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Percorrer a Cidade a Pé: Ações Teatrais e Performativas no Contexto Urbano
Percorrer a Cidade a Pé: Ações Teatrais e Performativas no Contexto Urbano
Percorrer a Cidade a Pé: Ações Teatrais e Performativas no Contexto Urbano
E-book703 páginas9 horas

Percorrer a Cidade a Pé: Ações Teatrais e Performativas no Contexto Urbano

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Sobre este e-book

O presente estudo propõe uma observação do modo de operar da arte contemporânea fundada no caminhar e uma investigação sobre o quanto ela se faz acessível ao espectador, o quanto ela é inclusiva, relacional e horizontal. Contrariamente a um entendimento de que a arte contemporânea é de difícil acesso, busco relacionar a dissolução de certos estatutos da cena contemporânea com a aproximação do espectador de sua estrutura de funcionamento, a ponto de ele se tornar mais indispensável para sua realização do que o próprio artista. Ao longo do livro, destaco o potencial pedagógico presente nessas ações, que se revelam aos espectadores não somente no ato de sua realização, mas também na exposição de seus programas e na produção dos rastros ou vestígios de sua execução.

No primeiro capítulo, apresento esse contexto de dissolução, inicialmente no campo do teatro e, posteriormente, na configuração das performances, campo no qual as noções de cena, encenação e espectador são inoperantes. No segundo capítulo, apresento o ato de caminhar em relação ao pensar e ao criar, uma prática estética e política a ser desdobrada nos três capítulos seguintes. Desse modo, do segundo ao quinto capítulo, apresento modalidades do caminhar: passeios, derivas, fugas, perseguições e travessias realizadas por artistas diversos e, em alguns casos, por espectadores ou passantes.

A maioria dessas ações, sobretudo as performances, resultam em outras materialidades (fotografias, vídeos, desenhos e narrativas) que são igualmente compartilhadas com espectadores ausentes. No último capítulo, trato desses rastros ou vestígios – bem como do acesso aos programas dessas ações – como um importante material para os espectadores, que, conhecendo os "modos de fazer" dessas modalidades artísticas, compreendem seus "modos de usar". Assim, caminhar como prática estética configura-se como um ato de transgressão ao sistema vigente, por se tratar não apenas de uma ação, mas de uma atitude ao alcance de toda e qualquer pessoa. Ao ocupar o contexto urbano desde sua dimensão mais baixa, o chão, o sujeito que caminha experimenta outras formas de sociabilidade e outras configurações para o real, inventando micropoéticas do devir.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de nov. de 2022
ISBN9786525018911
Percorrer a Cidade a Pé: Ações Teatrais e Performativas no Contexto Urbano

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    Percorrer a Cidade a Pé - Verônica Gonçalves Veloso

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E CULTURAS

    Dedico este livro a uma pessoa grande e duas pequenas:

    Ao Rodrigo, por criar oportunidades para que eu me dedicasse ao estudo, por compreender minha necessidade de isolamento, minhas horas de biblioteca e meu tempo de revisão da vida. Por confiar e comemorar sempre comigo.

    À Alice, por inventar brincadeiras silenciosas que, muitas vezes, consistiam em deslocamentos, em idas e vindas, mostrando-me o quanto o caminhar se configura também como um disparador de processos do imaginário, um poderoso dispositivo de fabricação de histórias.

    À Valentina, por aprender muito cedo que teria que dividir sua mãe com grandes batalhas. Ela me ensinou a dividir meu corpo entre seio e pensamento, a preparar aulas silenciosamente e a rever autores olhando profundamente nos seus olhos. E, ao transformar a tese em livro, convida-me a pequenos passeios pela casa, desviando meus olhos do computador.

    Sem esses retratos do amor, nada disso seria possível.

    PORQUE NINGUÉM CAMINHA SÓ

    Agradeço:

    À Maria Lúcia Pupo, por indicar caminhos e por colocar janelas diante dos meus horizontes tão vastos, por confiar nos meus passos e por me dar a mão nos momentos em que eu me sentia demasiadamente à deriva. Por me convocar insistentemente a habitar o instante.

    Aos meus pais, meus irmãos e minha família, por me darem suporte para estudar e por acreditarem nos meus sonhos.

    Ao Coletivo Teatro Dodecafônico – Beatriz Cruz, Hideo Kushiyama, Ierê Papá, Monica Galvão, Olívia Niculitcheff, Paulina Caon, Sandra Ximenez e Vânia Medeiros – e todos os artistas que caminharam comigo, ora se perdendo, ora atravessando territórios que chegam a toda a extensão dessa cidade-continente.

    Aos professores Antonio Araújo, Cassiano Quilicci, Eleonora Fabião, Gabriel Zacarias e Silvia Fernandes, pelas leituras cuidadosas da tese que gerou este livro.

    À Josette Féral, por orientar meus caminhos em território francês e a Raphaëlle Doyon, pelo convite para intervir em seu curso na Paris 8, compartilhando essa pesquisa e transformando a rua em sala de aula.

    À Universidade de São Paulo e à Capes, por financiar a pesquisa no Brasil e no exterior, com a bolsa de doutorado sanduíche.

    À Helena Albuquerque, pelas traduções e correções das minhas traduções do inglês.

    Aos meus amigos, sem os quais eu não saberia quem sou.

    À Paulina, pela leitura cuidadosa deste texto, ajudando-me a esculpir da tese original este livro e por caminharmos de mãos dadas; Taty Kanter, pela presença e ajudas incondicionais; Ana Petta e Paula Klein, pelos nossos sabiás; Gabriela Cordaro, Jorge Wakabara, Katia Lazarini e Roberto Borges, por nossas redes de suporte e afetos; André Mourão, Anna Ten, Anne-Sarah Faget, Juliana Jonson, Maria Clara Ferrer, Marina Takami, Regis Mikail Filho e Rodrigo Scalari, pelas derivas parisienses e outras de pensamento; Filipe Brancalião, pelas trocas possíveis apenas a quem compartilha dos mesmos caminhos; a Lu Carion e Marcos Bulhões, por me alimentarem sempre; a Andrea Caruso e Julia Guimarães Mendes, por dividirem comigo os descaminhos da vida de doutorandas, à Maria Brandão, pelo cuidado; a Rui e Maíra, por me mostrarem o poema do Augusto de Campos.

    Aos amigos e artistas que cederam, gentilmente, seus direitos de imagem e que encurtaram caminhos para me colocar em contato com minhas referências, sem esses gestos de generosidade, este livro não seria possível.

    atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade

    city

    cité

    (Augusto de Campos, 1963, grifos meus)

    PREFÁCIO

    Caminhando de mãos dadas – [ou] prefácio em desvio¹

    Ponho-me a conversar com Verônica Veloso, essa companheira de andanças das últimas duas décadas. Diálogos intensos, afetos, admiração expostas. Parto do rigor de seu texto, do cuidado de suas análises, mas escolho o desvio para falar dele de maneira mais justa.

    Ponho-me em desvio, a conhecer cidades com os próprios pés, junto a ela, desviando também os meus olhos do computador.

    atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidadecitycitécidade1963augustodecamposgrifosdela.

    Errar é urbano – inscrevemos no asfalto ao caminhar como Coletivo Teatro Dodecafônico. Fazemos cidade anatomia, sem fronteiras corpo-rua, cidade evangelho, escritura proliferada desde muros, pele, asfalto, papel. Fazemos caminhada como poderoso dispositivo de inventar novas histórias.

    À sociedade de homens sentados, acelerados e ocupados, em celulares, carros, consumo, produtividade, opõe-se o texto de Verônica – corpo mulher mãe e tantos outros corpos persistentes em pisar no espaço público, que ainda hoje é palco privilegiado de homens.

    Percorrer a cidade a pé é cartografia, ensaio, manifesto pela desaceleração, pela possibilidade de reocupar o espaço urbano com nossos pés, habitá-lo e inventar outras possibilidades de vida e convívio nele, no qual todas nós caibamos, todos os corpos caibam.

    É um texto-jornada, que opera por itineração, da autora, das palavras, das ações performativas nele. Jornada a ser percorrida também a pé, saboreada, deixando suas paisagens insistirem cada vez mais no corpo.

    Nele se passeia. Ralentando o passo, de mãos dadas, a duas ou a muitas, levando tartarugas para passear em distintos solos do mundo, nas ruas do Rio de Janeiro, de São Paulo, Panceva, Havana, Cidade do México, Paris, Salvador, Viena, pondo pensamentos em movimento, coletando pequenezas do baixo urbano, invertendo papeis sociais, colocando afetos em circulação.

    Nele, formulam-se táticas para se perder, deriva-se. Como quem sai para um encontro amoroso, deriva-se a sós, em duetas, trincas, em bando, em fuga ou em perseguições, religiosamente, toda semana, ao longo de anos, ou ininterruptamente, por 24 horas. Estar à deriva é deixar-se levar pelo território e pelas outras que nela se encontram, é uso improdutivo do tempo, é fazer da cidade um jogo e uma possibilidade de resistência, microrrevoluções.

    Nele, os percursos mais cotidianos são relidos e expandidos, tornados dispositivos de criação. Ações minúsculas ou extensivas, caminhando de mãos dadas com desconhecidas, pedindo informações a desconhecidas, caminhando com fones de ouvido, encontrando e sendo guiadas por desconhecidas. Dilatam-se presenças e sentidos – o cotidiano se torna matéria de subversão, torna-se extra ordinário e se encanta para ser transformado em outra.

    Nele, atravessam-se grandes territórios, marcando na terra os passos humanos – primeira interferência humana na paisagem –, cortando cidades com os pés, realizando travessias de grande extensão de tempo. Espaço predefinido, tempo imprevisível, relativo, imensurável. Tempos de encontro e convívio, festa, cortejo, manifestação.

    Caminhar no texto é observar outras dilatações e subversões, históricas, dos percursos das artes – do estatuto da obra de arte, artista, espectador. Os corpos são materiais constitutivos das ações, não apenas num audiotour, mas em toda a cartografia de deambulações dos últimos 60 anos nas artes.

    O corpo de bando esgueira-se pela Rua do Bosque. Mas o bosque aqui nasceu foi dentro de um grande galpão feito só de paredes, ao lado do trilho do trem. Foi o tempo que cavou essas reentrâncias bem no meio do edifício. Esse galpão costumava guardar o bosque embaixo dos assoalhos. As árvores ganharam ganas de crescer e se exibiram. Desde baixo, ninguém suspeita que ali tem um bosque guardado. Mas, de cima da ponte, vê-se tudo. É uma outra cidade esquecida, ao lado de uma cidade habitada e de outra percorrida em alta velocidade, em corpos metálicos… Nós, pausadas, extasiadas, boquiabertas diante do bosque dentro do galpão, os prédios, o skyline, o trilho do trem e a escola de samba que puxa o compasso pra trás. O tempo em decomposição. E o mato crescendo logo ali, a mil por hora. O corpo é tão íntimo ao lado da pista de alta velocidade. Se eles pudessem ouvir o barulhão daqui de dentro do meu peito. Mas a pista é para os carros. São eles que, agora, operam o vento. São eles que mobilizam nossos corpos, nossas roupas e agitam nossos cabelos. Enquanto uma escola de samba se desmaterializa, logo ali, embaixo das avenidas. Esse é o lugar dos silêncios trocados.

    Quem se arrisca a pôr os pés no chão da cidade grande, a enfrentar a velocidade dos carros, a dureza das desigualdades nela é que pode ainda se apaixonar ou divorciar dela, compreendê-la desde o nível baixo, encardido ou singelo, ter um caso com as sarjetas, canteiros, faixas de pedestre, discuti-la na fricção de temperaturas entre asfalto e pele e até abandoná-la para poder sentir sua nostalgia. O texto, as artistas, coletivos, caminhadas, encenações presentes no livro condensam esse gesto de reivindicação do uso das terras da cidade, outros usos, outras velocidades, operando pequenas revoluções no cotidiano, micropolíticas do devir.

    Paulina Maria Caon

    Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia

    Coletivo Teatro Dodecafônico.

    APRESENTAÇÃO

    Habitar o instante

    Relação entre arte e vida. Da obra ao acontecimento. Proposição de experiências pelo artista. A ausência de atores e seus desdobramentos no estatuto do espectador. Derivas em jogo. Percursos sonoros. Caminhadas e experiências poéticas. Passeatas circulares das Madres de la Plaza de Maio, Buenos Aires. Estética e política: uma oposição em xeque.

    Esses são alguns dos temas por vezes inesgotáveis, por vezes surpreendentes que poderão capturar o leitor para um mergulho nestas páginas corajosamente escritas por Verônica Veloso. Corajosas, sobretudo, pela amplitude do arco histórico e conceitual abarcado.

    Iniciando seu texto com a dissolução dos requisitos consagrados que legitimaram historicamente a cena dramática – dissolução essa observada a partir do século passado –, a autora guia-nos com entusiasmo e firmeza em sua argumentação. Para construí-la, trata de encenações e performances deambulatórias, analisa as manifestações dos situacionistas que proclamaram o fim da arte e detêm-se no exame de modalidades performáticas assumidas por artistas, como, entre outros, Eleonora Fabião, Hélio Oiticica, Paulo Nazareth, Janet Cardiff, Francis Alÿs, assim como em experiências nas quais esteve diretamente envolvida, oriundas do Coletivo Teatro Dodecafônico.

    A análise de práticas deambulatórias acaba conduzindo a autora à radicalidade da proposta original por ela aqui defendida com brio: o cultivo de caminhadas no espaço urbano como indicação de determinada atitude tanto estética quanto política no âmago da organização social dentro da qual nos constituímos.

    Assim ela nos revela de que modo derivas, travessias e similares – realizadas solitariamente ou em grupo – confundem-se com o cotidiano das ruas, podem ser invisíveis e dissolvem a figura do espectador. Como sabemos, a vida na urbe, tão atravessada no Brasil pela vigilância e por proibições que instauram um clima de perigo e precaução permanente, tende a ser vista como mero cenário de deslocamentos e passagens habituais, o que denota o avesso de uma perspectiva de fruição partilhada do espaço público. A caminhada é encarada então como oportunidade de uma outra relação com o tempo e o espaço, de algum modo progressivamente inscrita no corpo de quem a pratica.

    A figura do homem lento, concebida por Milton Santos, encontra aqui sua mais completa tradução, como diria o poeta. Opondo-se à ode à velocidade, à eficiência, à rentabilidade a toda prova, ao imediatismo, a lentidão do caminhante é aqui destacada como subversão de um cotidiano quase sempre embrutecedor. E aqui incide um ponto-chave do livro. O questionamento do frenesi do qual tendemos a ser reféns tem, no ritmo do deslocamento desinteressado, não produtivo daquele que caminha, um potente aliado para a instauração de experiências permeáveis a descobertas e reflexões. Outorgar a si mesmo a possibilidade, mesmo pontual, de transgredir aqueles imperativos constitui manifestação de uma atitude política.

    De Henry Thoreau a Walter Benjamin, de Frédéric Gros a Claire Bishop, nossa autora escolhe preciosos parceiros para iluminar o percurso traçado. A partir de diferentes óticas, os escritores em quem Verônica se apoia salientam o quanto o caminhar, por abrir uma trégua na sucessão de ações utilitárias que preenche os dias dos humanos, constitui um ato de transgressão. A abertura para o espaço circundante parece acarretar a ampliação do olhar sobre o mundo; o movimento ritmado do corpo repercute nos movimentos do pensamento e conexões, por vezes indecifráveis, passam a ligar sentidos, sensações, paisagens em contínua sucessão, tecendo fios que remetem o caminhante a universos outros, distantes do terreno sob seus passos.

    Implicações do ato de caminhar por parte de toda e qualquer pessoa são trazidas à tona, abrindo valiosas pistas para eventuais ressonâncias no âmbito pedagógico. Poderá caber aos próprios caminhantes a formulação de regras a serem observadas no percurso, delimitando, assim, a ênfase desejada pelos envolvidos em determinadas circunstâncias. A paisagem recortada pelo olhar daquele que caminha, sempre cambiante, desvenda-se como metáfora da riqueza da alteração de pontos de vista. O caminhar evidencia-se aqui como prática estética, na medida em que a percepção sensorial é fortemente solicitada; além da visão e da cinestesia, audição, tato, olfato e, eventualmente, paladar são aguçados enquanto se dá o deslocamento do corpo no espaço. Estabelece-se campo fértil para que talvez o tratamento poético das sensações possa emergir. Experiências de permeabilidade às solicitações do percurso e a encontros tão diretos quanto inesperados com pessoas, situações, arquiteturas e traçados urbanísticos abrem formidável potencial de descobertas sobre si e o mundo.

    As próximas páginas, certamente, abrirão o apetite do leitor para explorações imersivas no tecido urbano. Está feito, portanto, o convite para descobrir o que encerram. Habitar o instante, feliz formulação de David Le Breton, é o exercício que se propõe. Acessível a todos, o caminhar, tal como algumas modalidades de teatro, a própria performance e também as práticas de meditação partilham um intuito similar. Mediante experiências mesmo inevitavelmente descontínuas de desautomatização de nossas condutas, esse intuito pode então se tornar palpável. Estamos nos referindo a uma conquista sutil, jamais concluída: fazer-se presente no presente.

    Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

    Escola de Comunicações e Artes/USP

    Pesquisadora apoiada pelo CNPq.

    Sumário

    CARTOGRAFIAS POÉTICAS E ITINERÁRIOS DE UMA PESQUISA 23

    I. [MEU] CORPO ERRANTE: DE COMO EU ME TORNEI PEDESTRE 26

    II. POR UMA CARTOGRAFIA DE PRÁTICAS TEATRAIS E PERFORMATIVAS RECENTES 30

    III. ALGUMAS NOÇÕES FUNDAMENTAIS PARA PERCORRER ESSE ITINERÁRIO 37

    IV. SOBRE OS CAPÍTULOS QUE SE SEGUEM OU AS MÚLTIPLAS ENTRADAS NESSA CARTOGRAFIA 39

    CAPÍTULO 1

    A CENA CONTEMPORÂNEA E AS LINHAS INVISÍVEIS DO MAPA 45

    1.1 A NOÇÃO DE ENCENAÇÃO EM DERIVA 47

    1.2 A NOÇÃO DE MISE EN JEU OU A ENCENAÇÃO COMO

    INSTAURAÇÃO DO JOGO 57

    1.3 A PERFORMANCE COMO CAMPO DE DISSOLUÇÃO DA ENCENAÇÃO 67

    1.4 AQUELE QUE PASSA POR MIM: DO ESPECTADOR COMO

    PRINCÍPIO ATIVO À SUA DISSOLUÇÃO 73

    1.5 O TERRITÓRIO DO REAL E O PRINCÍPIO DO ACONTECIMENTO:

    A DISSOLUÇÃO DA OBRA DE ARTE 96

    CAPÍTULO 2

    O ATO DE CAMINHAR E O FLANAR NO CONTEXTO URBANO 117

    2.1 CAMINHAR, ANDAR 117

    2.2 CAMINHAR, PENSAR 122

    2.3 CAMINHAR, CRIAR 124

    2.4 PASSEAR, FLANAR 126

    2.4.1 O flâneur e o Homem da Multidão 128

    2.4.2 Paris: do passeio ao bulevar, das passagens às lojas de departamento 131

    2.4.3 O flâneur e a invenção da vida moderna: a cidade como literatura 135

    2.4.4 Quando os artistas levam tartarugas para passear 140

    2.4.5 Quando flanar acontece no feminino 146

    CAPÍTULO 3

    DERIVAS SITUACIONISTAS E OUTRAS FORMAS DE PERDER-SE 157

    3.1 DERIVAS SITUACIONISTAS E A EXPLORAÇÃO DO ACASO 158

    3.1.1 Guy Debord: do Movimento Letrista ao Movimento Situacionista 159

    3.1.2 Situação construída: a prática (performática) dos Situacionistas 163

    3.1.3 Deriva como prática dadaísta ou surrealista 166

    3.1.4 Jogos situacionistas como práticas cotidianas: escândalo, festa e

    encontro amoroso 171

    3.1.5 Deriva como ação improdutiva: uma interface com o tempo 180

    3.1.6 Deriva como tática para perder-se ou um modo cinematográfico de

    olhar a cidade 185

    3.2 DERIVAS DODECAFÔNICAS E OUTRAS DERIVAS ARTÍSTICAS 191

    3.2.1 Deriva 24 horas 192

    3.2.2 Elástico invisível 199

    3.2.3 Derivas parisienses 206

    3.2.4 Uma performance e uma encenação em deriva 216

    3.3 FUGAS E PERSEGUIÇÕES 224

    3.3.1 Seguir pessoas para explorar outros itinerários 226

    3.3.2 Entre fuga e perseguição: um jogo duplo 229

    3.3.3 Seguir pessoas com o Coletivo Teatro Dodecafônico: uma questão de gênero 237

    CAPÍTULO 4

    PERCURSOS COTIDIANOS E O FLANAR COM FONES DE OUVIDO 243

    4.1 QUANDO OS ARTISTAS SE VALEM DE PERCURSOS PARA

    COMPOR AÇÕES 243

    4.1.1 Percursos como linhas que atravessam o espaço 247

    4.1.2 Eis-me aqui, metrópole intensa: sobre meus percursos por São Paulo 250

    4.1.3 Outros percursos e as mudanças sensíveis em uma psicogeografia 257

    4.2.1 Janet Cardiff e o efeito de presença 262

    4.2.2 Os percursos sonoros de Janet Cardiff: escrever em três dimensões 265

    4.2.3 Cinema para os ouvidos 275

    4.2.4 Trajetórias guiadas pelo som 281

    CAPÍTULO 5

    TRAVESSIAS DE GRANDES TERRITÓRIOS: MANEIRAS POÉTICAS

    DE (CON)VIVER 295

    5.1 LAND ART: CAMINHADA QUE SE INSCREVE NA TERRA 295

    5.2 TRAVESSIAS: RECORTAR A CIDADE COM OS PÉS 300

    5.2.1 Atravessar ou circundar a cidade como um Stalker 303

    5.2.2 Travessia como encontro e despedida 308

    5.2.3 Uma travessia amorosa e outra coletiva com o Dodecafônico 311

    5.3 CAMINHAR JUNTO: FESTA DE RUA, CORTEJO E MANIFESTAÇÃO 330

    5.3.1 No carnaval e no futebol, a festa é na rua 334

    5.3.2 Protestos, marchas e manifestações 338

    5.3.3 Ocupações, marchas cidadãs e rituais públicos 344

    CAPÍTULO 6

    DEPOIS DE CAMINHAR: RASTROS, VESTÍGIOS E DESDOBRAMENTOS DA PRÁTICA PERFORMATIVA 355

    6.1 QUANDO A PERFORMANCE RESULTA EM OUTRAS MATERIALIDADES 358

    6.1.1 A fotografia como documento primário da performance 360

    6.1.2 Quando a ação performativa se destina a um espectador ausente ٣٦٢

    6.1.3 Quando a performance resulta em fotografia 367

    6.1.4 Quando a performance resulta em vídeo 378

    6.1.5 Quando a performance resulta em desenhos, textos e outras narrativas 383

    6.2 QUANDO A PERFORMANCE PROVOCA UM EFEITO DE ACONTECIMENTO 388

    6.3 QUANDO A PERFORMANCE SE DESDOBRA E, DEPOIS, SE MULTIPLICA 398

    CAMINHAR NO CONTEXTO URBANO:

    UM ATO DE TRANSGRESSÃO 407

    I. SOBRE O ESPECTADOR E O POTENCIAL PEDAGÓGICO

    PRESENTE NAS AÇÕES TEATRAIS E PERFORMATIVAS 409

    II. ENTRE A SUPERAÇÃO DA ARTE E O QUE QUEREMOS, CONTEMPORANEAMENTE, QUE A ARTE SEJA 415

    III. CAMINHAR COMO PRÁTICA ESTÉTICA E POLÍTICA 419

    REFERÊNCIAS 423

    CARTOGRAFIAS POÉTICAS E ITINERÁRIOS

    DE UMA PESQUISA

    La poésie est dans la rue [A poesia está na rua]

    Slogan de maio de 1968²

    Em 1963, o visionário Augusto de Campos retrata em seu poema um projeto moderno de cidade, que atingiu a sua mais perfeita tradução depois dos anos 2000. Nesse projeto, as operações são simultâneas³; um organismo vivo, multifuncional, em rede. As grandes metrópoles do mundo se organizam em torno do capital, dos espaços estriados, da alta velocidade, da conectividade, da continuidade. Se você experimentar ler e reler algumas vezes o poema de Augusto de Campos citado anteriormente em voz alta, terá a exata medida da pluralidade presente na cidade contemporânea. Ela é multifacetada; um espaço de trocas, de fuga, de saga, para destacar algumas palavras que saltam aos meus olhos durante a leitura do poema. Quando o leio, penso em São Paulo. Acontece que as subjetividades que emergem dessa cidade produzem poéticas que questionam tais princípios, reagem a eles e convocam seus habitantes a experimentar outros modos de atravessá-la. O urbano se distingue da cidade precisamente porque ele aparece e se manifesta no curso da explosão da cidade (LEFEBVRE, 2016, p. 79). Muitos artistas e espectadores percorrem a cidade a pé, num ato de recusa à velocidade, de apropriação do espaço público, de exploração de outras táticas de sobrevivência e de outros modos de convívio. É adotar uma postura nômade. É traçar rotas descentralizadas, que se contrapõem à métrica da cidade. É inscrever-se no espaço de maneira rizomática.

    É possível ler a cartografia de uma cidade e reconhecer o processo de urbanização que ela viveu, pois ideias e ideologias se inscrevem em suas ruas e avenidas. Muitas cidades brasileiras ainda guardam em seus centros históricos uma estrutura pedestre, com calçadas espaçosas, que conduzem para uma grande praça arborizada. Penso em cidades do interior de São Paulo, como Ribeirão Preto, Bauru, Sorocaba e penso também em Rio Verde (GO). Com o passar do tempo, o casario é progressivamente transformado em estabelecimentos comerciais, escondendo as fachadas antigas e, nos melhores casos, ruas são fechadas para a circulação dos carros. Em cidades de porte médio, como Campinas, Uberlândia e Goiânia, as áreas de urbanização mais recentes apresentam largas avenidas, com escassas faixas de pedestres ou passarelas aéreas, sobre as quais devem atravessar aqueles que ainda insistem na atividade pedestre. Curiosamente, as três cidades citadas são quentes, o que desencoraja essa atividade. Tais avenidas são destinadas para a circulação de veículos particulares, uma vez que o investimento em transporte público não acompanha o nível de expansão das vias de alta velocidade.

    Ao expulsar o pedestre da rua, essas novas estruturas urbanísticas visam ao máximo controle sobre o espaço público. Longe dos centros empresariais e financeiros, quem não se desloca em veículos particulares acaba confinado em meios de transporte coletivos morosos e precários. Geralmente, essa população que depende do transporte público já não consegue mais viver no centro da cidade, sendo obrigada a deslocar-se por longas distâncias, impossíveis de serem transpostas com a força das próprias pernas. Ao restringir as possibilidades deambulatórias do cidadão, o Estado conduz todo pedestre potencial para dentro dos centros comerciais ou shopping centers, onde os pensamentos evocados durante a caminhada são facilmente convertidos em desejos de consumo. Cada vitrine apresenta ou vende uma promessa de aquisição de um sonho. Identidades e futuros promissores são oferecidos como produtos, num tempo em que educação e saúde são amplamente mercantilizados. Todo cidadão é reduzido à categoria de consumidor, na medida em que se perde a noção e o costume com a coisa pública, com o bem comum, com o espaço de livre circulação. Penso em São Paulo, em Goiânia, em Sorocaba e outras cidades do Brasil, nas quais templos do consumo são erguidos com maior frequência que escolas, hospitais, bibliotecas e casas de cultura. Vale ressaltar que a exclusão dos pedestres do espaço público compromete gravemente o exercício coletivo da democracia.

    O que se apresenta no Terceiro Mundo é o que Guy Debord imaginou que se tornaria a chamada sociedade do espetáculo, um lugar onde tudo o que era vivido diretamente afastou-se em uma representação (2004, p. 766)⁴. Um cenário composto pela tomada de posse do ambiente natural e humano pela dominação absoluta do capitalismo, e é essa tomada de posse que Debord entendia como urbanismo. Na década de 1960, o autor vislumbrou que o fruto desse urbanismo seriam cidades como essas, que de certo modo seguem um padrão norte-americano, em que impera a lei da mercadoria. Paris talvez tenha sofrido menos com a premonição de Debord, provavelmente por terem sido inscritos sobre aqueles muros, slogans como: quem consome mais, vive menos ou faça amor, não lojas. Não que Paris não tenha seus templos do consumo, mas eles ocupam diferentemente o espaço urbano, de uma maneira menos ostensiva que os shopping centers. Penso nas passagens públicas e nas grandes lojas de departamento, além da avenida Champs Elysées – uma passarela voltada ao consumo – e das ruas tortuosas do Quartier Latin, igualmente centradas nessa prática. De algum modo, a arquitetura se mantém voltada para o sujeito e não para o transporte em quatro rodas. Diz-se que Paris foi construída para ser observada a cavalo, um ponto de vista que não coincide com andar de bicicleta, de transporte público ou a pé. Porém foi nessa cidade, onde hoje é possível se deslocar de todas essas maneiras, menos a cavalo, que se disseminaram os pensamentos situacionistas. Eram muitas as pichações contrárias à mercantilização do corpo e da vida.

    Caminhar unifica os homens, pois a ação pedestre é inicial, não depende de nenhuma posse, apenas da plenitude do corpo. Caminhar coloca a todos na mesma posição, sem herói, sem espectador e sem autor. Caminhar na cidade é misturar-se nela, sem enxergá-la e ainda assim, colaborando com os fluxos humanos que a constituem. O emaranhado de itinerários de cada habitante da cidade se configura como seu pulso constante; ele está para a cidade, como o sangue está para o corpo humano. São as formigas que tornam um formigueiro visível; sem elas, o formigueiro não passa de um monte de terra oco, perfurado por entradas e saídas imperceptíveis. A rua como espaço de circulação e como principal via desses fluxos não existiria caso os pedestres se ausentassem dela.

    I. [MEU] CORPO ERRANTE: DE COMO EU ME TORNEI PEDESTRE

    Figura 1 – Intervenção urbana Coletivo Teatro Dodecafônico

    Fonte: Cacá Bernardes

    Caminhar na cidade faz corpo, toma corpo e dá corpo às ambiências urbanas. Para falar da relação estreita entre corpo e cidade, das múltiplas implicações que esses dois agentes provocam um no outro, não posso deixar de me colocar como corpo. Ao estudar diferentes modos de caminhar, presentes nas mais diversas práticas teatrais e performativas, o meu próprio corpo foi colocado em questão. Qual a relação do meu corpo com essa prática? O quanto caminho ou me proponho a caminhar? Quais escolhas, afetos e construções presentes na minha vida me impedem de me tornar um corpo errante? Onde está o descompasso ou o desconforto em relação à pesquisa intelectual e à vida praticada? Poderia esse corpo, sujeito dessa escrita, assumir-se ou conduzir-se nômade algum dia? Com quais tabus estaria rompendo? Pode alguém sedentário discorrer sobre os errantes, os nômades?

    Se estais pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filho, e amigos, e a nunca mais vê-los – se haveis saldado vossas dívidas, feito vosso testamento, deixado em ordem os negócios e se sois um homem livre, então estais pronto para uma caminhada (THOREAU, 2003, p. 5).

    A radicalidade do discurso de Thoreau nos leva a crer que, na verdade, nunca estaremos inteiramente prontos para caminhar e que assim ela se faz: imperfeita. Esse homem livre de Thoreau, que tem negócios e testamento em ordem, é um homem no masculino, abastado, romântico e idealizado, portanto, inadequado para este estudo. Quando se refere às mulheres e sua impossibilidade de caminhar, ele diz: como podem as mulheres, que permanecem em casa muito mais que os homens, tolerar tal situação, eu ignoro. Mas possuo fundamentos para conjecturar que a maioria não a tolera de modo algum (THOREAU, 2003, p. 8). Mais de 100 anos depois de Thoreau escrever essa frase, a condição das mulheres não deveria ser mais a mesma. Se eu optasse por falar apenas na primeira pessoa, falaria a partir de um lugar onde se reconhece as conquistas relacionadas à emancipação feminina. Entretanto tais conquistas não são socialmente homogêneas, elas dependem do contexto, do grupo social, da etnia, da localização geopolítica, da orientação sexual. Nesse sentido, espero compreender, por meio do exercício da escrita, como me tornei pedestre, por que optei por caminhar e passei a observar essa ação. Torno-me a cada dia uma mulher lenta e atenta a todo um espectro de vozes dissonantes que inclui histórias de outras mulheres que não podem ser esquecidas. Aqui eu me refiro ao homem lento de Milton Santos, colocado propositadamente no feminino.

    Ao longo de todo o texto, farei breves retrocessos autobiográficos para entender por que fui capturada por esse tema e tenho me ocupado dele nos últimos anos. Segue a seguir a primeira dessas narrativas:

    Quando pequena, eu morava numa cidade no interior de Goiás. Embora ela se chamasse Rio Verde, nela ninguém via o rio. Passávamos sobre o Rio Verdão pela estrada, em alta velocidade, sem nunca nos aproximarmos dele. É um rio caudaloso, com águas fortes e amarronzadas, misturadas com uma terra vermelha e revolta. Eu nunca me aproximei desse rio. Mesmo morando numa cidade no interior de Goiás, que pode parecer algo bastante remoto e provinciano, os moradores da cidade não se aproximam do rio. Lembro apenas de relatos de morte relacionados ao rio. Um primo distante que ao atravessar uma pinguela, escorregou e afogou-se no Rio Verdão.

    Minha cidade era a terceira maior do estado, o que significava naquela época que não era uma cidade tão pequena assim. Era uma cidade de uns cem mil habitantes. Nasci e vivi nela até os 10 anos, numa casa em uma grande avenida, muito movimentada para os padrões locais, onde eu não podia brincar. As brincadeiras estavam reservadas ao quintal, o lugar de infinitas descobertas, muitas invenções, cachorros, coelho, pé de ata⁵ e pessoas. Vim de uma casa cheia.

    Em Rio Verde, atravessar os portões da casa só era possível em companhia da minha avó, que morava na mesma casa que a gente. Ela se chamava Tereza, era uma senhora de testa grande, fartos cabelos brancos, pernas fortes e aparentemente velha. Ela morreu aos 84 anos quando eu tinha 13, mas para mim ela sempre foi octogenária. O trajeto que geralmente fazíamos juntas, às vezes acompanhadas de um de meus irmãos, levava de casa ao armazém do seu Pedro Honório. Lá, ela comprava doces para as crianças enquanto cheirava fumo e conversava com conhecidos. Um dia, ganhei um bambolê. O mais longe que eu ia era quando me autorizavam a dar a volta no quarteirão de bicicleta – um movimento circular – uma volta no próprio eixo, tendo a casa como referência central.

    Caminhar nesse contexto era perigoso e proibido. Só podia caminhar acompanhada de uma velha senhora, lenta. Para ela, era um jeito de cuidar da saúde e, como nunca se tornou motorista, quando não era levada por alguém tinha que ir a pé. A geração de minha avó vivia com muita simplicidade, mesmo as pessoas que dispunham de alguma posse. Não havia bens de consumo, nem estudo, nem o hábito de se deslocar, de viajar. Naquele tempo, nesse Goiás profundo, ninguém tinha ânsias de ver o mundo. E como as distâncias eram mais difíceis de serem transpostas, quem vinha de longe, vinha de Minas Gerais.

    Diferente de minha pesquisa de mestrado, na qual eu me colocava como encenadora e professora, aqui meu corpo se encontra imerso na pesquisa de campo, não olho de fora. Seja por experimentar as proposições de diferentes artistas como espectadora, seja por performar com o Coletivo Teatro Dodecafônico, encontro-me em deslocamento, caminhando dentro de ações deambulatórias entre os limites da arte e da vida.

    Um dos desafios que me coloco ao revelar trechos de minha cartografia poética tem a ver com a seguinte investigação: o quanto as cidades nas quais habitei (ainda) me habitam? Discorro, neste livro, sobre duas cidades onde vivi enquanto desenvolvia a presente pesquisa: São Paulo e Paris que, de modos diferentes, me convocaram a percorrê-las. E nesse convite, essas duas cidades também me ensinaram a caminhar com as minhas próprias pernas. Os trechos da cartografia poética evocam as cidades goianas que me habitam, mais do que aquelas que habitei. Nelas, poucas chances me foram dadas de caminhar. Desejo percorrer o meu estado a pé, sentindo em minha pele o sol que não dá folga, o céu em forma de abóboda celeste; o azul, o vento e a poeira tão próprios de Goiás. Um sentimento de reapropriação, para, talvez, reapaixonar-me por um lugar onde escolho a cada dia não viver.

    O primeiro estágio do amor urbano é aquele do mapa: ele se produz quando você sente que a cartografia da cidade amada se sobrepõe a todas as outras. Apaixonar-se por uma cidade é sentir, quando a percorremos, dissipar-se os limites materiais entre seu corpo e suas ruas, quando o mapa torna-se anatomia. O segundo estágio é aquele da escrita. A cidade se prolifera sob todas as formas possíveis do signo, ela se faz, de início, prosa, depois poesia e torna-se, finalmente, evangelho.

    No texto apresentado, Paul B. Preciado discorre sobre três cidades que amou. Aqui falo sobre as cidades que habitei e não necessariamente amei. Foi curioso perceber como o meu amor é diretamente proporcional ao quanto pude percorrê-las a pé. Parece que de outro modo, eu não conseguiria sentir essa sobreposição de que fala Preciado, entre o meu corpo e a cartografia da cidade. Quando o autor menciona a cidade se fazendo prosa e poesia, a cada passo, ele conclui com sua transformação em evangelho, que do grego, significa boa nova ou boa notícia. É assim que anuncio para vocês o texto que se segue, como uma boa nova, uma boa notícia, meu evangelho pessoal. Convido o leitor a me dar as mãos e deixar-se ser levado. Não pretendo guiá-lo completamente, você poderá fazer as suas escolhas. Inclusive pensar em outra ordem para a leitura dos capítulos dois, três, quatro e cinco, a depender de seu interesse. Sugiro que o primeiro e o último capítulos sejam lidos para iniciar e fechar o texto, respectivamente.

    II. POR UMA CARTOGRAFIA DE PRÁTICAS TEATRAIS

    3E PERFORMATIVAS RECENTES

    Tomando como ponto de partida o método cartográfico formulado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, que visa a investigar um processo de produção e não definir um objeto previamente, algumas peças e performances que atravessaram meu caminho ao longo de quatro anos de pesquisa são analisadas. Ou seja, elas poderiam ser substituídas por outras. Todas têm em comum o fato de serem deambulatórias e acontecerem no contexto urbano. Algumas tive a oportunidade de experimentar presencialmente, e em relação a outras, sobretudo as performances que ocorrem nas décadas de 1960 e 1970, tive acesso apenas aos vestígios deixados por elas. Seja presencialmente, seja navegando por livros ou pela internet, essa cartografia que aqui se apresenta não se assemelha a um decalque, uma cópia ou um conjunto de regras a serem aplicadas; juntos, esses exemplos se configuram como um mapa que dispõe de múltiplas entradas.

    O mapa é aberto, é conectado em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22).

    O caminhar retrata uma condição móvel daquilo que não se fixa, que não é estável, nem definitivo. Nesse sentido, compor uma cartografia de ações teatrais e performativas deambulatórias caracteriza-se como uma tarefa fluida, cujos conceitos e definições vão sendo estabelecidos ao longo do processo. Nessa forma de deslocamento se inserem desde aqueles que passeiam ou derivam pelas cidades, até aqueles que atravessam territórios e ainda aqueles que não têm lugar na terra, os andarilhos, os refugiados e os nômades. Não se trata apenas de ações solitárias, mas coletivas, que colocam em relevo o ato de caminhar como forma de pensar, de criar, de se desterritorializar e de se reterritorializar. A história do caminhar se confunde com a história da humanidade, que avança ao reconfigurar seus espaços de (con)viver, questionando e reformando seus usos do espaço dito público. Por tratar de um assunto móvel e, portanto, instável, essa cartografia será necessariamente imprecisa. Ela se configurará como um exercício de reflexão a partir dos caminhos de inúmeros artistas que se deslocam no espaço urbano, sem pretender, no entanto, abarcar a globalidade dessas produções.

    Apresentarei algumas categorias porosas da caminhada, analisando o modo pelo qual elas contribuíram ou inspiraram a invenção de modalidades artísticas diversas. Mantendo o foco da investigação em práticas teatrais e performativas no contexto urbano, tal tipologia revela o quanto o sujeito que coloca seu corpo em deslocamento a pé pelas grandes cidades pode inventar outros modos de ocupar o espaço e de usar o tempo, tornando estética e política indissociáveis. A arte, desse modo, apresenta-se a partir de processos fluidos, não institucionais, ambulantes e cada vez mais próximos das esferas do real. É por isso que as ações a serem apresentadas e analisadas neste estudo estão situadas nas fronteiras entre diversas disciplinas artísticas. Estão situadas nas margens entre teatro, dança, intervenção e performance urbana, assim como nos seus desdobramentos em outras materialidades como fotografias, vídeos, desenhos e textos disseminados pela internet.

    São proposições em diálogo com o real, com as estruturas políticas e sociais e com as práticas urbanas contemporâneas. Tais ações têm um caráter inacabado, pois são manifestações não apenas efêmeras, como precárias. E tal precariedade não advém apenas de suas materialidades, mas de sua realização recente historicamente. Por esse motivo, nosso recorte coloca lado a lado ações realizadas a partir da década de 1960 até os dias atuais. Como se tratam, muitas vezes, de formas líquidas, aposto que a observação de ações com alguma estabilidade temporal, com maior distanciamento histórico, seria um interessante contraponto às ações que vêm sendo criadas recentemente.

    Meu interesse é observar os modos de operar dessa arte contemporânea deambulatória e investigar o quanto ela é acessível ao espectador, o quanto ela é inclusiva, relacional e horizontal. Contrariamente a um entendimento de que a arte contemporânea é de difícil acesso, meu objetivo é destacar o quanto a dissolução de certos estatutos da cena contemporânea pode aproximar o espectador da estrutura de funcionamento da arte, a ponto de ele se tornar mais indispensável para a execução da ação que o próprio artista. Então, busco reconhecer nas manifestações artísticas contemporâneas um potencial pedagógico, político, poético e transformador não apenas dos estatutos artísticos, mas também de comportamentos e práticas sociais.

    Minha primeira hipótese é de que à medida que se reconhece um potencial pedagógico nessas modalidades artísticas contemporâneas, elas se configuram como dispositivos relacionais e dialógicos capazes de colocar a figura do espectador no primeiro plano da discussão.

    [...] como a mimese, a teatralidade tem relação fundamental com o olhar do espectador. Esse olhar identifica, reconhece, cria o espaço potencial no qual a teatralidade será identificada. Ele reconhece esse outro espaço, espaço do outro onde a ficção pode surgir. Esse olhar é sempre duplo. Ele vê o real e a ficção, o produto e o processo. [...] a teatralidade diz respeito, sobretudo, e antes de tudo, ao espectador. Sem ele, o processo mimético e teatral não tem nenhum sentido (FÉRAL, 2015, p. 107).

    Se a teatralidade pertence, sobretudo, ao espectador e se a criação é também resultante da ação do espectador, é preciso investigar o que tem sido oferecido a ele pelos artistas como dispositivos para lidar com seu novo estatuto dentro das artes cênicas e performáticas. Nas modalidades artísticas aqui analisadas, o "modo de usar não é previamente conhecido, há margens para sua compreensão e exploração. Frequentemente, elas retiram o espectador de seu espaço/tempo habitual. Quando utilizo o termo uso, eu me refiro ao sentido dado por Michel de Certeau, para quem o ato de falar é um uso da língua e uma operação sobre ela (2014, p. 91). Ao opor usos e consumos, o autor interroga a ação do telespectador de TV, da seguinte forma: o que o consumidor fabrica com essas imagens e durante essas horas" (CERTEAU, 2014, p. 88). O autor afirma que esse espectador não inscreve nada na tela da TV; trata-se, portanto, de um sistema que o mantém afastado; o espectador encontra-se totalmente excluído dessa manifestação. A referência à TV me permite compreender o quanto as expressões artísticas analisadas aqui não se constituem como produtos para serem consumidos, mas dispositivos para serem usados. E mais ainda, tais ações podem ser desdobradas a partir de suas próprias fabricações, na medida em que muitas vezes não interessa ao artista manter-se como o único fazedor de arte.

    Ao mesmo tempo, saliento que o foco do debate não está no campo da recepção de obras, mas na proposição do artista, que de modo mais ou menos radical interpela o espectador. Sendo assim, aproximo a reflexão ora da minha atividade como espectadora, ora da minha prática artística. Busco incluir minha experiência como espectadora nas análises realizadas em todos os capítulos, pois as reflexões tecidas aqui são fruto da frequentação dessas encenações e do estudo dessas performances. No entanto, não pretendo generalizar minhas impressões particulares como espectadora para todo um conjunto dissonante de pessoas, que, de maneiras muito distintas, são atravessadas pelas provocações de todos esses artistas. Tomo como referência a prática de análise de manifestações cênicas contemporâneas adotadas por três pesquisadoras: Silvia Fernandes, Josette Féral e Ileana Diéguez Caballero. As duas primeiras se valem da ideia da crítica genética (amplamente difundida por Cecília Almeida Salles no Brasil), similar ao tipo de análise desenvolvida por Josette Féral ao observar os processos criativos do Théâtre du Soleil e pelos inúmeros volumes da série Voies de Création Théâtral (editada pelo CNRS), voltada ao estudo da obra de artistas relevantes da cena teatral desde 1972, na França. Todas essas formas de análise pretendem aproximar a análise do espetáculo dos estudos de seus processos de criação. O movimento de análise experimentado nas páginas que se seguem recorre a essa fonte, tendo como principal inspiração a pesquisa realizada por Silvia Fernandes, uma das maiores estudiosas da cena teatral contemporânea brasileira. Ileana Diéguez Caballero desenvolve as noções dos territórios expandidos e liminares na cena latino-americana sempre acompanhada de uma profusão de imagens, que complementa suas narrativas sobre as criações artísticas e cidadãs.

    Dessa forma, procurando observar as ações para além do seu produto final, dispondo de uma extensa documentação visual e tendo como referência minha experiência como espectadora presencial e virtual, sedimento as análises que figuram em cada um dos capítulos do livro. Ressalto ainda que as ações que compõem o corpus da pesquisa realizada raramente se aproximam da ideia de obra acabada, constituindo-se como proposições de imersão e de experiência para os espectadores e não de visões a serem decodificadas. Em alusão aos estudos de Erika Fischer-Lichte sobre o desvio performativo que o teatro experimentou a partir dos anos 1960, Silvia Fernandes afirma que o teatro não é mais a representação do mundo ficcional que o público deve observar, interpretar e compreender. Nesse contexto, a representação da realidade dá lugar à ideia de presença, de instauração de acontecimentos, de um teatro sem referencial, no qual o sentido seria mantido em suspensão (FERNANDES apud GUINSBURG; FERNANDES, 2009, p. 26). Como herança da performance, esse teatro se apoia na materialidade das ações e na corporeidade dos atores, fazendo que a experiência ultrapasse o simbólico.

    Nesse sentido, não caberia à análise interpretar os significados impressos nos signos, desvendar as mensagens submersas nas combinações de imagens e sons; ao contrário, como pesquisadora, proponho-me a iniciar as análises descrevendo as ações, tendo como referência a minha experiência como espectadora (presencial ou virtual), a pesquisa sobre o material genético correspondente à ação e os vestígios produzidos em decorrência dela. Ao analisar também como uma espectadora, que vive uma experiência ímpar, a partir de um manancial de referências próprio, tal análise distancia-se de uma leitura definitiva, correta ou abrangente e aproxima-se mais da produção de uma narrativa, que não poderia ter sido realizada por outra pessoa. Josette Féral, cujas pesquisas têm contribuído para atenuar a oposição entre teatralidade e performatividade, privilegia uma definição que apresenta a teatralidade antes de tudo como o resultado não somente de um ‘ato de reconhecimento’ mas também de ‘criação’ por parte do espectador (2012a, p. 10)⁷. Recorro ao artifício da descrição como primeiro movimento da análise, operação esta que além de contextualizar o leitor, também revela os fios do raciocínio que gerou tais reflexões. Sendo assim, ao apoiar-me também na subjetividade da minha percepção como espectadora, não apresento um modelo de boa recepção, mas uma leitura possível. Trata-se do ponto de onde avisto, ou melhor, do corpo por meio do qual experimento tais manifestações cênicas contemporâneas.

    Quando opto por analisar dezenas de ações nas quais a mobilidade está em jogo, investigando os dispositivos articulados pelos artistas para o jogo dos espectadores, não pretendo associar o espectador sentado, que não participa de ações deambulatórias, à passividade. Busco observar de que modo o ato de caminhar opera na fruição do espectador e o pré-dispõe para a experiência, seja pelas possibilidades inerentes ao caminhar, seja pela recusa imediata de certos espectadores a caminhar. Assim se coloca minha segunda hipótese: o ato de caminhar pré-dispõe o espectador a se relacionar diferentemente com as manifestações artísticas, na medida em que mobiliza o corpo e reorganiza as ideias. Caminhar coloca o espectador em situação, convocando-o a viver a experiência de uma ação e ainda

    possibilita que ele se aproxime do espaço do real de modo não funcional, não objetivo e improdutivo, como só pode ocorrer em situações de jogo. Essas condições permitem a toda e qualquer pessoa se relacionar com a cidade, ampliando as margens de seu imaginário, o primeiro passo na construção de outras possiblidades de vida.

    Francesco Careri, em palestra na cidade de São Paulo, afirmou que saber provocar uma reação é mais interessante do que ser participativo. Nesse sentido, acredito que o fato de as ações estudadas aqui serem deambulatórias não faz que elas se configurem como participativas. Colocar-se em deslocamento não é o mesmo que participar, significa colocar-se em processamento, acionar-se inteiramente para determinada operação. Ou então, caminhar para produzir pensamentos, ideias, e sobretudo, para exercitar o imaginário, território das maiores disputas na contemporaneidade. Verificar o desdobramento pedagógico de uma encenação ou performance inscrita no espaço público é um modo de observar o quanto ela incorpora o espectador dentro do jogo, deixando brechas para que ele se posicione como cocriador da experiência artística.

    Também procuro apontar que o potencial pedagógico das ações analisadas possibilita a expansão da noção de arte como campo que se aproxima cada vez mais da esfera da vida. É certo que quando os artistas se posicionam na fronteira entre arte e vida, eles se posicionam justamente nessa brecha, nesse intervalo entre uma coisa e outra. Contudo esse posicionamento não significa a dissolução da arte, mas a ampliação de seus domínios de tal modo que a arte possa não só tornar a vida possível, mas se tornar um espaço de experimentação de outros modos de vida.

    As questões relacionadas à superação da arte foram amplamente debatidas pelos situacionistas franceses (e serão tratadas no terceiro capítulo), como podemos notar nos slogans inscritos em Paris em maio de 1968. Dentre eles: "L’art est mort. Godard n’y pourra rien. [A arte está morta. Godard não poderá fazer nada.]. Interessa menos endossar a perspectiva antiarte bastante difundida pelos situacionistas, do que questioná-los a partir de reflexões também tecidas por eles, que poderiam, no entanto, ter tomado outros rumos. Por exemplo, ao afirmarem Changez la vie, donc transformez son mode d’emploi" [Transforme sua vida, então transforme seu modo de usar], os situacionistas propõem uma mudança efetiva na esfera da vida – uma alteração

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