhecíveis. Atualmente, governos parecem defender a democracia, mas buscam meios de enfraquecê-la norteados pelo desejo de permanência no poder.

    Ao ascenderem ao poder por meio de eleições, esses governos aparentemente democráticos iniciam um processo gradativo de erosão da democracia para repetir sua vitória nas urnas, revelando um paradoxo dos direitos políticos: o governo é eleito por meio deles e, em seguida, inicia um processo de captura desses direitos para evitar que opositores vençam as eleições. Concomitantemente, esses governos buscam ainda neutralizar as instituições democráticas por meio das regras constitucionais e infraconstitucionais. O cenário descrito conjuga dois regimes inicialmente opostos: democracia e autoritarismo. O resultado são regimes híbridos, marcados por particularidades e ambiguidades que dificultam a percepção do retrocesso democrático em andamento.

    As ações enfraquecedoras dos direitos políticos executadas pelos regimes híbridos são impulsionadas por surtos temporários de popularidade do governo. Em alguns casos, elas são efetivadas por alterações legislativas; em outros, por estratégias informais. Em um exame isolado, é possível que tais medidas não apresentem fortes indícios de autoritarismo, mas a análise delas em conjunto permite a constatação da erosão democrática em curso. Não se trata de um colapso instantâneo da democracia, mas de um retrocesso encoberto pela projeção temporal e pela aparência democrática. Esse processo é lento e se prolonga no tempo, o que dificulta sua detecção e a consequente reação em tempo hábil.

    Na percepção popular, o cenário é de normalidade: as eleições são periodicamente realizadas, a oposição participa do processo eleitoral, o governo vencedor nas urnas é legítimo, e as instituições democráticas estão em funcionamento. Eventuais desconfianças lançadas sob o governo são atenuadas pela ausência de uma violação ostensiva da Constituição e também pela reafirmação constante da legitimidade advinda das urnas. Na perspectiva dos instrumentos de controle, não se consegue comprovar, de forma substancial, a presença da ilegalidade, da inconstitucionalidade ou de crimes nos atos do governo. Embora as instituições democráticas possam questionar o governo e iniciar procedimentos formais de controle democrático, ele consegue enfraquecer as acusações, neutralizar os freios e contrapesos e converter publicamente a situação em uma disputa normal da democracia. Entretanto, a democracia está sob ataque.

    A presente obra pretende analisar a captura dos direitos políticos e da democracia pelos regimes híbridos que conseguem operar dentro das regras democráticas. Ao conjugar elementos democráticos e autoritários, é preciso indagar quais as possíveis soluções para que a democracia prevaleça diante das estratégias executadas pelos regimes híbridos. A dificuldade de enfrentamento desses regimes reside na aparência democrática por eles sustentada, pois é por meio de um jogo teatral que os regimes híbridos capturam os pilares democráticos e neutralizam os controles constitucionalmente previstos. Assim como os efeitos de luz no palco de uma peça de teatro, esses regimes manejam os holofotes para manter o foco do público nas características democráticas, enquanto tornam invisíveis seus bastidores autoritários. A névoa autoritária que está presente no palco envolve os direitos políticos, sem que o público possa assistir com nitidez à tragédia fatídica da democracia. É, preciso, portanto, resgatar os direitos políticos.

    No aspecto metodológico, adotou-se o método de pesquisa dedutivo, partindo-se de considerações fundamentais sobre a democracia e a participação democrática para, então, analisar a erosão democrática em suas diversas dimensões e identificar possíveis soluções. É preciso conhecer a normalidade para reconhecer – e, no caso da erosão democrática, combater – a anormalidade. Adotaram-se ainda as técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, analisando-se tanto legislações quanto trabalhos científicos na temática pesquisada.

    O contexto nacional influencia as diferentes estratégias de desmonte da democracia pelos regimes híbridos. Uma quantidade substancial de trabalhos acadêmicos passou a relatar as experiências de diversos países que se afirmam democráticos, mas que, atualmente, vivenciam o teatro da democracia, entre eles o Brasil. O tema também foi abordado em eventos científicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), notadamente no Seminar Series on Constitutionalism and Democracy. Dois dos seminários realizados no ano de 2021 contaram com a participação de alguns dos autores citados neste trabalho: Abusive Constitutional Borrowing (14 de julho de 2021) e Illiberal Constitutionalism in Poland and Hungary (05 de novembro de 2021).

    Afirmar-se democrático é simples, mas ser democrático é complexo. Nesse sentido, a pesquisa desenvolvida pretende destrinchar os mecanismos pelos quais os regimes híbridos produzem o espetáculo teatral que permite o deslocamento dos governos entre a democracia e o autoritarismo, sem acionar os alarmes constitucionais. Uma vez reveladas as estratégias desses regimes, pretende-se analisar os caminhos para conter a névoa que envolve os direitos políticos.

    O Capítulo 2 apresenta diferentes enfoques sobre a democracia e a participação popular para a composição de perspectivas políticas diversificadas. As convergências e divergências entre liberalismo, republicanismo e procedimentalismo são apresentadas na intenção de construir o aporte teórico norteador da pesquisa. Pretende-se recuperar o núcleo das teorias para permitir a identificação adequada das características, comportamentos e argumentos presentes e ausentes nos regimes híbridos, notadamente em relação aos direitos políticos.

    O Capítulo 3 apresenta a tempestade perfeita criada no palco teatral dos regimes híbridos, na qual os direitos políticos são lançados no nevoeiro autoritário. A erosão democrática não apresenta uma fórmula exata, mas suas características principais serão exploradas na intenção de analisar as estratégias que afetam os direitos políticos. A captura autoritária das eleições elimina a competição e garante, nas urnas, a permanência do regime híbrido, embora a oposição aparentemente participe do pleito eleitoral. A desconstrução da legitimidade da competição eleitoral é realizada por meio da cooptação ou mesmo da eliminação da oposição, enquanto a legitimidade do governo é construída e reafirmada. A seletividade e a manipulação dos eleitores impedem a constatação da erosão democrática em curso e, em determinados casos, conseguem, inclusive, angariar apoio popular por meio de comportamentos populistas. Tais ações dos regimes híbridos serão analisadas dentro do campo gravitacional dos direitos políticos.

    O Capítulo 4 analisa a capacidade de resistência da democracia em face dos regimes híbridos, por meio dos mecanismos tradicionais de controle democrático e de propostas contemporâneas. Serão analisados recursos de controle constitucional do mandato eletivo, para garantir que os governos se mantenham democráticos, assim como restrições aplicadas à capacidade eleitoral passiva, para filtrar candidatos com inclinações afastadas da democracia. Serão também analisadas propostas de alterações dos sistemas eleitorais, para conferir maior legitimidade aos governos e proteção democrática, além da novel promessa da democracia direta digital por meio de instrumentos que, teoricamente, possibilitam a ampliação da participação virtual dos cidadãos, superando os obstáculos físicos da democracia analógica. A intenção é testar as travas democráticas, considerando as estratégias adotadas pelos regimes híbridos para desviar-se delas ou neutralizá-las.

    O Capítulo 5 pretende apontar os holofotes para os direitos políticos, na intenção de resgatá-los do nevoeiro autoritário. Nele serão apresentados os caminhos para a proteção da integridade eleitoral competitiva, preservando-se a oposição efetiva essencial à democracia. Analisar-se-á também a imprescindibilidade da consolidação da cultura política e da maximização da qualidade democrática que ultrapassam as previsões legislativas, uma vez que os regimes híbridos operam dentro delas. Por fim, será apresentada a necessidade emergente da constitucionalização da esfera pública digital, considerando seu célere processo de incorporação às práticas políticas. A internet, inicialmente interpretada como um instrumento benéfico para a democracia, tem-se revelado ferramenta essencial aos regimes híbridos e, portanto, o ambiente virtual precisa absorver os preceitos democráticos para trabalhar favoravelmente – e não contrariamente – à democracia.

    As propostas de enfrentamento dos regimes híbridos apontadas em trabalhos, na temática pesquisada, têm focado no papel do Estado, relegando ao segundo plano a importância de um compromisso coletivo que envolva também atores privados. Nesse ponto, a pesquisa apresenta a inovação de evidenciar a necessidade do envolvimento de toda a sociedade, inclusive de empresas, organizações e entidades de diversas naturezas. A consciência e a responsabilidade pela democracia precisam ser compartilhadas por todos, apesar das diferentes perspectivas políticas. Confiar a democracia apenas às leis e às decisões oficiais significa submetê-la às vontades cambiantes do poder.

    Os regimes híbridos operam nas fronteiras obnubiladas da democracia e do autoritarismo, e assim sendo, é preciso intensa nitidez na defesa dos direitos políticos. Os períodos nebulosos sempre existirão, mas espera-se que as discussões aqui apresentadas denunciem as práticas dos regimes híbridos, facilitem sua identificação e fortaleçam a resistência democrática.

    2 DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POPULAR

    Liberalismo e republicanismo são vistos muitas vezes como antagônicos, mas há quem defenda que, sem a radicalização, as ideias se complementam (BRESSER-PEREIRA, 2004; SILVA, 2015, p. 194). Enquanto o republicanismo se baseia em virtudes cívicas para enaltecer os deveres e a participação política dos cidadãos (liberdades positivas), o liberalismo se baseia nas liberdades negativas para enaltecer os direitos dos cidadãos que seriam movidos por interesses próprios (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 135; MELO, 2002).

    O liberalismo político difere do liberalismo econômico: enquanto o primeiro privilegia a justiça social, ainda que em detrimento da ordem, o segundo privilegia o interesse próprio (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 137/138). O liberalismo econômico se concentra na garantia dos direitos de propriedade e dos contratos, ao passo que o liberalismo político se ocupa com a igualdade e a liberdade individual (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 138). Liberais modernos se opõem à concepção política que privilegia a ordem social em detrimento da justiça social, ou seja, compartilham com republicanos a necessidade de enaltecer os direitos sociais e buscar a igualdade (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 143). Assim sendo, haveria compatibilidade de ideias entre liberais políticos – e não econômicos – e republicanos.

    A liberdade negativa defendida pelo liberalismo significa a não interferência do Estado na liberdade e na propriedade, exceto para evitar danos à sociedade (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 138; MELO, 2002, p. 59). Por sua vez, a liberdade positiva defendida pelo republicanismo³ se refere à participação no governo (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 138; MELO, 2002, p. 59).

    As interpretações liberal e republicana diferem sobre a função da formação democrática da vontade popular. Para liberais, sua única função é legitimar o exercício do poder político, pois os resultados das eleições autorizam a assunção do poder pelo governo, que deverá justificar seu uso perante a esfera pública e o Parlamento (HABERMAS, 1997, p. 22). Republicanos entendem que a função é constituir a sociedade como comunidade política e, a cada eleição, recordar-se desse ato fundador para manter a comunidade viva. Nesse contexto, o governo é parte da comunidade política que se autoadministra e, por isso, vincula-se programaticamente à realização de determinadas políticas (HABERMAS, 1997, p. 23).

    Para identificar os problemas de participação democrática, é necessário conhecer as teorias políticas liberal e republicana. Não se pretende reconstruir historicamente as duas teorias, mas sistematizar suas noções fundamentais. Em um terceiro momento, pretende-se apresentar a proposta procedimentalista de democracia deliberativa, que busca corrigir as deficiências do republicanismo e do liberalismo. Não se ignora o fato de que todas as filosofias políticas têm virtudes e vicissitudes e de que existem diferentes configurações para uma mesma concepção capazes de reforçar ou atenuar suas características. Além disso, sabe-se que as propostas, muitas vezes, são fluidas e podem aproximar-se, concomitantemente, de duas ou mais filosofias políticas. Entretanto, a divisão em diferentes enfoques políticos permite uma sistematização didática, que facilita a compreensão sobre a participação política democrática em cada uma delas.

    O republicanismo e o procedimentalismo deliberacionista podem ser considerados vertentes contemporâneas da denominada democracia radical (MACHADO, 2015, p. 226). Trata-se de uma resposta à democracia convencional, entendida como os sistemas de representação competitiva nos quais os cidadãos são dotados de direitos políticos e buscam seus interesses por meio deles, especialmente pela votação em representantes nas eleições regulares que conferirão aos candidatos vencedores a autoridade para elaborar políticas públicas por meio da legislação e do controle da Administração Pública (COHEN; FUNG, 2004, p. 23). A democracia radical reconhece que uma democracia em massa precisa ser, ao menos parcialmente, organizada como um sistema de representação competitiva, mas busca uma realização mais profunda dos valores democráticos em comparação com a democracia convencional (COHEN; FUNG, 2004, p. 23).

    Para a democracia radical, os cidadãos devem exercer papéis mais importantes nas escolhas públicas ou, pelo menos, se engajarem mais profundamente em questões políticas substanciais, mediante a garantia de que os governantes serão responsivos às suas preocupações e julgamentos (COHEN; FUNG, 2004, p. 23/24). Além disso, ao invés de favorecer uma política de poder e interesse, a democracia radical enfatiza uma democracia mais deliberativa, na qual os cidadãos tratam sobre problemas públicos e buscam as melhores soluções por meio de um raciocínio coletivo (COHEN; FUNG, 2004, p. 24). Assim sendo, a democracia deliberativa busca substituir a barganha, a agregação de interesses e o poder pela razão comum de cidadãos iguais, que deve ser a força dominante na vida democrática (COHEN; FUNG, 2004, p. 24).

    Os sistemas de representação competitiva sofrem críticas por parte da democracia radical em face dos valores da reponsabilidade, da igualdade e da autonomia política. Do ponto de vista da responsabilidade, há preocupação com a confiança nos representantes para a realização das escolhas políticas (COHEN; FUNG, 2004, p. 25). Embora a representação competitiva forneça oportunidades para os cidadãos julgarem, por si, os méritos das leis e das políticas alternativas e responsabilizarem os representantes, o instituto da representação se mostra limitado para garantir uma accountability oficial, e, nesse contexto, os cidadãos podem decidir delegar o trabalho de julgamento para políticos profissionais (COHEN; FUNG, 2004, p. 25). Como consequência, as capacidades dos cidadãos podem atrofiar-se, causando uma deficiência de habilidades democráticas e culminando na abstenção do exercício de juízos críticos sobre os negócios públicos – ou, caso os cidadãos decidam avaliar seus representantes, o farão defeituosamente (COHEN; FUNG, 2004, p. 25).

    Do ponto de vista da igualdade, a democracia representativa incorporou o tratamento igualitário no processo coletivo de tomada de decisão, mas as desigualdades social e econômica abrem espaço para a influência política nos sistemas de representação competitiva (COHEN; FUNG, 2004, p. 25). A desvantagem econômica consiste em uma importante fonte de vantagem política, pois ela tende a favorecer interesses concentrados (um pequeno número de atores com grandes benefícios), e não interesses difusos (um grande número de atores com pequenos benefícios), uma vez que a tarefa de mobilização é mais simples para pequenos grupos (COHEN; FUNG, 2004, p. 25).

    Para reforçar a igualdade, a democracia radical recomenda a deliberação, pois ela atenua o poder dos grandes recursos com a força dos melhores argumentos e com a participação, uma vez que alterar a base da contestação política do capital organizado para pessoas organizadas consiste no antídoto mais promissor à influência da riqueza (COHEN; FUNG, 2004, p. 25). Além disso, a expansão e o aprofundamento da participação dos cidadãos têm o condão de desafiar as desigualdades advindas da concentração assimétrica de interesses e das hierarquias social e política tradicionais (COHEN; FUNG, 2004, p. 25).

    Do ponto de vista da autonomia política, os sistemas de representação competitiva não permitem que os cidadãos vivam de acordo com as regras criadas por eles mesmos (COHEN; FUNG, 2004, p. 25/26). O autogoverno é possível, ainda que não exista consenso político em uma democracia pluralista, mas a representação competitiva não consegue promovê-lo, uma vez que seus resultados políticos são fruto de diferentes capacidades de mobilizar círculos eleitorais populares, do balanceamento de interesses bancado por eleitores ou pelo capital de negociações complexas do Legislativo ou de interesses que capturam partes do governo (COHEN; FUNG, 2004, p. 26). Assim sendo, na melhor das hipóteses, a representação competitiva é um processo de barganha justa entre interesses que competem entre si, mas não reflete um ideal de autogoverno (COHEN; FUNG, 2004, p. 26).

    Na democracia deliberativa, as leis e políticas públicas resultam de processos nos quais os cidadãos defendem soluções para problemas comuns com fundamento no que é geralmente reconhecido como razões relevantes, ou seja, razões que expressam os valores compartilhados da equidade, da liberdade, de oportunidades iguais, da segurança pública e do bem comum (COHEN; FUNG, 2004, p. 26). Tais considerações podem apresentar diferenças entre os cidadãos, que podem discordar entre si, mas existe a consciência de que os interesses pessoais e de grupos não deixarão de ser forças políticas (COHEN; FUNG, 2004, p. 26). O objetivo é garantir que o argumento político e o apelo aos interesses sejam enquadrados por considerações acerca da equidade, da igualdade e da vantagem comum (COHEN; FUNG, 2004, p. 26). Caso esses valores políticos sejam levados à sério, as decisões políticas não serão um simples produto do poder e de interesses, pois mesmo os cidadãos cujos argumentos não foram vencedores poderão verificar que a decisão foi fundamentada em boas razões (COHEN; FUNG, 2004, p. 26). Dessa forma, apesar da discordância, os cidadãos podem considerar suas condutas como guiadas, em termos gerais, por suas próprias razões, tornando possível o autogoverno em condições pluralistas (COHEN; FUNG, 2004, p. 26/27).

    A democracia não é um sistema perfeito. Qualquer filosofia ou sistema político que se proponha a trabalhar com ela padecerá de defeitos e enfrentará desafios que, talvez, não possam ser superados. Um deles consiste na dificuldade de transposição das decisões individuais para as decisões coletivas, como aponta o paradoxo de Condorcet⁴. Condorcet é considerado um teórico da democracia representativa e compreende a representação como um processo político que cria um vínculo entre sociedade e instituições (URBINATI, 2006, p. 193). Nesse sentido, a representação está situada em um complexo formado pela deliberação e voto e pela autorização formal e pela influência informal que envolve representantes e cidadãos (URBINATI, 2006, p. 193).

    O efeito ou paradoxo de Condorcet⁵ torna questionável [...] a racionalidade da decisão coletiva a partir da exibição de uma intransitividade, após o cômputo da preferência coletiva a partir de preferências individuais transitivas (EPSTEIN, 1997, p. 274). A irracionalidade do paradoxo de Condorcet pode ocorrer na decisão coletiva, em função da variação da dimensão predominante no espaço de escolha de cada eleitor, mas nunca ocorrerá na decisão individual, uma vez que, na escolha do eleitor individual, não há variação (EPSTEIN, 1997, p. 281).

    Condorcet desenvolveu um sistema eleitoral na tentativa de corrigir as falhas apresentadas no sistema elaborado por Jean Charles Borda (1733-1799)⁶, que, segundo Condorcet, era manipulável por meio do voto estratégico no qual se introduz, propositalmente, um novo candidato, para beneficiar um candidato mais desejável (PINTO, 2006, p. 17/18). Borda demonstrou que, pela maneira usual de contar os votos, há a possibilidade de que o candidato mais votado seja o candidato mais detestado pela maioria do eleitorado (PINTO, 2006, p. 09). Assim sendo, é necessário possibilitar que os eleitores se manifestem sobre a ordem de mérito de cada candidato. Para tanto, elaborou-se o sistema de eleição por ordem de mérito, que ficou conhecido como Contagem de Borda (PINTO, 2006, p. 09).

    O sistema eleitoral de Condorcet compara os candidatos de dois em dois, estabelecendo o Critério do Vencedor de Condorcet, que aponta o candidato capaz de derrotar todos os outros nas comparações, e também identifica o Perdedor de Condorcet, ou seja, o candidato que perderá em todas as comparações (PINTO, 2006, p. 19; p. 38).

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