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Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid
Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid
Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid
E-book468 páginas6 horas

Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid

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Sobre este e-book

Até 1994, quando vigia o regime segregacionista de apartheid na África do Sul, a população negra não tinha acesso aos direitos básicos no país. Assim, tampouco eram vistos como clientes pelas grandes empresas. Com a eleição de Nelson Mandela e o fim do apartheid, acentuou-se o processo de financeirização do país e só então os negros passaram a serem tratados como potenciais clientes para o capital em geral, e para as seguradoras, especificamente. Nos dias atuais, em algumas periferias (townships) sul- africanas, como Indawo Yoxolo e Tembani, na Cidade do Cabo, ao menos 75% da população afirmam possuir apólice de seguro, e 63% uma apólice funerária. É desse cenário de mudança tão brusca que o antropólogo Erik Bähre parte neste instigante livro. Escapando de respostas fáceis, como responsabilizar exclusivamente o neoliberalismo ou o homo economicus, já que o Estado sul-africano é, segundo sua abordagem, desenvolvimentista, o autor opta pela noção de financeirização, em sua dimensão irônica, a partir do filósofo estadunidense Richard Rorty (1989). A ideia central é que no processo da financeirização sul-africana opera uma noção de solidariedade, no que ela contém de paradoxal. Nas palavras do autor: "A solidariedade dá ensejo a formas particulares de cuidado e ao mesmo tempo introduz crueldades específicas. Neste livro sugiro um modo de analisar o cuidado e a crueldade como dois lados da mesma moeda e revelar como tais dinâmicas dependem das circunstâncias históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais específicas". Conhecer as mudanças sociais, ontológicas e intersubjetivas desse processo, numa prosa elegante e bem fundamentada, é o convite que a obra de Bähre nos faz.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento19 de jul. de 2023
ISBN9788576005988
Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid

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    Ironias da solidariedade - Erik Bähre

    folha de rostologo_ufscar_colorido

    EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

    Editora da Universidade Federal de São Carlos

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    edufscar@ufscar.br

    Twitter: @EdUFSCar

    Facebook: /editora.edufscar

    Instagram: @edufscar

    folha 2

    © 2020, Erik Bähre

    © 2023, EdUFSCar

    Capa/Projeto Gráfico

    Vitor Massola Gonzales Lopes

    Imagens da capa

    Reprodução/Pexels

    Tradução

    Tauan Tinti

    Preparação e revisão de texto

    Marcelo Dias Saes Peres

    Andresa Ferreira

    Isabela Freitas

    Michelle Veloso

    Editoração eletrônica

    Alyson Tonioli Massoli

    Marcela Rauter de Oliveira

    Editoração eletrônica (eBook)

    Maria Fernanda Borges

    Coordenadoria de administração, finanças e contratos

    Fernanda do Nascimento

    Livro publicado em associação com o International African Institute

    O objetivo principal do International African Institute é promover o estudo acadêmico da África, em especial de suas sociedades, culturas e linguagens em transformação. Fundado em 1926 e seriado em Londres, o instituto dá suporte a uma gama de publicações,incluindo a revista acadêmica Africa. www.internationalafricaninstitute.org. Esta tradução de Ironies of Solidarity: Insurance and Financialization of Kindship in South Africa é publicada mediante acordo com Bloomsbury Publishing Inc.;

    Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

    Bähre, Erik.

    B151i           ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da Africa do Sul pós-apartheid/ Erik Bähre - São Carlos: EdUFSCar, 2023 - documento eletrônico - 281p.

    ePub: 1.2 MB.

    ISBN: 978-85-7600-598-8

    1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Desigualdade. 4. Violência. I. Título.

    CDD – 306 (20a)

    CDU – 39

    Bibliotecário responsável: Luciana T. R. V. Sebin - CRB/86031

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.

    Agradecimentos

    Se não fosse pelos seguros, este livro não teria sido escrito. E se não fosse pelo modo como as companhias de seguros da África do Sul expandiram seus mercados, eu não poderia ter estudado o modo como os seguros se relacionaram à democratização e se tornaram parte das vidas cotidianas de pessoas vivendo nas townships da Cidade do Cabo. Minha primeira pesquisa na região se deu em 1995, um ano após o marco sul-africano das primeiras eleições democráticas. Na época, os seguros estavam virtualmente ausentes nas townships, e as pessoas se apoiavam em vizinhos, parentes ou em outras redes de relações sociais para superar adversidades. Isso mudou dramaticamente ao longo dos vinte anos seguintes, conforme as companhias de seguros começaram a desenvolver produtos voltados para os africanos. Hoje em dia, os seguros se tornaram uma parte do cotidiano que é tanto muito importante quanto discreta.

    Há também um motivo pessoal para dizer que este livro provavelmente não teria sido escrito se não fosse pelos seguros. Quando eu estava prestes a começar o trabalho de campo, fiquei muito doente. Foi meu seguro que pagou pelo tratamento de custo bastante elevado. Duvido que eu teria sobrevivido sem um seguro, e sem dúvida as despesas médicas teriam destruído financeiramente a mim e a minha família, com consequências devastadoras, especialmente para meus filhos. Por esse motivo, estou grato a pessoas que nunca conheci e nunca irei conhecer. Apesar de não nos conhecermos, eles ajudaram a mim e a minha família a superar uma adversidade que ameaçou minha vida. Reconhecer isso pode parecer um gesto deslocado. Não se trata de relações pessoais ou obrigações sociais. E não se trata nem de caridade, já que meu seguro consiste em obrigações contratuais com uma companhia privada. Mas, a despeito de tudo isso, estou grato pela existência dessa forma abstrata e de larga escala de solidariedade, e que uma companhia de seguros torne possível esse tipo de solidariedade, e que o Estado a regule de modo que haja disponibilidade de dinheiro para me curar e dar assistência a outros.

    Tenho profunda gratidão também para com os habitantes de Indawo Yoxolo, Tembani e outras townships da Cidade do Cabo – por nossas conversas, por me convidarem para eventos, por compartilharem aspectos importantes de suas vidas comigo. Valorizo especialmente as reflexões e percepções que me proporcionaram com relação a episódios menos benevolentes e heroicos de suas vidas – aspectos que não foram higienizados por uma linguagem que diria respeito a como as coisas deveriam ser, mas que revelaram como de fato a vida se dá. Aprecio em grande medida o modo como as pessoas lidaram com nossas diferenças, que estão tão profundamente entranhadas na história da África do Sul. Ao longo dos anos, seu mundo se tornou parte do meu mundo e mudou o modo como vejo a vida. Esse enriquecimento vai muito além do livro que se tem em mãos. Edith Moyikwa e Vido Sam deram um apoio indispensável durante o trabalho de campo. Sou muito grato a Edith por cuidar de minha segurança e por ser uma professora maravilhosa, paciente e divertida.

    Agradeço a Rob Thomson, por ter me ensinado aspectos básicos do conhecimento atuário. A Sociedade Atuária da África do Sul e a Atuários Sem Fronteiras me ajudaram atenciosamente a organizar os encontros com atuários, além de distribuírem o questionário online entre seus membros. Sou grato aos atuários e demais trabalhadores do setor de seguros da África do Sul por terem me mostrado as questões políticas complexas e sensíveis com as quais têm de lidar.

    Agradeço a meus colegas e ao quadro de profissionais do Instituto de Antropologia Cultural e Sociologia do Desenvolvimento na Universidade Leiden pelo apoio a meu trabalho e por nossos debates críticos sobre a etnografia, a antropologia econômica, os estudos africanos e a antropologia em geral.

    Meus profundos agradecimentos vão para Antonádia Borges, João de Pina Cabral, Maghiel van Crevel, Tamás Csikós, Marleen Dekker, Ton Dietz, Jan-Bart Gewald, Fabíola Gomes, Maia Green, Chris Hann, Keith Hart, Debora James, Don Kalb, Anouk de Koning, Sabine Luning, Marianne Maeckelbergh, Bettina Mahlert, Amade M’charek, Isak Niehaus, Peter Pels, Yolisa Pikie, Daivi Rodima-Taylor, Hadrien Saiag, Günther Schlee, Sylvia Terpe, Bonno Thoden van Velzen, Cees van der Waal, Jörg Wiegratz e Ilana van Wyk. Nossas conversas críticas e estimulantes contribuíram para dar forma às ideias e métodos deste estudo, ajudando a definir seus limites. Por vezes comentários muito casuais, feitos entre bebidas ou durante uma caminhada, tiveram profundos impactos.

    Este projeto recebeu financiamento dos seguintes órgãos: o NWO, que me permitiu trabalhar no AMIDSt, atual AISSR, na Universidade de Amsterdã; o ESRC, pela participação no projeto de Deborah James, desenvolvido na London School of Economics, sobre economias populares na África do Sul; e o Conselho de Pesquisa Europeia (ERC), por meio do Programa de Pesquisa e Inovação Horizonte 2020 (processo n. 682467).

    Minha bolsa no Instituto de Estudos Avançados dos Países Baixos (NIAS) me proporcionou tempo para pensar, ler, escrever e ter conversas inspiradoras com acadêmicos envolvidos com objetos de estudo similares, mas inseridos em tradições disciplinares distintas. As conversas animadas com Tazuko van Berkel e seus comentários inteligentes sobre o manuscrito que entreguei galvanizaram uma abordagem mais filosófica da solidariedade e do dinheiro.

    Nikkie Buskermolen, Tim van de Meerendonk, Irene Moretti, Nikki Mulder e Robert Ross leram cuidadosamente uma versão inicial do manuscrito e fizeram comentários relevantes que me ajudaram a expor melhor meus argumentos e a escrever um livro melhor.

    Agradeço a Aaron Gundogan e a Matthijs Kallenberg por me ajudarem com a bibliografia.

    Sou grato aos editores do International Africa Institute, da Zed Books e da EdUFScar por seus comentários críticos e construtivos ao longo do processo de publicação e aos pareceristas anônimos, que fizeram sugestões excelentes. Agradeço à editora-chefe Stephanie Kitchen, por garantir um processo de publicação sem solavancos, a Jonathan Hoare pela revisão e a Rohan Bolton pela criação do índice de nomes e assuntos. Quero expressar também minha gratidão a todos os que tornaram possível a edição brasileira e agradecer à EdUFSCar por seu apoio e cooperação. Agradeço em especial Deborah Fromm, Gabriel Feltran, Wilson Alves-Bezerra, Fernanda do Nascimento e Fernanda de Gobbi. E muito obrigado também a Tauan Tinti, pela tradução cuidadosa do livro para o português.

    Minha mais profunda gratidão vai para Esther, Ruben e Nina, por ajustarem suas vidas e me darem o espaço necessário para trabalhar ao longo de dias e horas, que idealmente seriam para a vida em família, e por aceitarem a ausência de um marido e de um pai durante o período do trabalho de campo.

    Este livro examina as ironias da solidariedade em relação ao parentesco e à dependência e mostra como a solidariedade pode por vezes ser difícil. É possível que os leitores se perguntem se essa análise e o papel central da ironia foram inspiradas por minha própria biografia e histórico familiar. Fiquem tranquilos: é claro que não!

    Du kannst Dich zurückhalten von den Leiden der Welt, das ist Dir freigestellt und entspricht Deiner Natur, aber vielleicht ist gerade dieses Zurückhalten das einzige Leid, das Du vermeiden könntest.

    Você pode se retirar do sofrimento do mundo, você tem permissão para fazê-lo, e é algo que estaria de acordo com sua natureza, mas talvez essa própria retração seja o único sofrimento que você poderia ter evitado.

    Franz Kafka (escritor e funcionário do setor de seguros)

    Sumário

    Prefácio à edição brasileira

    1. Introdução

    A financeirização na África

    Capturada no contradiscurso

    Cidade do Cabo: cidade da esperança?

    Desenho geral e argumentos principais

    2. Uma análise irônica

    Conflitos na dádiva

    A solidariedade no mercado

    A ironia na racionalidade e na solidariedade

    A ironia no método

    3. Esperança e redistribuição

    Introdução: do trabalho à redistribuição

    Investimento em infraestrutura [Service delivery] e conflitos comunitários

    Empoderamento Econômico Negro e tensões raciais

    Auxílios sociais e tensões entre gerações

    Rezando pela redistribuição

    Redistribuição tensa

    4. Penetrando num novo mercado

    Introdução: como classificar riscos e clientes

    Negociando mercados de LSM e FSM

    Relações precárias entre mercado e Estado

    Definindo o risco e o preço

    Símbolos de violência e proteção

    5. As faces de Jano

    Introdução: inclusão ambígua

    Corretores desgraçados

    Terceirizando para a comunidade

    Burocracias da exclusão

    Os comunicados de sinistro de Joyce

    Reproduzindo a desigualdade

    6. O encantamento das finanças abstratas

    Introdução: uma burocracia que toma conta

    O que atuários acham que seus clientes acham

    Escapando das sociedades funerárias

    Vizinhos agressivos

    Aliviando os grilhões da socialidade

    7. Transformando cooperativas em

    Introdução: quebrar as associações?

    Sob e fora de controle: conhecendo os donos dos veículos fretados

    Uma história de solidariedade violenta

    A financeirização por meio do Recap

    Criando novas desigualdades

    8. A morte como um

    Introdução: cuidado e conflito

    Certificando-se da morte alheia

    Não é nada pessoal

    Parentes imorais, especialmente pais e mães

    As moralidades das solidariedades

    9.CONCLUSÃO: IRONIAS DA SOLIDARIEDADE

    Do neoliberalismo à ironia

    Solidariedade e redistribuição

    A solidariedade no cuidado e no conflito

    Solidariedade e abstração

    Índice de nomes

    Referências

    Prefácio à edição brasileira

    A presente etnografia examina o modo como as companhias de seguros da África do Sul começaram a disponibilizar produtos de seguros para a população africana predominantemente pobre. Diversas questões me motivaram a realizar este estudo: por que as companhias de seguro, de maneira proativa, começaram a comercializar apólices de seguros para africanos que no passado, durante o apartheid, eram frequentemente ignorados? Quais foram os desafios econômicos, políticos e técnicos com os quais as companhias de seguros se depararam e de que maneiras tentaram enfrentá-los? Quais eram as expectativas e experiências que os clientes africanos residentes nas townships da Cidade do Cabo possuíam com relação às recém-disponibilizadas apólices de seguro de vida, de desemprego, de fundos de pensão e de automóveis? Primeiro de tudo, por que motivo adquiriam essas apólices? Como comunicavam sinistros e se relacionavam com corretores e procedimentos burocráticos? Este livro também situa os seguros em um contexto social mais amplo: de que maneiras os seguros mudaram as responsabilidades das pessoas umas para com as outras? Quando comecei este projeto, eu queria entender o modo como os seguros privados vão sendo integrados à vida cotidiana; o modo como os seguros transformam-se e tornam-se parte das redes de solidariedade entre migrantes, vizinhos e parentes.

    Essa etnografia demonstra como os seguros se tornaram parte da organização da vida dos africanos, e do povo xossa em especial, que vivem nas townships da Cidade do Cabo. A expansão do mercado de seguros para a população africana precisa ser situada no contexto da história do apartheid. Durante a segunda metade do século XX, a África do Sul foi governada por um sistema de discriminação e segregação racial institucionalizada. Os africanos eram afastados à força de cidades como a Cidade do Cabo e forçados a viver em bantustões rurais. Na Cidade do Cabo eram vigentes políticas racistas adicionais, o que marginalizava os africanos ainda mais do que em outras partes do país. O apartheid negava aos africanos mesmo os direitos de cidadania mais básicos e também levava, conforme demonstrarei, a que estes não fossem vistos como clientes em potencial para serviços financeiros. Durante o apartheid, o setor financeiro, bem como muitos outros setores, em larga medida, ignorou os africanos como clientes em potencial. Isso começou a mudar quando o apartheid terminou, com as primeiras eleições democráticas, em 1994. O governo implementou leis e medidas que encorajavam, e por vezes mesmo forçavam, os bancos e as companhias de seguros a disponibilizarem serviços para os africanos. A inclusão financeira de todos os sul-africanos, e não apenas da minoria branca, foi vista como um aspecto importante da democratização e da cidadania. Uma das razões para a comercialização de apólices nas townships era a tentativa de superação das desigualdades raciais e econômicas na África do Sul.

    Com uma infraestrutura financeira e legal bem desenvolvida, a África do Sul está na dianteira da financeirização no sul global. A dinâmica que a presente etnografia examina diz respeito a diversos fenômenos globais, tais como as desigualdades raciais e econômicas, a urbanização e as disputas sobre a democratização, questões que não são alheias ao Brasil. Tento explicar o sofrimento, a violência e o conflito da perspectiva da vida cotidiana, e não da perspectiva de mercados e finanças abstratas e invisíveis. Defino a financeirização como um processo por meio do qual produtos, serviços e tecnologias financeiras complexas vão permeando cada vez mais o dia a dia. A financeirização significa que a economia vai se tornando mais e mais integrada a mercados financeiros impessoais, abstratos e complexos técnica e legalmente. Uma questão importante é a de como os produtos financeiros podem ser tornados acessíveis para pessoas que vivem na pobreza. Como dão conta de contratar seguros, e como as companhias tentam tornar seguros e outros serviços financeiros disponíveis e a preços acessíveis? As desigualdades locais e globais afetam diretamente a capacidade das pessoas de mitigar riscos coletivamente, já que as finanças podem tanto aumentar quanto enfrentar tais desigualdades. Qual o papel das desigualdades econômicas e raciais na disposição e na capacidade de compartilhar riscos coletivamente por meio de produtos de seguros comerciais? Ainda outras questões dizem respeito a processos de urbanização acelerada no sul global. Uma característica importante da urbanização é a de que as redes de relações sociais das pessoas (de parentesco, vizinhança, associações voluntárias) mudam, o que cria novas formas de cuidado mútuo em caso de adversidades. Ao mesmo tempo, na maior parte do sul global, a seguridade social proporcionada pelo Estado é limitada e precária. De que modo as companhias financeiras e seus serviços mudam essas redes de seguridade social? De que modo os serviços comerciais se cruzam com as limitações da seguridade social, tal como proporcionada pelo Estado? Essas questões são centrais para a compreensão da financeirização no sul global.

    O estudo etnográfico da financeirização representa [uma] abordagem necessariamente fragmentada da vida social, na qual o estudo intensivo de um fragmento é usado para se chegar à visão de um todo mais amplo.[1] Os fragmentos que dão forma aos seguros nos levam ao modo como foram comercializados no contexto da democratização; também nos levam às impressões dos trabalhadores do setor financeiro sobre seus clientes africanos; mostram como essas impressões influenciam o planejamento das apólices de seguro e a própria venda de apólices de porta em porta, com os corretores por vezes criando temores com relação ao futuro. Outros fragmentos revelam os obstáculos administrativos enfrentados pelos clientes ao comunicar sinistros, por exemplo após a morte de um membro da família. Mostram como uma ampla variedade de associações (igrejas, sociedades funerárias, associações de transportes fretados, grupos de moradores da vizinhança) começam a cooperar com as companhias de seguros, o que por vezes traz consequências dramáticas. Ainda outros fragmentos proporcionam acesso a transformações nas redes de parentesco. Mostram como os seguros ajudam as pessoas a cuidar umas das outras, mas também produzem tensões sociais, que ganham expressão por meio de novos tipos de suspeitas envolvendo feitiçaria.

    Tal abordagem fragmentária é própria a um estudo da financeirização que se pretenda holístico. A abordagem etnográfica em questão produz um argumento tanto empírico como teórico sobre o modo como surgem as conexões entre produtos e serviços financeiros complexos que estão integrados a mercados financeiros globais e ao mesmo tempo fazem parte da vida cotidiana das pessoas. Em centros econômicos espalhados pelo mundo, profissionais criam novos instrumentos e tecnologias financeiras, comercializam produtos que mitigam riscos, mas também possibilitam a empresas que tirem vantagem em cima da adversidade alheia. Minha abordagem etnográfica aqui busca levar a sério as capacidades desses profissionais e ao mesmo tempo mostrar o que a financeirização significa para as pessoas que tanto estão integradas ao capitalismo global quanto são marginalizadas por ele.

    Em uma conferência organizada por Deborah James na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, fiz uma apresentação sobre alguns dos problemas que os clientes enfrentavam com relação aos seguros. Baseado em meu trabalho de campo, expliquei a maneira pela qual a estrutura de remuneração da seguradora diminuía os custos operacionais, enquanto, ao mesmo tempo, também estimulava os corretores a enganarem seus clientes. Dei exemplos de como as companhias de seguros fizeram experimentos com novos modelos organizacionais que buscavam tornar os seguros mais acessíveis. Porém, esses modelos por vezes também impediam os clientes de conseguirem comunicar sinistros adequadamente, e assim poderiam até mesmo levar a situações violentas nas townships. As experiências dos clientes com os seguros eram kafkianas em certos casos, e apresentei algumas de suas severas consequências financeiras, políticas, emocionais e sociais. Um dos atuários que estava presente na conferência me perguntou por que então as pessoas contratavam as apólices, já que havia tantos exemplos e histórias sobre os problemas que poderiam causar. A questão não fora feita para diminuir esses problemas, mas, ao invés disso, ressaltava o que penso ser uma questão teórica fundamental: por que as pessoas tomam decisões que parecem ir contra seus próprios interesses?

    Há um consenso considerável na antropologia econômica de que o modelo do homo economicus é falho. Antropólogos e sociólogos ressaltaram o modo como as ideologias e instituições neoliberais levam a intersubjetividades particulares que subjugam as pessoas às forças disciplinadoras do mercado. Elas contribuíram para nosso entendimento de como o capitalismo global cria formas de governo que afetam profundamente a vida das pessoas. Ao mesmo tempo, uma perspectiva que situa os processos do neoliberalismo no centro da análise corre o risco de menosprezar a capacidade de ação das pessoas, mesmo quando vivem em circunstâncias precárias. O desafio que a presente etnografia enfrenta é o de como teorizar as decisões tomadas pelas pessoas sem deixar de considerar as múltiplas formas de desigualdade que dão forma a suas vidas, e sem cair nas armadilhas de abordagens como o homo economicus ou a culpa é do neoliberalismo. Essa questão também foi inspirada pelo fato de que descobri empiricamente que a lente neoliberal era insuficiente para visualizar a economia política da África do Sul. A África do Sul é em diversos sentidos um Estado desenvolvimentista, no qual o governo, como parte da democratização, tentava controlar a economia. O Estado exerceu influência considerável sobre o modo como o seguro foi comercializado para os africanos. Ademais, o trabalho de campo revelou como as pessoas avaliavam os seguros em comparação com os problemas que enfrentavam em suas redes de apoio mútuo compostas por vizinhos, companheiros de migração ou parentes. As pessoas frequentemente sabiam da existência de problemas com os seguros, mas haviam passado por experiências com outras formas de solidariedade também carregadas de tensões e problemas. Quando contratavam seguros, tratava-se por vezes de tentativas de lidar melhor com as responsabilidades que tinham para com os outros, bem como com os conflitos que faziam parte de seus arranjos de cuidado.

    Descobri que a África do Sul estava na dianteira da financeirização no sul global, mas também que não consistia em um exemplo típico de governança neoliberal. Para entender as decisões das pessoas nesse contexto específico, senti que tinha de desenvolver outro tipo de abordagem das finanças. Assumindo uma postura crítica com relação ao modelo focado no neoliberalismo, apresento aqui explicações alternativas focadas na financeirização. Essas explanações podem também servir de inspiração para estudos a respeito do Brasil, por conta de seu foco na solidariedade. Os seguros ajudam as pessoas a superarem as adversidades, e são, ao mesmo tempo, uma forma de solidariedade situada dentro do mercado. Inspirado pelo pragmatismo de Rorty, desenvolvi uma abordagem irônica da solidariedade centrada em como ela sempre contém cuidado e crueldade. Considero a financeirização por meio dos seguros também como uma forma de cuidado e violência. O seguro é as duas coisas ao mesmo tempo. Por meio dessa abordagem, tento entender como as pessoas lutam por algo melhor, em sentido não apenas material. As pessoas tentam melhorar de vida, seguir suas aspirações, remodelar seus valores e responsabilidades. Elas possuem anseios e temores, querem se tornar tipos específicos de pessoas e tentam produzir tipos específicos de relações e cooperações. Uma análise irônica dos seguros e de outras formas de solidariedade reconhece as desigualdades que fazem parte das finanças e ao mesmo tempo nos ajuda a entender as decisões que as pessoas tomam, decisões estas que criam soluções e problemas ao mesmo tempo; que são avaliadas tanto positiva como negativamente.

    Essas ironias estão sempre presentes e podem ser encontradas em qualquer tipo de solidariedade. A solidariedade dá ensejo a formas particulares de cuidado e ao mesmo tempo introduz crueldades específicas. Neste livro, sugiro um modo de analisar o cuidado e a crueldade como dois lados da mesma moeda e revelar como tais dinâmicas dependem de circunstâncias históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais específicas. Desse modo, este livro faz uma defesa teórica de que as ironias da solidariedade estão situadas no centro da análise dos seguros e da financeirização.

    Van der Veer (2016, p. 9).

    1 Introdução

    Com o fim do apartheid em 1994, as companhias de seguro da África do Sul rapidamente estabeleceram departamentos específicos voltados para as classes baixa e média baixa. Algumas dessas companhias abriram escritórios em townships[2] habitadas por africanos e mestiços, além de contratarem corretores destas áreas.[3] Eles visitam pessoas em seus lares, abordam-nas em pontos de táxi e estações de trem e fazem apresentações em escolas, delegacias de polícia, centros médicos e mesmo bases militares. Corretores de seguros montam seus retroprojetores em salas de reuniões para descrever seus produtos e os benefícios que trazem. Vendem principalmente seguros funerários, além de outros produtos como seguros resgatáveis, fundos de aposentadoria ou apólices que cobrem custos dos estudos de filhos ou netos. Vinte anos atrás não se ouvia falar de apresentações como estas, mas hoje elas acontecem com regularidade e frequência, a ponto de ter se tornado comum que corretores de seguros apresentem seus produtos em escolas locais em torno de uma vez por mês.

    O setor de seguros sempre foi forte na África do Sul, com a maior parte das companhias estando sediadas na Cidade do Cabo. Contudo, até 1994, quando ocorreram as primeiras eleições democráticas do país, pouca atenção havia sido dada à população africana, que é comparativamente mais pobre. Desde então, as companhias de seguro criaram novas apólices que tinham como alvo essa população mais pobre, tendo expandido sua infraestrutura para incluir clientes dessas faixas de renda. A maioria dessas companhias era de origem sul-africana, como a Liberty, a Sanlam, e o Momentum Group, todas listadas na bolsa de valores de Joanesburgo. A Old Mutual, apesar de estar listada na bolsa de valores de Londres, também é considerada como sendo sul-africana, por ter sido fundada no país em 1845. O mercado de seguros também inclui seguradoras internacionais, como a Allianz.[4]

    Essas iniciativas atraíram milhões de novos clientes sul-africanos, o que fez com que as companhias de seguro voltassem os olhos para o mercado global. Elas queriam promover os produtos, tecnologias e serviços que haviam sido desenvolvidos na África do Sul para o resto do continente, bem como para os mercados emergentes dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Na tentativa de ter acesso a estes e a outros novos mercados, a África do Sul se juntou ao bloco em 2010,[5] que passou a ser chamado de BRICS.

    Além dessas expectativas comerciais, os novos produtos financeiros para novos mercados eram também fruto de motivações políticas. Quando o apartheid terminou em 1994, Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente democraticamente eleito, e o Congresso Nacional Africano (CNA[6] [ANC, em inglês, sigla para African National Congress]), cujas raízes remontam à luta contra o apartheid, chegou ao poder pelo voto. Em conjunto com o objetivo de superar as desigualdades raciais, o CNA enfatizava que o setor financeiro havia ignorado os africanos por tempo demais. Implementaram então uma ampla gama de regulamentações com o intuito de tornar o setor financeiro racialmente inclusivo. As companhias financeiras foram compelidas a um esforço conjunto de oferecer serviços financeiros em maior número e qualidade para a população predominantemente africana. O fornecimento de serviços financeiros às classes baixa e média levou a um marketing mais agressivo destes produtos de seguros. As companhias instalaram novas subsidiárias para entrar nesse novo mercado, tanto na Cidade do Cabo como por toda a África do Sul, abrindo novos escritórios nas townships, a partir dos quais poderiam vender produtos de seguros à população africana e pobre. Elas venderam produtos e seguros em cooperação com supermercados locais ou funerárias, além de outras lojas e escritórios. Somando-se a isso, criaram laços com grupos de canto, associações de moradores e muitos outros grupos e organizações, por meio dos quais poderiam vender seus produtos.

    A presença crescente dos seguros nas townships da Cidade do Cabo ficou claramente visível por meio da publicidade. Em Langa, uma das mais velhas townships africanas da Cidade do Cabo, vi um anúncio de seguro funerário nas instalações de uma escola primária. Ele consistia no nome e no logotipo da seguradora funerária e dizia "A gente tem zonke bonke, o que pode ser aproximadamente traduzido como A gente tem alguma coisa para todo mundo". Acima do anúncio havia uma segunda placa com o nome da escola primária, que era bem menor, quase invisível em comparação com a placa do seguro. Fiquei impressionado com o fato de que o anúncio de seguro funerário era aproximadamente vinte vezes maior do que a placa com o nome da escola primária. A combinação desconcertante de seguro funerário e escola infantil demonstra claramente a proeminência assumida pelos seguros funerários. Uma pesquisa em forma de questionário que apliquei nas townships da Cidade do Cabo revelou que as tentativas das companhias de seguro de entrar nesses mercados haviam alcançado sucesso considerável (darei mais detalhes desta pesquisa adiante). Setenta e cinco por cento dos entrevistados possuiam pelo menos uma apólice de seguro, ao passo que alguns deles chegavam a ter nove delas. Estas eram o mais das vezes seguros funerários, bem como Fundos de Seguro-desemprego (UIF [sigla em inglês para Unemployment Insurance Fund – N.T.]), planos de saúde, fundos de pensão e seguros de crédito (ver Tabela 1.1). Eu me perguntava: será que o cartaz servia para lembrar os pais de suas responsabilidades para com seus dependentes? De que modo tais produtos afetam as relações entre pais e filhos?

    Os cartazes também me fizeram levar em conta a relação entre Estado e mercado. Será que o tamanho dos cartazes reflete de alguma maneira a proporção entre o poder e a presença do Estado e do mercado em townships como Langa? Seria o Estado, nesse caso representado pela escola, tão pequeno e quase invisível em comparação com o mercado aqui representado pelo anúncio de seguros? Estariam os moradores submetidos a forças de mercado tão poderosas a ponto de conquistar os pátios de escola? Ou haveria outros modos, talvez mais sutis, de entender como os produtos financeiros mudam as vidas de seus clientes?

    Este livro irá analisar cuidadosamente o que motivou as companhias de seguro a começarem a vender seus produtos para pessoas que vivem em circunstâncias de risco e extrema precariedade, além do modo como tais estratégias de mercado formaram parte de relações muito específicas entre o Estado democrático pós-apartheid e o setor financeiro. O livro explora as razões pelas quais clientes africanos vivendo nas townships da Cidade do Cabo adquiriam produtos de seguros, o modo como estes se tornaram parte de suas maneiras de lidar com incertezas e relações sociais, bem como as razões pelas quais compravam esses seguros, mesmo sabendo que as companhias nem sempre ajudavam a superar dificuldades. Demonstrarei como as apólices de seguro por vezes exacerbam os problemas, agravam a insegurança e intensificam conflitos às vezes violentos no seio de comunidades e famílias.

    Este livro irá explicar como tais mudanças profundas refletem as ironias da solidariedade. Os seguros podem ser entendidos como uma forma de solidariedade no sentido de que as pessoas fazem um fundo coletivo de dinheiro voltado para superar adversidades individuais. É um tipo de apoio mútuo, ainda que localizado no centro de um sofisticado mercado financeiro. Definir os seguros como um tipo de solidariedade torna possível fazer um novo tipo de pergunta: quando as pessoas contratam seguros, como esse tipo específico de solidariedade afeta outras solidariedades? Como eles mudam a solidariedade entre vizinhos ou familiares? Como os seguros complementam ou substituem solidariedades baseadas no Estado, tais como a seguridade social? Como a paisagem formada por todas as formas de solidariedade, cada uma com seus limites, hierarquias, pretensões e responsabilidades específicas, se altera quando os seguros entram em cena?

    A ironia é um modo de usar a linguagem no qual se diz uma coisa cujo sentido é seu oposto exato. Durante minha primeira visita à África do Sul, em 1995, tive uma conversa bastante irônica enquanto andava de carro. Meu passageiro, um ativista negro, estava se gabando de como a África do Sul era grandiosa, elogiando sua bela natureza, seu vinho excelente, seus grandes animais selvagens etc. Então ele

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