Ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da África do Sul pós-apartheid
De Erik Bähre
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Ironias da solidariedade - Erik Bähre
EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Editora da Universidade Federal de São Carlos
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13565-905 - São Carlos, SP, Brasil
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folha 2© 2020, Erik Bähre
© 2023, EdUFSCar
Capa/Projeto Gráfico
Vitor Massola Gonzales Lopes
Imagens da capa
Reprodução/Pexels
Tradução
Tauan Tinti
Preparação e revisão de texto
Marcelo Dias Saes Peres
Andresa Ferreira
Isabela Freitas
Michelle Veloso
Editoração eletrônica
Alyson Tonioli Massoli
Marcela Rauter de Oliveira
Editoração eletrônica (eBook)
Maria Fernanda Borges
Coordenadoria de administração, finanças e contratos
Fernanda do Nascimento
Livro publicado em associação com o International African Institute
O objetivo principal do International African Institute é promover o estudo acadêmico da África, em especial de suas sociedades, culturas e linguagens em transformação. Fundado em 1926 e seriado em Londres, o instituto dá suporte a uma gama de publicações,incluindo a revista acadêmica Africa. www.internationalafricaninstitute.org. Esta tradução de Ironies of Solidarity: Insurance and Financialization of Kindship in South Africa
é publicada mediante acordo com Bloomsbury Publishing Inc.;
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
Bähre, Erik.
B151i ironias da solidariedade: cuidado e crueldade na financeirização da Africa do Sul pós-apartheid/ Erik Bähre - São Carlos: EdUFSCar, 2023 - documento eletrônico - 281p.
ePub: 1.2 MB.
ISBN: 978-85-7600-598-8
1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Desigualdade. 4. Violência. I. Título.
CDD – 306 (20a)
CDU – 39
Bibliotecário responsável: Luciana T. R. V. Sebin - CRB/86031
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.
Agradecimentos
Se não fosse pelos seguros, este livro não teria sido escrito. E se não fosse pelo modo como as companhias de seguros da África do Sul expandiram seus mercados, eu não poderia ter estudado o modo como os seguros se relacionaram à democratização e se tornaram parte das vidas cotidianas de pessoas vivendo nas townships da Cidade do Cabo. Minha primeira pesquisa na região se deu em 1995, um ano após o marco sul-africano das primeiras eleições democráticas. Na época, os seguros estavam virtualmente ausentes nas townships, e as pessoas se apoiavam em vizinhos, parentes ou em outras redes de relações sociais para superar adversidades. Isso mudou dramaticamente ao longo dos vinte anos seguintes, conforme as companhias de seguros começaram a desenvolver produtos voltados para os africanos. Hoje em dia, os seguros se tornaram uma parte do cotidiano que é tanto muito importante quanto discreta.
Há também um motivo pessoal para dizer que este livro provavelmente não teria sido escrito se não fosse pelos seguros. Quando eu estava prestes a começar o trabalho de campo, fiquei muito doente. Foi meu seguro que pagou pelo tratamento de custo bastante elevado. Duvido que eu teria sobrevivido sem um seguro, e sem dúvida as despesas médicas teriam destruído financeiramente a mim e a minha família, com consequências devastadoras, especialmente para meus filhos. Por esse motivo, estou grato a pessoas que nunca conheci e nunca irei conhecer. Apesar de não nos conhecermos, eles ajudaram a mim e a minha família a superar uma adversidade que ameaçou minha vida. Reconhecer isso pode parecer um gesto deslocado. Não se trata de relações pessoais ou obrigações sociais. E não se trata nem de caridade, já que meu seguro consiste em obrigações contratuais com uma companhia privada. Mas, a despeito de tudo isso, estou grato pela existência dessa forma abstrata e de larga escala de solidariedade, e que uma companhia de seguros torne possível esse tipo de solidariedade, e que o Estado a regule de modo que haja disponibilidade de dinheiro para me curar e dar assistência a outros.
Tenho profunda gratidão também para com os habitantes de Indawo Yoxolo, Tembani e outras townships da Cidade do Cabo – por nossas conversas, por me convidarem para eventos, por compartilharem aspectos importantes de suas vidas comigo. Valorizo especialmente as reflexões e percepções que me proporcionaram com relação a episódios menos benevolentes e heroicos de suas vidas – aspectos que não foram higienizados por uma linguagem que diria respeito a como as coisas deveriam ser, mas que revelaram como de fato a vida se dá. Aprecio em grande medida o modo como as pessoas lidaram com nossas diferenças, que estão tão profundamente entranhadas na história da África do Sul. Ao longo dos anos, seu mundo se tornou parte do meu mundo e mudou o modo como vejo a vida. Esse enriquecimento vai muito além do livro que se tem em mãos. Edith Moyikwa e Vido Sam deram um apoio indispensável durante o trabalho de campo. Sou muito grato a Edith por cuidar de minha segurança e por ser uma professora maravilhosa, paciente e divertida.
Agradeço a Rob Thomson, por ter me ensinado aspectos básicos do conhecimento atuário. A Sociedade Atuária da África do Sul e a Atuários Sem Fronteiras me ajudaram atenciosamente a organizar os encontros com atuários, além de distribuírem o questionário online entre seus membros. Sou grato aos atuários e demais trabalhadores do setor de seguros da África do Sul por terem me mostrado as questões políticas complexas e sensíveis com as quais têm de lidar.
Agradeço a meus colegas e ao quadro de profissionais do Instituto de Antropologia Cultural e Sociologia do Desenvolvimento na Universidade Leiden pelo apoio a meu trabalho e por nossos debates críticos sobre a etnografia, a antropologia econômica, os estudos africanos e a antropologia em geral.
Meus profundos agradecimentos vão para Antonádia Borges, João de Pina Cabral, Maghiel van Crevel, Tamás Csikós, Marleen Dekker, Ton Dietz, Jan-Bart Gewald, Fabíola Gomes, Maia Green, Chris Hann, Keith Hart, Debora James, Don Kalb, Anouk de Koning, Sabine Luning, Marianne Maeckelbergh, Bettina Mahlert, Amade M’charek, Isak Niehaus, Peter Pels, Yolisa Pikie, Daivi Rodima-Taylor, Hadrien Saiag, Günther Schlee, Sylvia Terpe, Bonno Thoden van Velzen, Cees van der Waal, Jörg Wiegratz e Ilana van Wyk. Nossas conversas críticas e estimulantes contribuíram para dar forma às ideias e métodos deste estudo, ajudando a definir seus limites. Por vezes comentários muito casuais, feitos entre bebidas ou durante uma caminhada, tiveram profundos impactos.
Este projeto recebeu financiamento dos seguintes órgãos: o NWO, que me permitiu trabalhar no AMIDSt, atual AISSR, na Universidade de Amsterdã; o ESRC, pela participação no projeto de Deborah James, desenvolvido na London School of Economics, sobre economias populares na África do Sul; e o Conselho de Pesquisa Europeia (ERC), por meio do Programa de Pesquisa e Inovação Horizonte 2020 (processo n. 682467).
Minha bolsa no Instituto de Estudos Avançados dos Países Baixos (NIAS) me proporcionou tempo para pensar, ler, escrever e ter conversas inspiradoras com acadêmicos envolvidos com objetos de estudo similares, mas inseridos em tradições disciplinares distintas. As conversas animadas com Tazuko van Berkel e seus comentários inteligentes sobre o manuscrito que entreguei galvanizaram uma abordagem mais filosófica da solidariedade e do dinheiro.
Nikkie Buskermolen, Tim van de Meerendonk, Irene Moretti, Nikki Mulder e Robert Ross leram cuidadosamente uma versão inicial do manuscrito e fizeram comentários relevantes que me ajudaram a expor melhor meus argumentos e a escrever um livro melhor.
Agradeço a Aaron Gundogan e a Matthijs Kallenberg por me ajudarem com a bibliografia.
Sou grato aos editores do International Africa Institute, da Zed Books e da EdUFScar por seus comentários críticos e construtivos ao longo do processo de publicação e aos pareceristas anônimos, que fizeram sugestões excelentes. Agradeço à editora-chefe Stephanie Kitchen, por garantir um processo de publicação sem solavancos, a Jonathan Hoare pela revisão e a Rohan Bolton pela criação do índice de nomes e assuntos. Quero expressar também minha gratidão a todos os que tornaram possível a edição brasileira e agradecer à EdUFSCar por seu apoio e cooperação. Agradeço em especial Deborah Fromm, Gabriel Feltran, Wilson Alves-Bezerra, Fernanda do Nascimento e Fernanda de Gobbi. E muito obrigado também a Tauan Tinti, pela tradução cuidadosa do livro para o português.
Minha mais profunda gratidão vai para Esther, Ruben e Nina, por ajustarem suas vidas e me darem o espaço necessário para trabalhar ao longo de dias e horas, que idealmente seriam para a vida em família, e por aceitarem a ausência de um marido e de um pai durante o período do trabalho de campo.
Este livro examina as ironias da solidariedade em relação ao parentesco e à dependência e mostra como a solidariedade pode por vezes ser difícil. É possível que os leitores se perguntem se essa análise e o papel central da ironia foram inspiradas por minha própria biografia e histórico familiar. Fiquem tranquilos: é claro que não!
Du kannst Dich zurückhalten von den Leiden der Welt, das ist Dir freigestellt und entspricht Deiner Natur, aber vielleicht ist gerade dieses Zurückhalten das einzige Leid, das Du vermeiden könntest.
Você pode se retirar do sofrimento do mundo, você tem permissão para fazê-lo, e é algo que estaria de acordo com sua natureza, mas talvez essa própria retração seja o único sofrimento que você poderia ter evitado.
Franz Kafka (escritor e funcionário do setor de seguros)
Sumário
Prefácio à edição brasileira
1. Introdução
A financeirização na África
Capturada no contradiscurso
Cidade do Cabo: cidade da esperança?
Desenho geral e argumentos principais
2. Uma análise irônica
Conflitos na dádiva
A solidariedade no mercado
A ironia na racionalidade e na solidariedade
A ironia no método
3. Esperança e redistribuição
Introdução: do trabalho à redistribuição
Investimento em infraestrutura [Service delivery] e conflitos comunitários
Empoderamento Econômico Negro e tensões raciais
Auxílios sociais e tensões entre gerações
Rezando pela redistribuição
Redistribuição tensa
4. Penetrando num novo mercado
Introdução: como classificar riscos e clientes
Negociando mercados de LSM e FSM
Relações precárias entre mercado e Estado
Definindo o risco e o preço
Símbolos de violência e proteção
5. As faces de Jano
Introdução: inclusão ambígua
Corretores desgraçados
Terceirizando
para a comunidade
Burocracias da exclusão
Os comunicados de sinistro de Joyce
Reproduzindo a desigualdade
6. O encantamento das finanças abstratas
Introdução: uma burocracia que toma conta
O que atuários acham que seus clientes acham
Escapando das sociedades funerárias
Vizinhos agressivos
Aliviando os grilhões da socialidade
7. Transformando cooperativas em
Introdução: quebrar as associações?
Sob e fora de controle: conhecendo os donos dos veículos fretados
Uma história de solidariedade violenta
A financeirização por meio do Recap
Criando novas desigualdades
8. A morte como um
Introdução: cuidado e conflito
Certificando-se da morte alheia
Não é nada pessoal
Parentes imorais, especialmente pais e mães
As moralidades das solidariedades
9.CONCLUSÃO: IRONIAS DA SOLIDARIEDADE
Do neoliberalismo à ironia
Solidariedade e redistribuição
A solidariedade no cuidado e no conflito
Solidariedade e abstração
Índice de nomes
Referências
Prefácio à edição brasileira
A presente etnografia examina o modo como as companhias de seguros da África do Sul começaram a disponibilizar produtos de seguros para a população africana predominantemente pobre. Diversas questões me motivaram a realizar este estudo: por que as companhias de seguro, de maneira proativa, começaram a comercializar apólices de seguros para africanos que no passado, durante o apartheid, eram frequentemente ignorados? Quais foram os desafios econômicos, políticos e técnicos com os quais as companhias de seguros se depararam e de que maneiras tentaram enfrentá-los? Quais eram as expectativas e experiências que os clientes africanos residentes nas townships da Cidade do Cabo possuíam com relação às recém-disponibilizadas apólices de seguro de vida, de desemprego, de fundos de pensão e de automóveis? Primeiro de tudo, por que motivo adquiriam essas apólices? Como comunicavam sinistros e se relacionavam com corretores e procedimentos burocráticos? Este livro também situa os seguros em um contexto social mais amplo: de que maneiras os seguros mudaram as responsabilidades das pessoas umas para com as outras? Quando comecei este projeto, eu queria entender o modo como os seguros privados vão sendo integrados à vida cotidiana; o modo como os seguros transformam-se e tornam-se parte das redes de solidariedade entre migrantes, vizinhos e parentes.
Essa etnografia demonstra como os seguros se tornaram parte da organização da vida dos africanos, e do povo xossa em especial, que vivem nas townships da Cidade do Cabo. A expansão do mercado de seguros para a população africana precisa ser situada no contexto da história do apartheid. Durante a segunda metade do século XX, a África do Sul foi governada por um sistema de discriminação e segregação racial institucionalizada. Os africanos eram afastados à força de cidades como a Cidade do Cabo e forçados a viver em bantustões rurais. Na Cidade do Cabo eram vigentes políticas racistas adicionais, o que marginalizava os africanos ainda mais do que em outras partes do país. O apartheid negava aos africanos mesmo os direitos de cidadania mais básicos e também levava, conforme demonstrarei, a que estes não fossem vistos como clientes em potencial para serviços financeiros. Durante o apartheid, o setor financeiro, bem como muitos outros setores, em larga medida, ignorou os africanos como clientes em potencial. Isso começou a mudar quando o apartheid terminou, com as primeiras eleições democráticas, em 1994. O governo implementou leis e medidas que encorajavam, e por vezes mesmo forçavam, os bancos e as companhias de seguros a disponibilizarem serviços para os africanos. A inclusão financeira de todos os sul-africanos, e não apenas da minoria branca, foi vista como um aspecto importante da democratização e da cidadania. Uma das razões para a comercialização de apólices nas townships era a tentativa de superação das desigualdades raciais e econômicas na África do Sul.
Com uma infraestrutura financeira e legal bem desenvolvida, a África do Sul está na dianteira da financeirização no sul global. A dinâmica que a presente etnografia examina diz respeito a diversos fenômenos globais, tais como as desigualdades raciais e econômicas, a urbanização e as disputas sobre a democratização, questões que não são alheias ao Brasil. Tento explicar o sofrimento, a violência e o conflito da perspectiva da vida cotidiana, e não da perspectiva de mercados e finanças abstratas e invisíveis. Defino a financeirização como um processo por meio do qual produtos, serviços e tecnologias financeiras complexas vão permeando cada vez mais o dia a dia. A financeirização significa que a economia vai se tornando mais e mais integrada a mercados financeiros impessoais, abstratos e complexos técnica e legalmente. Uma questão importante é a de como os produtos financeiros podem ser tornados acessíveis para pessoas que vivem na pobreza. Como dão conta de contratar seguros, e como as companhias tentam tornar seguros e outros serviços financeiros disponíveis e a preços acessíveis? As desigualdades locais e globais afetam diretamente a capacidade das pessoas de mitigar riscos coletivamente, já que as finanças podem tanto aumentar quanto enfrentar tais desigualdades. Qual o papel das desigualdades econômicas e raciais na disposição e na capacidade de compartilhar riscos coletivamente por meio de produtos de seguros comerciais? Ainda outras questões dizem respeito a processos de urbanização acelerada no sul global. Uma característica importante da urbanização é a de que as redes de relações sociais das pessoas (de parentesco, vizinhança, associações voluntárias) mudam, o que cria novas formas de cuidado mútuo em caso de adversidades. Ao mesmo tempo, na maior parte do sul global, a seguridade social proporcionada pelo Estado é limitada e precária. De que modo as companhias financeiras e seus serviços mudam essas redes de seguridade social? De que modo os serviços comerciais se cruzam com as limitações da seguridade social, tal como proporcionada pelo Estado? Essas questões são centrais para a compreensão da financeirização no sul global.
O estudo etnográfico da financeirização representa [uma] abordagem necessariamente fragmentada da vida social, na qual o estudo intensivo de um fragmento é usado para se chegar à visão de um todo mais amplo
.[1] Os fragmentos que dão forma aos seguros nos levam ao modo como foram comercializados no contexto da democratização; também nos levam às impressões dos trabalhadores do setor financeiro sobre seus clientes africanos; mostram como essas impressões influenciam o planejamento das apólices de seguro e a própria venda de apólices de porta em porta, com os corretores por vezes criando temores com relação ao futuro. Outros fragmentos revelam os obstáculos administrativos enfrentados pelos clientes ao comunicar sinistros, por exemplo após a morte de um membro da família. Mostram como uma ampla variedade de associações (igrejas, sociedades funerárias, associações de transportes fretados, grupos de moradores da vizinhança) começam a cooperar com as companhias de seguros, o que por vezes traz consequências dramáticas. Ainda outros fragmentos proporcionam acesso a transformações nas redes de parentesco. Mostram como os seguros ajudam as pessoas a cuidar umas das outras, mas também produzem tensões sociais, que ganham expressão por meio de novos tipos de suspeitas envolvendo feitiçaria.
Tal abordagem fragmentária é própria a um estudo da financeirização que se pretenda holístico. A abordagem etnográfica em questão produz um argumento tanto empírico como teórico sobre o modo como surgem as conexões entre produtos e serviços financeiros complexos que estão integrados a mercados financeiros globais e ao mesmo tempo fazem parte da vida cotidiana das pessoas. Em centros econômicos espalhados pelo mundo, profissionais criam novos instrumentos e tecnologias financeiras, comercializam produtos que mitigam riscos, mas também possibilitam a empresas que tirem vantagem em cima da adversidade alheia. Minha abordagem etnográfica aqui busca levar a sério as capacidades desses profissionais e ao mesmo tempo mostrar o que a financeirização significa para as pessoas que tanto estão integradas ao capitalismo global quanto são marginalizadas por ele.
Em uma conferência organizada por Deborah James na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, fiz uma apresentação sobre alguns dos problemas que os clientes enfrentavam com relação aos seguros. Baseado em meu trabalho de campo, expliquei a maneira pela qual a estrutura de remuneração da seguradora diminuía os custos operacionais, enquanto, ao mesmo tempo, também estimulava os corretores a enganarem seus clientes. Dei exemplos de como as companhias de seguros fizeram experimentos com novos modelos organizacionais que buscavam tornar os seguros mais acessíveis. Porém, esses modelos por vezes também impediam os clientes de conseguirem comunicar sinistros adequadamente, e assim poderiam até mesmo levar a situações violentas nas townships. As experiências dos clientes com os seguros eram kafkianas em certos casos, e apresentei algumas de suas severas consequências financeiras, políticas, emocionais e sociais. Um dos atuários que estava presente na conferência me perguntou por que então as pessoas contratavam as apólices, já que havia tantos exemplos e histórias sobre os problemas que poderiam causar. A questão não fora feita para diminuir esses problemas, mas, ao invés disso, ressaltava o que penso ser uma questão teórica fundamental: por que as pessoas tomam decisões que parecem ir contra seus próprios interesses?
Há um consenso considerável na antropologia econômica de que o modelo do homo economicus é falho. Antropólogos e sociólogos ressaltaram o modo como as ideologias e instituições neoliberais levam a intersubjetividades particulares que subjugam as pessoas às forças disciplinadoras do mercado. Elas contribuíram para nosso entendimento de como o capitalismo global cria formas de governo que afetam profundamente a vida das pessoas. Ao mesmo tempo, uma perspectiva que situa os processos do neoliberalismo no centro da análise corre o risco de menosprezar a capacidade de ação das pessoas, mesmo quando vivem em circunstâncias precárias. O desafio que a presente etnografia enfrenta é o de como teorizar as decisões tomadas pelas pessoas sem deixar de considerar as múltiplas formas de desigualdade que dão forma a suas vidas, e sem cair nas armadilhas de abordagens como o homo economicus ou a culpa é do neoliberalismo
. Essa questão também foi inspirada pelo fato de que descobri empiricamente que a lente neoliberal era insuficiente para visualizar a economia política da África do Sul. A África do Sul é em diversos sentidos um Estado desenvolvimentista, no qual o governo, como parte da democratização, tentava controlar a economia. O Estado exerceu influência considerável sobre o modo como o seguro foi comercializado para os africanos. Ademais, o trabalho de campo revelou como as pessoas avaliavam os seguros em comparação com os problemas que enfrentavam em suas redes de apoio mútuo compostas por vizinhos, companheiros de migração ou parentes. As pessoas frequentemente sabiam da existência de problemas com os seguros, mas haviam passado por experiências com outras formas de solidariedade também carregadas de tensões e problemas. Quando contratavam seguros, tratava-se por vezes de tentativas de lidar melhor com as responsabilidades que tinham para com os outros, bem como com os conflitos que faziam parte de seus arranjos de cuidado.
Descobri que a África do Sul estava na dianteira da financeirização no sul global, mas também que não consistia em um exemplo típico de governança neoliberal. Para entender as decisões das pessoas nesse contexto específico, senti que tinha de desenvolver outro tipo de abordagem das finanças. Assumindo uma postura crítica com relação ao modelo focado no neoliberalismo, apresento aqui explicações alternativas focadas na financeirização. Essas explanações podem também servir de inspiração para estudos a respeito do Brasil, por conta de seu foco na solidariedade. Os seguros ajudam as pessoas a superarem as adversidades, e são, ao mesmo tempo, uma forma de solidariedade situada dentro do mercado. Inspirado pelo pragmatismo de Rorty, desenvolvi uma abordagem irônica da solidariedade centrada em como ela sempre contém cuidado e crueldade. Considero a financeirização por meio dos seguros também como uma forma de cuidado e violência. O seguro é as duas coisas ao mesmo tempo. Por meio dessa abordagem, tento entender como as pessoas lutam por algo melhor, em sentido não apenas material. As pessoas tentam melhorar de vida, seguir suas aspirações, remodelar seus valores e responsabilidades. Elas possuem anseios e temores, querem se tornar tipos específicos de pessoas e tentam produzir tipos específicos de relações e cooperações. Uma análise irônica dos seguros e de outras formas de solidariedade reconhece as desigualdades que fazem parte das finanças e ao mesmo tempo nos ajuda a entender as decisões que as pessoas tomam, decisões estas que criam soluções e problemas ao mesmo tempo; que são avaliadas tanto positiva como negativamente.
Essas ironias estão sempre presentes e podem ser encontradas em qualquer tipo de solidariedade. A solidariedade dá ensejo a formas particulares de cuidado e ao mesmo tempo introduz crueldades específicas. Neste livro, sugiro um modo de analisar o cuidado e a crueldade como dois lados da mesma moeda e revelar como tais dinâmicas dependem de circunstâncias históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais específicas. Desse modo, este livro faz uma defesa teórica de que as ironias da solidariedade estão situadas no centro da análise dos seguros e da financeirização.
Van der Veer (2016, p. 9).
1 Introdução
Com o fim do apartheid em 1994, as companhias de seguro da África do Sul rapidamente estabeleceram departamentos específicos voltados para as classes baixa e média baixa. Algumas dessas companhias abriram escritórios em townships[2] habitadas por africanos e mestiços, além de contratarem corretores destas áreas.[3] Eles visitam pessoas em seus lares, abordam-nas em pontos de táxi e estações de trem e fazem apresentações em escolas, delegacias de polícia, centros médicos e mesmo bases militares. Corretores de seguros montam seus retroprojetores em salas de reuniões para descrever seus produtos e os benefícios que trazem. Vendem principalmente seguros funerários, além de outros produtos como seguros resgatáveis, fundos de aposentadoria ou apólices que cobrem custos dos estudos de filhos ou netos. Vinte anos atrás não se ouvia falar de apresentações como estas, mas hoje elas acontecem com regularidade e frequência, a ponto de ter se tornado comum que corretores de seguros apresentem seus produtos em escolas locais em torno de uma vez por mês.
O setor de seguros sempre foi forte na África do Sul, com a maior parte das companhias estando sediadas na Cidade do Cabo. Contudo, até 1994, quando ocorreram as primeiras eleições democráticas do país, pouca atenção havia sido dada à população africana, que é comparativamente mais pobre. Desde então, as companhias de seguro criaram novas apólices que tinham como alvo essa população mais pobre, tendo expandido sua infraestrutura para incluir clientes dessas faixas de renda. A maioria dessas companhias era de origem sul-africana, como a Liberty, a Sanlam, e o Momentum Group, todas listadas na bolsa de valores de Joanesburgo. A Old Mutual, apesar de estar listada na bolsa de valores de Londres, também é considerada como sendo sul-africana, por ter sido fundada no país em 1845. O mercado de seguros também inclui seguradoras internacionais, como a Allianz.[4]
Essas iniciativas atraíram milhões de novos clientes sul-africanos, o que fez com que as companhias de seguro voltassem os olhos para o mercado global. Elas queriam promover os produtos, tecnologias e serviços que haviam sido desenvolvidos na África do Sul para o resto do continente, bem como para os mercados emergentes dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Na tentativa de ter acesso a estes e a outros novos mercados, a África do Sul se juntou ao bloco em 2010,[5] que passou a ser chamado de BRICS.
Além dessas expectativas comerciais, os novos produtos financeiros para novos mercados eram também fruto de motivações políticas. Quando o apartheid terminou em 1994, Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente democraticamente eleito, e o Congresso Nacional Africano (CNA[6] [ANC, em inglês, sigla para African National Congress]), cujas raízes remontam à luta contra o apartheid, chegou ao poder pelo voto. Em conjunto com o objetivo de superar as desigualdades raciais, o CNA enfatizava que o setor financeiro havia ignorado os africanos por tempo demais. Implementaram então uma ampla gama de regulamentações com o intuito de tornar o setor financeiro racialmente inclusivo. As companhias financeiras foram compelidas a um esforço conjunto de oferecer serviços financeiros em maior número e qualidade para a população predominantemente africana. O fornecimento de serviços financeiros às classes baixa e média levou a um marketing mais agressivo destes produtos de seguros. As companhias instalaram novas subsidiárias para entrar nesse novo mercado, tanto na Cidade do Cabo como por toda a África do Sul, abrindo novos escritórios nas townships, a partir dos quais poderiam vender produtos de seguros à população africana e pobre. Elas venderam produtos e seguros em cooperação com supermercados locais ou funerárias, além de outras lojas e escritórios. Somando-se a isso, criaram laços com grupos de canto, associações de moradores e muitos outros grupos e organizações, por meio dos quais poderiam vender seus produtos.
A presença crescente dos seguros nas townships da Cidade do Cabo ficou claramente visível por meio da publicidade. Em Langa, uma das mais velhas townships africanas da Cidade do Cabo, vi um anúncio de seguro funerário nas instalações de uma escola primária. Ele consistia no nome e no logotipo da seguradora funerária e dizia "A gente tem zonke bonke, o que pode ser aproximadamente traduzido como
A gente tem alguma coisa para todo mundo". Acima do anúncio havia uma segunda placa com o nome da escola primária, que era bem menor, quase invisível em comparação com a placa do seguro. Fiquei impressionado com o fato de que o anúncio de seguro funerário era aproximadamente vinte vezes maior do que a placa com o nome da escola primária. A combinação desconcertante de seguro funerário e escola infantil demonstra claramente a proeminência assumida pelos seguros funerários. Uma pesquisa em forma de questionário que apliquei nas townships da Cidade do Cabo revelou que as tentativas das companhias de seguro de entrar nesses mercados haviam alcançado sucesso considerável (darei mais detalhes desta pesquisa adiante). Setenta e cinco por cento dos entrevistados possuiam pelo menos uma apólice de seguro, ao passo que alguns deles chegavam a ter nove delas. Estas eram o mais das vezes seguros funerários, bem como Fundos de Seguro-desemprego (UIF [sigla em inglês para Unemployment Insurance Fund – N.T.]), planos de saúde, fundos de pensão e seguros de crédito (ver Tabela 1.1). Eu me perguntava: será que o cartaz servia para lembrar os pais de suas responsabilidades para com seus dependentes? De que modo tais produtos afetam as relações entre pais e filhos?
Os cartazes também me fizeram levar em conta a relação entre Estado e mercado. Será que o tamanho dos cartazes reflete de alguma maneira a proporção entre o poder e a presença do Estado e do mercado em townships como Langa? Seria o Estado, nesse caso representado pela escola, tão pequeno e quase invisível em comparação com o mercado aqui representado pelo anúncio de seguros? Estariam os moradores submetidos a forças de mercado tão poderosas a ponto de conquistar os pátios de escola? Ou haveria outros modos, talvez mais sutis, de entender como os produtos financeiros mudam as vidas de seus clientes?
Este livro irá analisar cuidadosamente o que motivou as companhias de seguro a começarem a vender seus produtos para pessoas que vivem em circunstâncias de risco e extrema precariedade, além do modo como tais estratégias de mercado formaram parte de relações muito específicas entre o Estado democrático pós-apartheid e o setor financeiro. O livro explora as razões pelas quais clientes africanos vivendo nas townships da Cidade do Cabo adquiriam produtos de seguros, o modo como estes se tornaram parte de suas maneiras de lidar com incertezas e relações sociais, bem como as razões pelas quais compravam esses seguros, mesmo sabendo que as companhias nem sempre ajudavam a superar dificuldades. Demonstrarei como as apólices de seguro por vezes exacerbam os problemas, agravam a insegurança e intensificam conflitos às vezes violentos no seio de comunidades e famílias.
Este livro irá explicar como tais mudanças profundas refletem as ironias da solidariedade. Os seguros podem ser entendidos como uma forma de solidariedade no sentido de que as pessoas fazem um fundo coletivo de dinheiro voltado para superar adversidades individuais. É um tipo de apoio mútuo, ainda que localizado no centro de um sofisticado mercado financeiro. Definir os seguros como um tipo de solidariedade torna possível fazer um novo tipo de pergunta: quando as pessoas contratam seguros, como esse tipo específico de solidariedade afeta outras solidariedades? Como eles mudam a solidariedade entre vizinhos ou familiares? Como os seguros complementam ou substituem solidariedades baseadas no Estado, tais como a seguridade social? Como a paisagem formada por todas as formas de solidariedade, cada uma com seus limites, hierarquias, pretensões e responsabilidades específicas, se altera quando os seguros entram em cena?
A ironia é um modo de usar a linguagem no qual se diz uma coisa cujo sentido é seu oposto exato. Durante minha primeira visita à África do Sul, em 1995, tive uma conversa bastante irônica enquanto andava de carro. Meu passageiro, um ativista negro, estava se gabando de como a África do Sul era grandiosa, elogiando sua bela natureza, seu vinho excelente, seus grandes animais selvagens etc. Então ele