Corpo Intruso: uma investigação cênica, visual e conceitual
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Sobre este e-book
Corpo Intruso, de Estela Lapponi, versa sobre a presença "não autorizada" - por quem?! - e, por isso, é transformadora.
A partir da sua trajetória de atriz para artista DEF, a autora conta como o AVC, sofrido em plena cena, transformou não só sua maneira de viver (n)o mundo e (n)a arte, como mostra a potência que é abandonarmos padrões e verdades coloniais. Como é potente nos permitirmos o desafio e deixarmos que as mudanças ocorram. Aticem. Explodam. E mudem os eixos. Sim, tudo no imperativo e no presente, porque o futuro é hoje e é urgente a constante evolução.
Corpo Intruso chegou sem avisar, se impôs na carne quando a artista vivia em terras estrangeiras e se desdobrou em práticas artísticas nas diversas linguagens - performance, workshop, intervenção, palestra, curta-metragem - produziu pensamento, inventou Zuleika Brit, que virou verbo – zuleikar! – criando um modo descolonizado de existir - ¡Zuleikate!
Corpo Intruso agora é livro.
Essas páginas que agora estão em suas mãos são um convite de Estela a ressignificar e enxergar a estética própria e única da Arte produzida pelo corpo DEF (Pessoa com Deficiência).
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Corpo Intruso - Estela Lapponi
DESCRIÇÃO DA CAPA: A PROPOSTA DE ARTE GRÁFICA DESTE LIVRO É A DE UM CADERNO.
Em fundo preto envelhecido com algumas ranhuras do tempo, no alto e centralizado o título do livro feito de colagem, em que cada letra tem um estilo, tamanho e cor diferentes.
CORPO, e embaixo iniciando na primeira letra O
, INTRUSO – CORPO INTRUSO.
Abaixo, centralizada uma imagem feita de colagem, de uma espécie de figura ou criatura sentada, que tem três cabeças, um tronco, seis braços e sete pernas.
Da esquerda pra direita
Cabeça 1 – usa uma touca preta que cobre também a boca e sobreposta uma fita adesiva branca com a palavra frágil em vermelho, nos olhos óculos com olhos desenhados.
Cabeça 2 – usa um cocar fake de penas coloridas, nos olhos óculos com olhos desenhados e na boca um ramo de 6 pontas da planta babosa.
Cabeça 3 – usa uma touca vermelha, nos olhos óculos com olhos desenhados e na boca uma bexiga cheia amarela, em que se lê UTOPIA em preto.
O tronco da figura usa um corpete tomara que caia bege com manchas pretas, animal print de oncinha, na altura da pélvis uma cinta caralho preta, que tem uma boca rosa pink de pelúcia de onde sai um pau de silicone verde.
À esquerda - à 45 graus, o primeiro braço de pele clara vestido com bota dourada até o cotovelo, abaixo em ângulo reto o segundo braço de pele clara traz esticada a fita adesiva frágil, que sai de trás da cabeça 1 e o terceiro braço coberto com uma manga de pelúcia roxa tem a mão apoiada numa das pernas de pele clara.
À direita - à 45 graus, o primeiro braço de pele clara que traz esticada a fita adesiva frágil, que sai de trás da cabeça 3, abaixo em ângulo reto o segundo braço vestido com bota dourada até o cotovelo e o terceiro braço de pele clara, que segura pra frente uma garrafa de um litro revestida pela fita frágil.
Ao lado direito do tronco e embaixo do segundo braço, um pedacinho quadrado de uma folha branca pautada com furos na lateral direita, arrancada e rasgada de um caderno, escrito em letra de forma com caneta vermelha: uma investigação cênica, visual e conceitual.
As pernas estão abertas.
À esquerda são quatro, que se sobrepõem umas às outras – de fora pra dentro: a primeira veste legging animal print rosa de pele de cobra, no pé meia preta e sapato de salto rosa, a segunda tem pele clara e pé descalço, a terceira veste legging animal print verde de pele de cobra, no pé tênis marrom e preto e a quarta é longa e de pelo marrom.
À direita são três, que se sobrepõem umas às outras – de fora pra dentro: a primeira tem pele clara e veste bota dourada com cadarço rosa pink, a segunda é longa e de pelo marrom e a terceira veste legging animal print verde de pele de cobra, no pé meia preta e sapato de salto verde.
Abaixo da figura ou criatura, um pedaço retangular de papel bege rasgado, em que se lê: Estela Lapponi, escrito com caneta azul em letra de forma. O papel está pregado com durex vermelho. FIM DA DESCRIÇÃO.
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: Foto vertical colorida. Performance INTENTO 70.000, realizada no Programa Segunda da Performance, um projeto realizado pela Casa de Zuleika em parceria com Palacete Carmelita em 2015. Estou em pé e de perfil, no canto de uma sala de paredes brancas. O corpo nu enrolado e emaranhado numa fita adesiva branca escrito FRÁGIL em vermelho. O corpo está levemente inclinado sobre a parede, tendo algumas partes do corpo apoiadas: a lateral do rosto, que encara o fotógrafo, o braço flexionado na altura do seio e o joelho flexionado da perna da frente. Tenho cabelos pretos e curtos abaixo da orelha, uma mexa de cabelo atravessa o rosto, cobrindo parte da testa e dos olhos, que usam óculos de armação arredondadas pretas de olhos desenhados com sombra azul. Dois rolos da fita estão no chão, próximos ao pé da perna esticada para trás, que também tem uma fita esticada na altura da coxa, vinda da esquerda fora do quadro. À esquerda em primeiro plano uma fita FRÁGIL atravessa o quadro de cima para baixo. Ao fundo e à esquerda, um recorte da projeção na parede. Crédito da foto: Lucas Czepaniki FIM DA DESCRIÇÃO.
PREFÁCIO
POR EDU O.
Estela Lapponi é uma das principais artistas do nosso tempo e para além dele. Repito isso sem medo. Não que eu conheça tantos artistas ou lugares deste vasto mundo, embora tenha circulado por alguns países nesse mover que a Dança me possibilita. Porém, afirmo que Estela Lapponi é uma das principais artistas do nosso tempo e para além dele porque não é difícilsaber que o mundo continua preso a padrões e verdades históricas criticadas e denunciadas por ela com seu poder de escancará-las em pensamento-arte-ação, borrando as falsas fronteiras dicotômicas que insistem em se perpetuarem no mundo.Quando conheci Estela, em 2007, tive certeza de que algo mudou em mim. Nossa conexão foi quase imediata e, ali, eu soube que nunca mais me sentiria sozinho porque alguém, mesmo longe (eu morando em Salvador e ela em São Paulo), pensava, sentia e desejava parecido comigo sobre as coisas referentes à produção e criação de artistas com deficiência. Pensarsobre arte, nesse contexto, também é pensar sobre a vida, sobre existirmos à nossa maneira. Como isso é grande, forte e potente. E como gargalhamos juntos, nus e [des]graçados! Nos nossos encontros que já foram tantos e muitos outros virão, falamos de coisas tão profundas, ao mesmo tempo em que gargalhamos até a bochecha doer por uma besteira dita no meio daconversa. É que isso nos humaniza e nos livra dos abismos que insistem em nos colocar.
Seu Corpo Intruso invade ora como bomba, ora como água silenciosa escorrendo pelas frestas, rompendo a ficção da normatividade imposta também nas artes. Gargalha e nos faz gargalhar da caretice dos cercadinhos e rótulos: aqui é dança, aqui é teatro, aqui é cinema. Ahhh, ali éperformance! Estela não está preocupada com essa caretice, ela vai e fazo que precisa ser feito, o que é a coisa em si. Assim, em sua ProfanAção desmorona essas paredes que nem mais deveriam existir.Estela nos ensina a não caber. Musa, Atriz, Bailarina... Quem ainda quer se encaixotar nesses rótulos? Melhor é ser Anti-Musa,é sentir a alegria e liberdade de ser errada, inadequada e ser quem se é
. DEF demais para o mercado cultural? DEF de menos para o mercado inclusivo? Inclusão de cu é rola
, ela não cansa de dizer. Seu Manifesto anti-Inclusão é uma verdadeira revolução. Por isso, bom mesmo é zuleikar, invadir, ser freak, ser crip, quadrupidear-se... É que Estela também poderia virar verbo, além do adjetivo ESTELAR. Porque Estela é a própria ação e nunca é sozinha. Na miríade de artistas DEF não é in-cô-modo sermos tanta gente. Ou seria sermo-nos EM tanta gente? O fato é que Estela nos convida a nos jogarmos na prática e na
Plataforma cientes de que nada começou aqui, nem agora. Em sua comovente Saudação aos antepassados DEFS, ela nos recorda da espiral da ancestralidade que nos afirma como futuro a mudar, desde agora, essa história contada pela perspectiva do opressor bípede. Tomamos a rédea e somos nós a falarmos de nós mesmos.Sempre considerei importante termos registro do pensamento e da produção artística de Estela como fonte para pesquisas artísticas e acadêmicas e aqui penso como professor que sou. Mas, para além desses contextos, sabemos que um livro não serve apenas para as prateleiras das bibliotecas ou pastas de arquivos digitais a serviço de pesquisas. Quemler este Corpo Intruso acessará a utopia possível (contraditório como uma antimusa) de mudançasparadigmáticas que a existência e a escrita de Estela apontam.
Boa leitura,
Edu O.
ABERTURA
SE ALGUÉM POR MIM PERGUNTAR DIGA QUE EU SÓ VOU VOLTAR QUANDO EU ME ENCONTRAR
(Preciso me Encontrar - Cartola, 1976)
O AVC me trouxe um apagão absoluto das funções motoras do lado esquerdo, o que fez eu me distanciar de mim mesma, EU. A mudança ocorrida foi brutal e repentina. Eu/corpomudei radicalmentede referência. Por 4 anos, com total apoio financeiro do meu pai, fiz todas as terapias de reabilitação possíveis. Meu único desejo era recuperar 100% os movimentos do lado esquerdo, curar minha deficiência
, tornar-me capaz
, ser inteira novamente
para poder continuar o plano de ser atriz e voltar à vida
.
Como afirma Damásio [1] sobre o corpo como sustentáculo do self, [...] a noção de um indivíduo único, delimitado, que muda gradualmente ao longo do tempo mas, de algum modo, parece permanecer o mesmo. [...] De fato, a continuidade de referência é o que o self precisa proporcionar
.
Essa perspectiva de que é preciso recuperar a funcionalidade corporal total para ser capaz de ser e de estar no Mundo não era só minha. Ela estava presente em meus pais, irmãos, amigos, parentes, vizinhos, colegas de trabalho... uma perspectiva que estrutura uma maneira de pensaragir social.
Ao escrever isto, me dou conta que nesse período estive atuandocomigo mesma no modelo médico da deficiência: uma tragédia pessoal a ser tratada. Ou seja, preciso me consertar’’,
normalizar o corpo" para poder existir em sociedade.
O meu primeiro fisioterapeuta se ofereceu para ir em casa. Me lembro, que no primeiro dia, ele me colocou de pé, mesmo eu não tendo condições musculares naquele momento pra me sustentar. Mas, o importanteera me colocar de pé! Afinal, é de pé que se luta! (contém ironia.) Isso agradou aos meus pais e aliviou geral, inclusive a mim. Contudo, eu parecia um C
, compensando muscularmente o corpo inteiro para manter o Estar de pé
.
[...] é importante perceber que, no decorrer da história, a valorização da verticalidade elegeu um corpo padrão –o corpo bípede vertical, o corpo que se apoiaem duas pernas para ficar ereto –e acabou excluindo uma infinidade de outros corpos e posturas. Essa valorização não está dissociada de uma construção cultural, política e estética da ‘normalidade’ que vem afirmando o corpo ‘reto’ –como o corpo ‘correto’.[...] No mundo vertical que construímos, ‘ficar em pé’ muitas vezes aparece como uma condição para produzir, trafegar,e participar de diversas esferas da vida
-escreve Beti Finger, bailarina e coreógrafa, no texto para o gesto Ficar em Pé
[2].
Certo dia, o namorado da época estava em casa e, pouco antes do fisioterapeuta chegar, meu pai (argentino, às vezes curto e seco)pediu para que o boy fosse embora, mesmo ele tendo dito, reiterado por mim, que queria ficar para assistir. Sem sucesso.
Meu pai: —Eu não quero que ninguém te veja frágil!
Isso ressoa até hoje em mim. A palavra FRÁGIL é também outro elemento bastante presente no meu fazer artístico.
O fato de ter adquirido uma deficiência –hemiplegia esquerda, hoje hemiparesia esquerda –não me tornou instantaneamente uma pessoa Pessoa com Deficiência, enquanto identidade social.
O tornar-me Pessoa Com Deficiência
, ou melhor ainda, DEF [3], foi uma trajetória longa, que se deu através da vida vivida. A transformação corporal sofrida precisou de um tempo para ser assimilada, decantada. Eu não curti o que aconteceu comigo. Foi difícil de aceitar, de lidar, de acreditar, de realizar.
Me desconheci por completo. Me senti, literalmente, pela metade e meio estranha rsrsrs. Se eu sou corpo e o AVC desconfigurara a referência que eu tinha de mim, como é que eu poderia me entender de maneira plena? E ainda dar conta de um entendimento sociopolítico e cultural que eucorpo passara a representar?
Este livro trata da construção de um pensamentocorpo na conscientização de uma maneira de estar no mundo, tendo como ponto de partida um marco, um divisor de águas numa história autobiográfica. Com a argumentação de que essa história autobiográfica conecta-se com outras histórias, diversas e díspares, redimensionando e ampliando os questionamentos sobre as leituras sociais de um determinado corpo: o com deficiência.
PRÓLOGO
Tento mover o braço esquerdo e nada. O formigamento intenso e a inatividade do braço me fazem olhar pro Tuna, que me questionava com o olhar e um gesto das mãos, como quem diz:
– Vai, fia! Bora