Constantino e o Cristianismo
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Sobre este e-book
Este modesto opúsculo apresenta uma história das primeiras conquistas e dos obstáculos que a revelação cristã logo encontrou em sua plena realização, com ênfase para as realizações de ordem moral e de promoção social dos mais carentes. O nome do imperador Constantino aparece como referência histórica nesse processo, em vista de seu papel na aceitação do Cristianismo como fé lícita e não mais alvo de perseguições. Simultaneamente, é narrado também o contexto histórico político do Império Romano e de seu processo de decadência e queda, concomitante à da ascensão do Cristianismo. História que se insere numa época de grandes reviravoltas políticas e transformações econômicas, sociais e de valores éticos e morais, que mudaram o rumo da civilização repercutindo até nossos dias.
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Constantino e o Cristianismo - Pinheiro Martins
P
refácio
O Cristianismo foi, e tem sido, mais que uma religião. Foi também a primeira e, talvez, a única verdadeira revolução social e cultural do Ocidente. Todas as revoluções subsequentes, inclusive as que se faziam passar por seculares ou francamente ateias, na verdade não mais fizeram do que dar seguimento à realização dos propósitos dos primeiros cristãos. Valores como igualdade entre todos os seres humanos — independentemente de sexo, etnia ou classe social —, fraternidade, solidariedade e respeito à liberdade de consciência já estavam na pauta dos cristãos primitivos há dois mil anos. Liberais, democratas e socialistas não fizeram mais do que apresentar esses valores em roupagens laicas e politizadas.
Mas entre as grandes promessas de emancipação humana do Evangelho e sua plena realização, medeiam ainda nossos limites, nossos defeitos, inerentes à nossa condição decaída de almas exiladas em um mundo de provas e expiações. De tal maneira que podemos dizer que o que há de surpreendente na história do Cristianismo não é o que falta ainda a realizar, mas o tanto que se tenha conquistado, apesar de nossa condição pecaminosa
. Este modesto opúsculo reúne, em alguns ensaios, uma exposição histórica das primeiras conquistas e dos obstáculos que a revelação cristã logo encontrou em sua plena realização, e que, para nossa vergonha, ainda são os nossos. Entre eles, a instrumentação da fé com propósitos políticos.
Se o nome do imperador Constantino aparece como referência histórica nesse processo, não devemos olvidar, entretanto, ser esta uma história coletiva. Que é, afinal, a Igreja senão um corpo formado pela amorosa coesão de miríades de células, que têm o Cristo por cabeça, como já dizia o apóstolo?
Este é um volume, portanto, que, de acordo com os padrões acadêmicos, poderia ser classificado como História Social. Mas para o prezado leitor sei que pouco importará como o classificam os eruditos. Se este modesto livrinho for agradável e útil para sua instrução, estarei satisfeito também.
1
A revolução ética do Cristianismo
Hoje, o rótulo cristão
carrega toda uma aura de respeitabilidade social. Pessoas tidas por conservadoras não esperam que um cristão seja visto como subversivo em potencial. Entretanto recordemos que, em seu tempo, o próprio Jesus foi julgado, condenado e executado como elemento sedicioso. E seus seguidores foram perseguidos como subversivos; primeiro, pelas autoridades religiosas judaicas; depois, pelas autoridades políticas romanas.
A pregação do ideal de igualdade de todos os seres humanos perante Deus e, em decorrência, o vislumbre da igualdade entre pessoas de diferentes classes sociais e etnias era considerada uma doutrina altamente subversiva, tanto sob a perspectiva de valores judaicos quanto romanos. Os próprios apóstolos, em um primeiro momento, não se mostraram plenamente dispostos a pô-la em prática.
O combate ao etnocentrismo
É notório, pela leitura dos textos bíblicos, que os apóstolos tinham sua compreensão dos ensinamentos de Jesus distorcida pelos valores e preconceitos do judaísmo. Nos anos que se seguiram à crucificação de Jesus, continuaram a frequentar diariamente o Templo de Jerusalém e celebrar as solenidades religiosas judaicas, como a Festa das Cabanas, a Páscoa e o Pentecostes (Atos 2:46). Durante algum tempo, hesitaram em pregar o Evangelho aos pagãos e samaritanos, pois ir aos goyms era algo de repugnante para judeus piedosos e fiéis como eles: significava fazer aliança com a impureza e, ainda por cima, renunciar ao estatuto de povo eleito. De fato, os antigos costumes judaicos preceituavam evitar todo o contato com os gentios, abstendo-se de comer com eles ou mesmo de entrar em suas casas, a fim de fugir à contaminação
. Foi necessário que Pedro tivesse uma visão celestial
para convencê-lo de que não se deveria chamar homem algum de impuro (Atos 10:9-28).
Mesmo os companheiros judeus originários da Diáspora, então apelidados de helenistas
ou gregos
, eram alvo de discriminação no seio da Igreja de Jerusalém, o que suscitou queixa de que o auxílio às viúvas e órfãos dos cristãos gregos
não estava sendo distribuído equitativamente. Isso originou a criação do diaconato, a fim de garantir que suas reivindicações fossem atendidas. Não por acaso, os primeiros diáconos foram escolhidos entre judeus da Diáspora, portadores de nomes gregos (Atos 6:1-5). Estavam os apóstolos, portanto, ainda imersos na cultura religiosa judaica e eivados de preconceitos contra os irmãos originários de outras terras.¹
Até depois de permitirem o ingresso de gentios na Igreja, os cristãos de origem judaica continuaram a discriminá-los, exigindo deles a observância dos antigos preceitos da lei mosaica. Primeiro, exigiam que os neófitos gentios se circuncidassem, como condição para seu ingresso no movimento cristão (Atos 15:5). Sabemos o quanto Paulo de Tarso penou para convencer seus companheiros de que os velhos preceitos da Torah haviam sido abolidos pela Nova Aliança. Até Pedro, mesmo depois da visão, ainda teve recaídas que Paulo não se furtou de admoestar publicamente:
Quando, porém, Cefas [Pedro] veio a Antioquia, resisti-lhe francamente, porque era censurável. Pois, antes de chegarem alguns homens da parte de Tiago, ele comia com os pagãos convertidos. Mas, quando aqueles vieram, retraiu-se e separou-se destes, temendo os circuncidados. Os demais judeus convertidos seguiram-lhe a atitude equívoca, de maneira que mesmo Barnabé foi levado por eles a essa dissimulação. Quando vi que o seu procedimento não era segundo a verdade do Evangelho, disse a Cefas, em presença de todos: Se tu, que és judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, com que direito obrigas os pagãos convertidos a viverem como os judeus?
(Gálatas 2:11-14)
Paulo lutou pelo estabelecimento da visão de uma igreja universal baseada nos ensinamentos do Cristo.² Procurou demonstrar que circuncisão instituída pelo Antigo Pacto já não valia mais nada diante da vinda do próprio Logos encarnado, autoridade espiritual máxima deste mundo, depois de Deus. Por isso dizia: Estar circuncidado ou incircunciso de nada vale em Cristo Jesus, mas, sim, a Fé que opera pela caridade
(Gálatas 5:6).
O apóstolo dos gentios teve de abrir os olhos de seus antigos companheiros de raça para o fato de que não mais importavam os simples ritos materiais, pois havia agora um novo mandamento: a circuncisão espiritual
, que significava uma transformação para uma vida espiritualizada.
Não é verdadeiro judeu o que o é exteriormente, nem verdadeira circuncisão a que aparece exteriormente na carne. Mas é judeu o que o é interiormente, e verdadeira circuncisão é a do coração, segundo o espírito da Lei, e não segundo a letra. Tal judeu recebe o louvor não dos homens, e sim de Deus. (Romanos 2:28-29)
Paulo insistia muito nesse ponto, enfatizando que a circuncisão de Cristo consiste no despojamento do nosso ser carnal
(Colossenses 2:11). Foi necessário também enfatizar que as antigas prescrições alimentares, assim como as festividades religiosas do judaísmo, não eram mais obrigatórias aos cristãos: Ninguém, pois, vos critique por causa de comida ou bebida, ou espécies de festas ou de luas novas ou de sábados. Tudo isto não é mais que sombra do que devia vir. A realidade é Cristo
(Colossenses 2:16-17).
Com espantosa lucidez, Paulo concluiu então que os antigos preceitos do judaísmo não passavam de tradições humanas:
Se em Cristo estais mortos aos princípios deste mundo, por que ainda vos deixais impor proibições, como se vivêsseis no mundo? Não pegues! Não proves! Não toques!
, proibições estas que se tornam perniciosas pelo uso que delas se faz, e que não passam de normas e doutrinas humanas. Elas podem, sem dúvida, dar a impressão de sabedoria, enquanto exibem culto voluntário, de humildade e austeridade corporal. Mas não têm nenhum valor real, e só servem para satisfazer a carne. (Colossenses 2:20-23)
Sábias palavras, que ainda hoje mantêm sua atualidade, principalmente quando recordamos que, após terem abandonado os antigos ritos judaicos, as igrejas cristãs passaram a exigir outros ritos por elas inventados, com o objetivo de oferecer aos fiéis novas oportunidades de exibir à sociedade uma aparência de religiosidade, como faziam os antigos fariseus. Isso para não se falar também da possibilidade de controlar a vida das pessoas através da imposição de ritos que só teriam validade caso aprovados pela autoridade eclesiástica competente
, como batismos, casamentos, enterros ou mesmo a investidura de reis.³
A presença cristã em Roma nos séculos I e II: enfrentando o preconceito social
Uma vez obtidos a adesão e o apoio de parte da comunidade judaica da dispersão dos apóstolos
para a causa cristã, o passo seguinte seria obter aceitação na sociedade romana. Sabemos que este foi um trabalho árduo e que demandou pelo menos três séculos até que o imperador Constantino reconhecesse o Cristianismo como religio licita, em 313. Antes disso, porém, e mesmo algum tempo depois, os cristãos encontraram não só resistência a suas ideias, mas também a franca hostilidade. Para que o leitor tenha uma ideia mais concreta do desprezo a que eram relegados os cristãos na sociedade romana, transcreveremos passagens dos primeiros escritores romanos a se ocuparem deles. Interessante notar o detalhe revelador de se tratar de passagens curtas, pois os discípulos do Nazareno não eram considerados dignos de maior espaço na história romana.
É o historiador romano Suetônio que nos dá notícia do momento em que, pela primeira vez, ouve-se falar dos cristãos em Roma, no governo do imperador Cláudio (41–54 d.C.). São retratados de forma bem pouco lisonjeira, como agitadores e perturbadores da ordem pública: Suetônio diz que Cláudio expulsou de Roma os judeus, sublevados constantemente por incitamento de Cristo
.⁴
Podemos ter quase certeza de que foi uma contenda entre judeus convertidos ao Cristianismo e seus companheiros ainda apegados à antiga lei mosaica que motivou o edito.⁵ Na época, e até o século V, mesmo após a conversão da maior parte da população ao Cristianismo, era comum que os conflitos religiosos degenerassem em motins, linchamentos e grossa pancadaria entre membros de diferentes cultos ou até entre facções sectárias de uma mesma religião. As autoridades romanas buscavam então intervir para garantir a ordem pública. E é bem possível que a citada expulsão dos judeus tivesse sido tomada no âmbito dessa política de evitar conflitos civis motivados por disputas religiosas.⁶
Adiante, Suetônio refere-se novamente aos cristãos, só que desta vez como objeto de uma das poucas ações de Nero consideradas boas
pelo cronista: Aos cristãos, espécie de homens afeitos a uma superstição nova e maligna, infligiram-se-lhes suplícios
.⁷ Entretanto Suetônio não nos oferece maiores detalhes acerca desse episódio. Outro historiador romano, Cornélio Tácito, fornece-nos mais minúcias sobre essa perseguição de Nero aos cristãos, que, segundo ele, teria sido deflagrada pelo imperador após o incêndio de Roma em 64, como forma de desviar a atenção do povo para sua suposta culpa pelo desastre. Um dos aspectos interessantes dessa passagem é que, embora o historiador romano pensasse, por um lado, que os cristãos eram inocentes quanto ao incêndio, por outro suspeitava que fossem culpados de outras malfeitorias:
Mas nem por meios humanos, nem pelas liberalidades do imperador, nem pelas expiações religiosas se apagava o rumor infamante que atribuía o incêndio às ordens de Nero. Para destruir tais murmúrios, ele procurou pretensos culpados e fê-los sofrer as mais cruéis torturas. Pobres indivíduos odiados pelas suas torpezas e vulgarmente chamados cristãos! Quem lhes dava este nome, Cristo, foi condenado no tempo de Tibério ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. Embora reprimida no momento, esta perigosa superstição irrompia de novo, não só na Judeia, berço desse flagelo, mas até mesmo na própria Roma, para onde afluem do mundo inteiro e conquistam voga todas as coisas horríveis e vergonhosas. Logo a princípio foram presos os que se confessavam cristãos; depois, pelas revelações destes, grande multidão foi convencida não do crime do