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Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988)
Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988)
Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988)
E-book566 páginas8 horas

Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988)

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Sobre este e-book

O livro Poder constituinte e democracia... contribui, de maneira didática, com informações detalhadas e reflexões diversas, importantes e, ainda até hoje, pouco divulgadas e conhecidas sobre os meandros, as articulações de bastidores utilizadas no Congresso Constituinte, de seus preparativos e de seu produto final: a Constituição Federal de 1988. Pedro Fassoni vai fundo no assunto, sem se deixar levar pelo grande entusiasmo da época, em que muitos grupos políticos e populares viam a Constituição como panaceia para resolver muitos de nossos males. Ao aprofundar suas pesquisas, enfatiza o significado histórico da participação dos movimentos sociais e populares na vida política. A leitura deste livro torna-se imprescindível e obrigatória. Não basta inscrever direitos na Constituição. É urgente efetivá-los.
Amelinha Teles
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de jul. de 2023
ISBN9788528307030
Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988)

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    Poder constituinte e democracia - Pedro Fassoni Arruda

    Capa do livroFrontispício

    © 2023 Pedro Fassoni Arruda. Foi feito o depósito legal.

    Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

    Arruda, Pedro Fassoni

    Poder constituinte e democracia : a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988) / Pedro Fassoni Arruda. - São Paulo : Educ, 2023.

        Bibliografia

        1. Recurso on-line: ePub

        ISBN 978-85-283-0703-0

    Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.

    Acesso restrito: http://pucsp.br/educ

    Disponível no formato impresso: Poder constituinte e democracia : a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988) / Pedro Fassoni Arruda. - São Paulo : Educ, 2023. ISBN 978-85-283-0700-9.

    1. Brasil Assembleia Constituinte (1987-1988). 2. Brasil [Constituição (1988)]. 3. Poder constituinte -Brasil. 4. Direita e esquerda (Ciência política) - Brasil. 5. Movimentos sociais - Aspectos políticos - Brasil. 6. Brasil - Política e governo - 1984-1988. I. Título.

    CDD 342.81023

    342.8103

    320.981

    303.4840981

    Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556

    EDUC – Editora da PUC-SP

    Direção

    Thiago Pacheco Ferreira

    Produção Editorial

    Sonia Montone

    Preparação e Revisão

    Simone Cere

    Editoração Eletrônica

    Gabriel Moraes

    Waldir Alves

    Capa

    Waldir Alves

    Imagem: RafaPress por iStock

    Administração e Vendas

    Ronaldo Decicino

    Produção do e-book

    Waldir Alves

    Revisão técnica do e-book

    Gabriel Moraes

    Rua Monte Alegre, 984 – sala S16

    CEP 05014-901 – São Paulo – SP

    Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558

    E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ

    Prefácio

    Não se constrói a democracia com corpos insepultos!

    (Madres de Plaza de Mayo, 1983)

    Foi motivo de me sentir bastante honrada ser convidada para prefaciar este livro: Poder constituinte e democracia: a atuação das esquerdas e dos movimentos sociais na transição política (1984-1988).

    O autor, Pedro Fassoni Arruda, cientista político e professor, contribui, de maneira didática, com informações detalhadas e reflexões diversas, importantes e, ainda até hoje, pouco divulgadas e conhecidas sobre os meandros, as articulações de bastidores utilizadas no Congresso Constituinte, de seus preparativos e de seu produto final: a Constituição Federal de 1988 – que foi chamada de Constituição Cidadã pelo Presidente do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães.

    Ele vai fundo no assunto, sem se deixar levar pelo grande entusiasmo da época, em que muitos grupos políticos e populares viam a Constituição como panaceia para resolver muitos de nossos males. A vontade de acreditar que seria uma solução razoável nos movia com muita gana de abrir caminhos para a democracia. O autor, ao aprofundar suas pesquisas, enfatiza o significado histórico da participação dos movimentos sociais e populares na vida política.

    Revela as manipulações feitas pelo presidente Sarney, junto a outros políticos espúrios, sob a vigilância rigorosa e disfarçada das Forças Armadas, no processo que antecedeu a convocação da Constituinte e mesmo durante os trabalhos de elaboração da nova Carta.

    Ocorreu que mesmo sendo uma farsa a chamada redemocratização ou como era chamada Nova República, o que surpreendeu, de fato, foram a disposição e a vontade de participar dos setores populares organizados e de colocar na agenda política os mais candentes problemas nacionais.

    Não era pouca coisa, sair de uma ditadura fascista como foi aquela implantada com o golpe militar de 1964. Nós da esquerda e de forças populares, progressistas, não podíamos deixar escapar a oportunidade de ir para as ruas, com nossas bandeiras e nossas necessidades de democracia e justiça social, mesmo acreditando que nossa participação naquele momento não nos garantiria uma saída imediata para as desigualdades sociais históricas. Tínhamos urgência de sair do obscurantismo, do sufoco mantido pela mordaça violenta da censura e da repressão política, o que nos dificultava encontrar caminhos democráticos, dialógicos e educativos. Precisávamos sair às ruas para conviver com o povo, para construir linguagens articuladas com os anseios populares, falar e trocar nossas experiências de dor, de perdas, mas também de resistência e de esperança. Insistimos em começar a transformar a nossa linguagem clandestina, codificada e hermética, por uma linguagem mais acessível que incluía direito ao corpo; direito a uma sexualidade livre; direito à saúde integral, pública e gratuita; direito de manifestar a nossa orientação sexual; direito a uma vida sem violência; direito de nossas crianças pequenas à educação; direito de nossos jovens a andarem nas ruas sem serem ameaçados e, muitas vezes, mortos pela polícia; direito de criticar e desmistificar a falácia da democracia racial, denunciar o sexismo, o racismo e as desigualdades sociais; direito das mulheres a um salário igual ao dos homens quando exercemos a mesma função; direito à democracia em casa e nas ruas. E tantos outros direitos. E foi exatamente isso o que fizemos. Com muita dedicação, persistência e vontade de mudar tudo.

    O autor reconheceu os esforços dos movimentos populares, inclusive dos movimentos feministas, o que valoriza de maneira expressiva e significativa seu trabalho, que se torna, assim, um dos raros a incluir a participação popular das mulheres no processo constituinte. Nesta obra, ele destaca, com ênfase, dedicando diversos capítulos, a participação do povo organizado nos trabalhos constituintes e o seu significado histórico. Foi a Constituição brasileira que contou com a maior participação do povo.

    O momento era de dar continuidade às lutas, de pôr um fim à ditadura militar que nos sufocava, silenciava, invadia nossos corpos, nossas casas, nossas famílias, nossas vidas, sequestrava pessoas adultas e também nossas crianças. Uma ditadura que impedia as mães de amamentarem seus filhos, separando-os violentamente. Não por acaso, foram mãos femininas e de mães que estiveram trancafiadas nos cárceres que escreveram, no artigo 5º da nossa Constituição, inciso L, que: às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Era imenso o desejo de dar um basta à ditadura que torturava mulheres grávidas e que, em muitos casos, levou-as a abortamentos forçados. Uma ditadura que nos torturava, com o chamado pau de arara, cadeira de dragão, choques elétricos, afogamentos e socos nos ouvidos, nos estuprava e, em muitos casos, nos matava, mulheres e homens da resistência. E muitas das vítimas desses assassinatos sequer foram sepultadas. Seus corpos foram ocultados por agentes públicos a serviço dos órgãos da repressão política e permanecem assim. A pergunta que ecoava e ecoa até os dias de hoje: Onde estão os desaparecidos e as desaparecidas?. Pergunta que não se cala. Há um pacto do apagamento da nossa história, que envolve os militares e civis que estão no centro do poder político.

    Ao ler o livro, de imediato, simpatizei-me com o fato de o autor se referir àquele período nomeando-o como ditadura empresarial-militar (1964 – 1985).

    O núcleo duro do Estado – durante a ditadura militar – esteve todo o tempo sob o controle absoluto dos militares. Os ditadores eram os generais. Sem dúvida, os empresários e latifundiários, ou grandes donos de terras, apoiaram financeiramente o aparato repressivo e muitos chegaram a integrar os grupos de militares golpistas. Dar o nome ao período de ditadura civil-militar, como tem sido usado, provoca uma confusão conceitual e histórica em relação à participação da militância de oposição à ditadura de diversos grupos populares organizados e à atuação dos militares, agentes públicos que se intrometeram e intervieram de forma violenta, autoritária na política de Estado, calando as instituições de maneira brutal, ao estabelecer a estratégica de terror de Estado. Os informantes civis eram totalmente controlados pelos militares e eram chamados de cachorros pelos seus donos. Confundir nomes pode levar a conceitos equivocados que adotam a teoria dos dois demônios, que procura igualar os dois lados, o dos lutadores em defesa das liberdades políticas e o dos terroristas de Estado, os militares no poder político. O que não corresponde à verdade. Tal teoria tem sido usada, explicitamente ou não, para justificar os horrores praticados pela ditadura.

    O livro promove uma leitura densa e necessária para que se entenda o processo de transição da ditadura para uma chamada democracia carregada de manipulações que preservaram a impunidade dos ditadores e torturadores e a manutenção dos chamados entulhos autoritários. Mostra detalhadamente que não houve a Assembleia Nacional Constituinte, o que exigiria pressupostos como exclusividade, quando parlamentares seriam eleitas e eleitos para elaborar, democraticamente, a nova Constituição. A constituinte deveria ser convocada por um presidente da República, eleito pelo voto popular, o que não foi o caso de Sarney, que, por sinal, integrava a base de apoio à ditadura. Era da Arena (Aliança Renovadora Nacional) – o partido político da ditadura. Foi aprovado seu nome, no Colégio Eleitoral, como vice da chapa, cujo presidente era Tancredo Neves. Este não chegou a tomar posse, adoeceu e foi internado justamente no dia em que deveria ser empossado. Faleceu em 21 de abril de 1985. Sarney tomou posse como presidente em circunstâncias nada democráticas, pois sequer chegou a tomar posse como vice-presidente.

    Tivemos, portanto, uma Constituinte meia-boca, com a participação de senadores biônicos (não eram eleitos pelo voto popular).

    Na época, na condição de militante feminista popular e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, participei dos movimentos feministas, de mulheres e de direitos humanos do processo constituinte. Participei de maneira intensa e com muita esperança de que poderíamos alcançar cidadania, ainda que apenas no plano formal, mesmo considerando contradições fundamentais enraizadas na sociedade brasileira, como as desigualdades sociais, as relações assimétricas e históricas de gênero e raça/etnia ou, entre outras palavras, o sexismo e o racismo. No pós-constituinte, sabíamos que a nossa luta deveria prosseguir para fazer valer as conquistas democráticas e de justiça social, em especial de gênero e de raça.

    Entendíamos a importância tanto da igualdade de direitos e garantias fundamentais como também dos direitos sociais, na família ou famílias, garantias que permitissem as mínimas condições de buscar a efetivação desses direitos e melhorias de sobrevivência de um povo que tem sido, ao longo da história, oprimido e explorado pelas elites. Não abandonamos a luta de classes como nos acusavam até membros da esquerda. É bom ressaltar que o proletariado brasileiro é feminino e negro, como nos ensina a professora Leticia Parks (Opera Mundi, 8/4/2022).

    Mas, como bem explicou o autor, a transição pelo alto deu-se de maneira implacável. Não fez concessões em relação aos direitos humanos e optou por preservar a impunidade dos torturadores.

    Vejamos. Familiares e vítimas de torturas propuseram à Constituinte, no que diz respeito aos direitos e às garantias, que a tortura fosse definida como um crime inafiançável e imprescritível.

    Dentre os vários pontos considerados, o documento dos familiares e vítimas afirmava que todos têm direito à vida, à existência digna, à integridade física e mental, à preservação de sua honra, reputação e imagem pública. No seu parágrafo primeiro, definia que "a tortura, a qualquer título, constitui crime inafiançável e insusceptível de anistia e prescrição".

    O deputado Gonzaga Patriota, vice-líder do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) na Constituinte, encaminhou o pedido dos grupos de direitos humanos para a pauta da Subcomissão, a tortura como crime imprescritível, em 27 de abril de 1987. No entanto, os militares à paisana que estiveram na reunião impediram que se aprovasse o texto com a expressão imprescritível, e prevaleceu a vontade deles. O texto efetivado no art. 5º, inciso III, tratou de forma anacrônica a questão, com esta redação: ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Quase dez anos depois, foi sancionada a lei da tortura, despolitizada e descontextualizada, sem quase nenhum resultado prático (lei n. 9.455 de 7 de abril de 1997).

    O direito ao aborto – assunto praticamente interdito no meio político conservador e reacionário – quase seria definitivamente proibido no Brasil. O bloco majoritário, denominado Centrão, tentou inscrever no texto constitucional o direito à vida desde a concepção, retrocedendo ainda mais a legislação em vigor desde 1940. Não fossem os grupos feministas autônomos saírem às ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, entre outros estados, para colherem mais de 30 mil assinaturas, exigência mínima para inscrever a emenda popular que ganhou o nº 65. A emenda reivindicou a legalização do aborto e está citada nas páginas deste livro. Caso não fizéssemos isso, talvez teríamos, ainda hoje, uma legislação proibitiva do aborto em quaisquer circunstâncias.

    As mulheres rurais, trabalhadoras do campo, quebradeiras de coco, prostitutas e trabalhadoras do sexo, lavadeiras, empregadas domésticas, atrizes, bailarinas, assistentes sociais e professoras estiveram, com ou sem o apoio dos órgãos públicos e sindicais, por diversas vezes em manifestações nos corredores do Congresso. Muitas delas cantavam com força, espalhando esperança e alegria nos corredores do Congresso Nacional, com a cantiga: Nossos direitos vêm, nossos direitos vêm, se não vêm nossos direitos, o Brasil perde também. E, antes da instalação da Constituinte, outras tantas delas reivindicaram: A mulher não se engana, Constituinte livre e soberana!

    Treze mulheres foram presas em São Paulo por fazerem um grafite no Minhocão (atual Elevado Presidente João Goulart) com os dizeres: Pelos Direitos da Mulher na Constituinte! Presas por defenderem seus direitos na Constituinte. Pasmem! (jornal O Estado de S. Paulo, 8/2/1987).

    As mulheres foram o primeiro segmento social a quebrar o regimento que proibia a participação popular nas sessões da Constituinte. No dia 26 de março de 1987, entraram, bradando as palavras de ordem: Mulher é maioria, tem que estar na galeria!.

    Lembremos das Madres da Plaza de Mayo. Não alcançaremos construir a democracia com corpos insepultos. E os temos em diversas camadas históricas.

    Como alcançar a erradicação do racismo, do sexismo, do genocídio de indígenas, do feminicídio e da violência de gênero e de raça, se a nossa Constituição de 1988, a mais democrática de nossa história, não considerou a tortura como um crime de lesa-humanidade?

    Como erradicar as desigualdades sociais se não conseguimos garantir a reforma agrária e os direitos dos povos originários às suas terras?

    No entanto, foi um grande momento histórico: pela primeira vez, 26 mulheres foram eleitas para a Constituinte, o que, sem dúvida, possibilitou a defesa dos direitos das mulheres, dos direitos humanos e dos direitos da classe trabalhadora na nova Constituição de 1988.

    Pela primeira vez, o cotidiano da vida e do trabalho das mulheres passou a ter alguma visibilidade na Constituição, principalmente no que se refere às crianças pequenas que passaram a ter direito à creche. A licença paternidade passou a ser um direito dos homens graças às feministas. Mais uma tentativa de se alcançar a paternidade responsável.

    E, assim, as crianças pequenas, com até sete anos de idade, passaram a fazer parte da Lei Maior do país. Passaram a ter direitos, inclusive à educação e aos cuidados.

    No processo constituinte, houve uma aproximação das diversas realidades sociais, o que revelou as desigualdades econômicas entre nós e a diversidade sexual, racial e ideológica. Deu-se a dimensão política das questões sociais.

    Neste ano, quando se completam os 35 anos da Constituição Federal de 1988, pensemos nas nossas conquistas, nas fragilidades incrustadas no seu conteúdo e nos retrocessos que se seguiram.

    Estão, na ordem do dia, a mobilização e a organização por uma luta unitária em defesa da democracia, das liberdades políticas e da justiça social.

    A leitura deste livro torna-se imprescindível e obrigatória. Não basta inscrever direitos na Constituição. É urgente efetivá-los. Fazer valer na vida o que está no papel. E, por isso, nós feministas fizemos também um sambinha: Se a igualdade de direitos só existe no papel, nossa luta é pra valer, somos metade do céu!.

    A emancipação de um povo exige conhecimento da história política e o compromisso com uma Constituição construída de forma livre e soberana.

    Amelinha Teles

    Maria Amélia de Almeida Teles, também conhecida como Amelinha Teles, nasceu em 1944. Em 1960, começou sua militância política no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi presa e torturada após o golpe de 1964. Ingressou no PCdoB em 1968, trabalhando na imprensa partidária. Em 1972, foi presa novamente. Passou por diversos presídios e instalações carcerárias. Depois de 10 meses na prisão, seguiu a sua militância política; desde então, ela vem se destacando como uma importante referência do movimento feminista brasileiro, atuando também na busca pelos mortos e desaparecidos políticos. É sócia fundadora da União de Mulheres de São Paulo. É coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Foi assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva e da Comissão da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo (CMV). É autora do livro Breve História do Feminismo no Brasil e outros ensaios (Alameda Editorial), entre outros livros sobre ditadura, resistências e feminismo no Brasil.

    Sumário

    Introdução

    Capítulo 1 – A ALIANÇA DEMOCRÁTICA, A ELEIÇÃO DE TANCREDO E A POSSE DE SARNEY

    A eleição de Tancredo e a conjuntura brasileira

    Tancredo e a questão da Constituinte

    A doença de Tancredo e a posse de Sarney

    A composição ministerial no começo do governo Sarney

    As divergências no interior da Aliança Democrática

    A heterogeneidade do PMDB e as disputas internas

    Sarney e a convocação da Constituinte

    Capítulo 2 – A ELEIÇÃO PARA O CONGRESSO CONSTITUINTE

    O Plano Cruzado I

    As eleições de 1986

    O período pós-eleitoral e o Plano Cruzado II

    Capítulo 3 – OS DEBATES NA CONSTITUINTE E AS DISPUTAS ENTRE GOVERNO E OPOSIÇÃO

    A discussão sobre a legitimidade do processo e as propostas de Constituinte: congressual ou exclusiva?

    Pressões para fixar o mandato presidencial

    Parlamentarismo versus presidencialismo

    A liderança do governo na Constituinte e a criação do Centrão

    A falta de legitimidade do Senado Federal

    Capítulo 4 – PARTICIPAÇÃO SOCIAL, SINDICATOS DE TRABALHADORES E PARTIDOS DE ESQUERDA

    O regimento interno, as subcomissões e comissões

    As emendas populares

    Os movimentos sociais na Constituinte

    Os sindicatos e a luta pelos direitos sociais: por uma constituição analítica, e não sintética

    Os partidos de esquerda na Constituinte

    Capítulo 5 – AS MULHERES NA CONSTITUINTE

    A legislação patriarcal e a luta das mulheres antes da Constituinte

    Perfil da bancada feminina

    As emendas populares e os trabalhos nas comissões: a questão do aborto

    Balanço da participação das mulheres

    Capítulo 6 – A QUESTÃO RACIAL E A LUTA DOS NEGROS

    O período pré-Constituinte e a criação do Movimento Negro Unificado

    A luta contra o racismo nas duas primeiras fases da Constituinte

    A questão racial na Comissão de Sistematização e na votação em Plenário

    Breves comentários sobre o Centenário da Abolição e a Lei Caó

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Referências

    Nota do autor sobre o material consultado

    Livros, capítulos de livros e artigos publicados em revistas acadêmicas

    Introdução

    A ditadura empresarial-militar no Brasil (1964-1985) deixou marcas profundas na sociedade brasileira. De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, 434 pessoas foram mortas pela repressão. Cerca de 10 mil pessoas foram torturadas nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo, quase a mesma quantidade de pessoas exiladas durante o mesmo período. Cerca de 500 mil cidadãos foram investigados pelos órgãos de segurança, 200 mil foram detidos por suspeita da subversão, quase 5 mil políticos foram cassados, da mesma forma que milhares de funcionários públicos e militares foram demitidos, aposentados ou reformados compulsoriamente. O Congresso Nacional foi fechado por três vezes, houve intervenção em mais de 1.200 sindicatos, estudantes foram expulsos de universidades, dezenas de juízes e três ministros do STF perderam seus cargos, a censura prévia foi imposta aos veículos de comunicação e o terror se espalhou por toda a sociedade brasileira. A violência atingiu todos os setores que eram vistos como uma ameaça aos imperativos da ordem: a violência sexual e de gênero foi largamente utilizada como instrumento de poder e dominação; mulheres, crianças, adolescentes e homossexuais também foram vítimas da violência institucional. Exatamente como foram os negros, trabalhadores, sindicalistas, camponeses, indígenas e militares nacionalistas que ousaram defender a legalidade contra os seus superiores hierárquicos (Brasil, 2014).

    Muitos esperavam que o fim dos governos militares significaria também o fim das graves violações de direitos humanos. E que a classe trabalhadora em geral, militantes de partidos de esquerda, integrantes de movimentos sociais, sindicalistas, mulheres, negros, quilombolas, ambientalistas, indígenas, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e outros grupos oprimidos e discriminados pudessem exercer livremente os direitos que reivindicavam. Infelizmente, a realidade desferiu um duro golpe nessas expectativas: setores comprometidos com a manutenção do status quo, liderados pelos militares e pelas frações mais reacionárias da burguesia brasileira, formaram uma coalizão de interesses que serviu para limitar o alcance das transformações. Esses grupos não queriam a instauração de uma democracia (mesmo que burguesa, e, portanto, limitada), mas tão somente a liberalização do regime, por meio de um afrouxamento gradual dos controles autoritários que não colocasse em risco seus privilégios históricos. Em suma, os donos da ordem queriam a manutenção do modelo capitalista dependente, baseado na superexploração da força de trabalho e nas diversas formas de opressão – de classe, raça e gênero.

    Questionando o senso comum e também algumas interpretações historiográficas, sustento que não houve de fato um processo de redemocratização, nem mesmo de democratização no Brasil. Abordei mais detalhadamente essa questão em outro trabalho, num artigo intitulado A transição política no Brasil: da abertura à Constituinte – 1974-1988 (Arruda, 2019). Para considerar que houve uma redemocratização na sociedade brasileira na década de 1980, seria necessário que tivesse existido uma democracia no período anterior ao golpe de 1964, mas como ignorar o fato de que o sufrágio não era universal, os trabalhadores rurais não tinham os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos e não havia plena liberdade de organização partidária ou de associação sindical? O liberalismo excludente da Quarta República brasileira (1946-1964) terminou com um golpe de Estado, justamente quando o presidente em exercício intensificava as críticas ao caráter antidemocrático da Constituição de 1946.

    *

    Se a Constituição de 1946 era mais liberal do que democrática, e se era impossível disfarçar o caráter autoritário da Constituição que os militares outorgaram em 1967, é preciso reconhecer que a Carta de 1988 trouxe avanços importantes. Esta, promulgada em 5 de outubro de 1988, tem sido considerada por muitos juristas, historiadores e cientistas políticos como a mais democrática da história do Brasil. Esse entendimento resulta de uma análise tanto do seu processo de elaboração – a questão central deste livro – quanto do seu conteúdo, que revogou até certo ponto o entulho autoritário herdado da ditadura empresarial-militar. Os ideólogos da democracia liberal-burguesa afirmam, com frequência, que a nova Carta foi o resultado da mais ampla discussão entre parlamentares, grupos de pressão, sindicatos (de trabalhadores e também patronais) e movimentos sociais sobre questões fundamentais, tais como os direitos e garantias individuais, a legislação social, os direitos das minorias, a reforma agrária, a distribuição da riqueza, o sistema político representativo, a organização dos poderes do Estado e a afirmação de diretrizes econômicas e sociais.

    De fato, é inegável que nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (que na realidade era um Congresso Constituinte, como iremos demonstrar nos capítulos 2 e 3) houve a participação, além dos deputados federais e senadores eleitos, de pessoas das mais diversas origens sociais, que apresentaram emendas populares, participaram de audiências públicas nas subcomissões e lotaram as galerias¹ do Congresso Nacional para exigir, depois de mais de duas décadas de ditadura, uma Constituição que pudesse finalmente sepultar todo o entulho autoritário daqueles anos de chumbo. Entretanto, na dialética da superação/conservação, pode-se com facilidade constatar que foram mantidos diversos dispositivos contrários aos interesses das classes subalternas, com destaque para a intocabilidade dos interesses latifundiários e a manutenção de praticamente todos os instrumentos de repressão das polícias estaduais e das Forças Armadas (justamente porque os militares continuaram exercendo uma poderosa tutela sobre o governo e as demais instituições políticas do país, na Nova República).

    Os agentes da ordem, interessados em manter seus privilégios e conter o avanço das forças democráticas e progressistas, procuraram afastar a ameaça de radicalização do processo de transição política. Para tanto, procuraram deslegitimar e até mesmo intimidar os movimentos populares considerados radicais e seus representantes no Congresso, dando inequívocos sinais de força e disposição para assegurar uma transição pelo alto, com o mínimo de concessões para as classes subalternas e sem sobressaltos para as diversas frações da burguesia, que no essencial não foram capazes ou não quiseram romper com a lógica do modelo de desenvolvimento capitalista dependente e associado, assim como a forte militarização do aparelho de Estado. Neste livro, analisaremos as lutas de classes e seus desdobramentos, identificando tanto os aspectos democráticos quanto os aspectos antidemocráticos da Constituinte (ou seja, os elementos de ruptura e os elementos de continuidade em relação ao regime anterior, que estiveram presentes na Nova República).

    Neste volume, dedicamos os dois primeiros capítulos ao estudo do período imediatamente anterior à instalação do Congresso Constituinte, buscando contextualizar o processo de elaboração da nova Carta. No Capítulo 1, explicamos a eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, a morte do titular e a posse do vice, as questões envolvendo os dois maiores partidos políticos do Brasil à época (PMDB e PFL, destacando tanto a dimensão intrapartidária do conflito político quanto a dimensão interpartidária) e as controvérsias envolvendo a forma de convocação da Constituinte. No Capítulo 2, buscamos explicar a correlação existente entre a base econômica e seus reflexos sobre a superestrutura política, mais especificamente nos impactos que o Plano Cruzado exerceu sobre o processo eleitoral e a manipulação da opinião pública. Ainda nesse capítulo, buscamos analisar os resultados da eleição e a correlação de forças entre os grupos conservadores e os progressistas. O Capítulo 3 é dedicado ao estudo de questões regimentais, das relações entre o Poder Executivo e o Congresso Constituinte e da discussão sobre a falta de legitimidade de uma Constituinte congressual e da participação dos senadores biônicos.

    Os três últimos capítulos contemplam a atuação das esquerdas e dos movimentos progressistas em geral. O Capítulo 4 é dedicado ao estudo da atuação dos movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores e partidos de esquerda, ou seja, dos representantes dos interesses da maioria da população, que sobrevive da venda de sua força de trabalho. É importante levar em consideração que o conceito de classe social é um conceito relacional, e que uma classe deve necessariamente ser compreendida não apenas em si mesma, mas nas suas relações de antagonismo ou complementaridade com as outras classes sociais (Pinheiro, 1978, p. 10). Por isso, todos os problemas analisados no Capítulo 4 (inclusive os resultados da disputa entre capital e trabalho) serão analisados em outro livro, a ser publicado em breve, a respeito dos interesses das diversas frações da burguesia brasileira. O Capítulo 5 traz um estudo detalhado das questões de gênero na Constituinte, com ênfase no lobby exercido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e na atuação da pequena mas aguerrida bancada feminina na Constituinte, que conseguiu revogar a anacrônica legislação existente até aquele momento. Como havia um relativo consenso em relação à igualdade entre homens e mulheres em geral, dedicamos uma grande parte deste capítulo ao estudo do único tema em que não foi possível avançar, que foi a legalização do aborto. O sexto e último capítulo trata da questão racial, privilegiando a luta do Movimento Negro Unificado e da pequena mas igualmente combativa bancada de parlamentares negros na Constituinte. A questão indígena, com foco sobre a demarcação das suas terras, será analisada em outro volume, que trata do poder do latifúndio no Brasil.

    *

    Na luta entre progressistas e conservadores, este livro enfatiza a luta dos grupos interessados na remoção do entulho autoritário. A reação dos grupos conservadores, que defendiam a manutenção do status quo, será analisada em outros trabalhos, a serem publicados em breve. Trata-se de estudos sobre a atuação das diferentes frações da burguesia urbana (industriais, banqueiros, comerciantes), dos latifundiários e das Forças Armadas. Esses grupos, identificados com o processo de transição pelo alto, estavam muito mais interessados num processo que podemos chamar de liberalização do regime, do que de um verdadeiro processo de redemocratização. No caso dos latifundiários, que exerceram um dos mais poderosos lobbies na Constituinte (ao lado dos militares), tratava-se de evitar qualquer mudança no estatuto jurídico da propriedade, preservando todas as relações de poder e autoridade no campo brasileiro. A bancada ruralista no Congresso, atuando em sinergia com o lobby da União Democrática Ruralista (UDR) e dos seus sindicatos patronais (como a Confederação Nacional da Agricultura – CNA), representou um dos mais poderosos obstáculos à solução desse grande problema, uma das nossas mais pesadas heranças coloniais. As diversas frações da burguesia urbana, atuando em sintonia com outros sindicatos patronais (a exemplo da Federação das Indústrias de São Paulo – Fiesp, da Confederação Nacional da Indústria – CNI, da Federação Nacional dos Bancos – Fenaban e Associações Comerciais, entre outros), também estiveram presentes na batalha da Constituinte, e mantiveram sua histórica posição antinacional, entreguista e contrária à ampliação dos direitos sociais (reiterando a sua opção por um tipo de desenvolvimento capitalista dependente e associado ao capital estrangeiro). E, por fim, o lobby das Forças Armadas contribuiu para sepultar outras importantes reivindicações democráticas, como a não ingerência dos militares em questões estritamente políticas, a punição dos criminosos da ditadura, a revisão da Lei de Anistia, o desmantelamento dos serviços de inteligência e a desmilitarização das polícias.

    Entender todas essas questões é fundamental para identificarmos os alcances e os limites do processo de transição e da própria democracia brasileira. E também para compreendermos que os poucos direitos conquistados pelos grupos oprimidos foram o resultado de muita luta e coragem para enfrentar os donos do poder. O presente livro busca resgatar as importantes lutas da classe trabalhadora, das mulheres, dos negros, dos povos indígenas, dos LGBTs e de todos os grupos que não se calaram e não se calam diante das injustiças provocadas pelo poder do capital.


    Nota

    ¹ Nos 18 meses de trabalhos da ANC, o edifício do Congresso foi visitado por 5,4 milhões de pessoas ou cerca de 10 mil pessoas por dia (Pilatti, 2008, pp. 286 e 309; Bonavides e Andrade, p. 470; Carvalho, 2017, p. 328; Lima, 2002, p. 330).

    Capítulo 1

    A ALIANÇA DEMOCRÁTICA, A ELEIÇÃO DE TANCREDO E A POSSE DE SARNEY

    A eleição de Tancredo e a conjuntura brasileira

    Para entendermos os alcances e os limites da participação popular no processo de transição política (e mais especificamente no período de funcionamento do Congresso Constituinte), é preciso conhecer também o contexto da sociedade brasileira em meados da década de 1980, em especial o início do primeiro governo civil (presidente José Sarney) depois de 21 anos de ditadura militar. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves (PMDB) foi eleito presidente da República por meio de um Colégio Eleitoral, derrotando o candidato Paulo Maluf (PDS). O candidato à vice-Presidência na chapa de Tancredo era José Sarney, considerado por muitos democratas (e até alguns apoiadores da ditadura) como um oportunista sem princípios. Afinal, Sarney havia renunciado ao cargo de presidente nacional do PDS poucos meses antes (em junho de 1984), para filiar-se ao PMDB e disputar a vice-presidência na chapa de um partido que ele mesmo havia combatido ferozmente.¹

    Durante a campanha eleitoral, Tancredo Neves fez diversos acenos ao grupo dissidente do PDS (que formou a Frente Liberal), aos militares e à burguesia brasileira. Aos militares, o candidato do PMDB prometeu que não haveria revanchismos, ou seja, que os torturadores e assassinos da ditadura não seriam responsabilizados pelos crimes que praticaram. Às diversas frações da burguesia (banqueiros, industriais, comerciantes, latifundiários, barões da mídia etc.), ele prometeu defender a economia de mercado, a propriedade privada, os contratos e demais compromissos assumidos (inclusive com o capital estrangeiro) e todas as regras do jogo capitalista. E aos seus antigos adversários políticos, agora aliados dentro da autodenominada Aliança Democrática, Tancredo prometeu a conciliação, que compreendia também a indicação de velhos apoiadores da ditadura para cargos no primeiro escalão de seu futuro governo.

    As manobras políticas de Tancredo Neves, durante a campanha eleitoral, eram caracterizadas por uma notória ambiguidade. De um lado, o líder da Aliança Democrática buscava o apoio dos setores populares, democráticos e progressistas. Nesse sentido, ele enfatizava a necessidade de reformas democráticas, a reorientação da política econômica (ampliação do mercado consumidor interno, melhor distribuição de riquezas, recomposição do poder de compra do salário-mínimo etc.) e reiterava seu compromisso – feito de modo muito genérico – com a justiça social. Mas, de outro lado, Tancredo procurava tranquilizar os setores mais reacionários das Forças Armadas, ao mesmo tempo que também conciliava com o latifúndio e o imperialismo: seguindo a cartilha ortodoxa do Fundo Monetário Internacional (FMI), assumiu o compromisso de respeitar os contratos com os credores internacionais, além de comprometer-se a reduzir o déficit público por meio de enxugamento de gastos e eliminação de subsídios (Sampaio Jr. e Affonso, 1986, pp. 61-62).

    É importante ressaltar que, durante a campanha eleitoral, o FMI chegou a interromper negociações com o governo do ditador Figueiredo, aguardando sinais de que os contratos com os bancos estrangeiros seriam respeitados pelo seu sucessor (Dupas, 1987, p. 56; Senhor, 5/12/1984, p. 46). No final de 1984, Tancredo reuniu-se com George Shultz, Secretário de Estado dos EUA, e também com Nikolaus Senn, presidente da União de Bancos Suíços. Tratando o candidato como presidente virtualmente eleito, os porta-vozes do capital financeiro deram sinais de que seriam duros nas futuras negociações, e que dificilmente o país conseguiria novos empréstimos se o governo insistisse numa renegociação com reescalonamento da dívida (Senhor, 5/12/1984, p. 46).

    De acordo com Gilberto Dupas, no processo de transição democrática a dívida externa apresentava-se como o problema mais complexo em termos de equacionamento. Pressionado pela intransigência do mercado financeiro internacional, o país se vê sem saída para administrar um caminho que permita, ao mesmo tempo, crescer e pagar os seus credores (Dupas, 1987, p. 56). As políticas recomendadas pelo FMI e bancos credores, e adotadas pelo governo brasileiro e muitos outros países da América Latina nos anos 1970 e início da década de 1980, acabaram aprofundando ainda mais a vulnerabilidade externa – com a deterioração dos termos de intercâmbio e a dificuldade cada vez maior de pagar os juros da dívida – e ampliando a recessão econômica. Preocupados com as incertezas relacionadas à transição no Brasil, os credores insistiam na aplicação do receituário ortodoxo/neoliberal, forçando a classe trabalhadora a pagar a conta da crise – e tendo como resultado o aumento do desemprego, queda da renda e aumento das desigualdades sociais. É importante levar em consideração que essas pressões contavam com o aval do presidente estadunidense Ronald Reagan, que, juntamente com Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido), foi um dos principais responsáveis pela ofensiva conservadora na década de 1980.

    A situação interna era preocupante, e acompanhava os graves desequilíbrios externos. Entre 1980 e 1984, o PIB per capita brasileiro calculado em dólares diminuiu 8,9% (caiu de US$ 887 para US$ 809). Entre 1978 e 1984, a dívida externa brasileira saltou de US$ 52 bilhões para US$ 102 bilhões, praticamente dobrando. Esse aumento da dívida consumiu uma parcela ainda maior das divisas obtidas com a receita das exportações brasileiras: em 1984, impressionantes 52% das nossas exportações eram destinadas ao pagamento de juros (eram 24% em 1978), e o país dava assim a sua contribuição para os países imperialistas reciclarem os petrodólares que jorraram após o segundo choque do petróleo, a partir de 1979. Como as exportações de produtos agrícolas cresciam em detrimento da agricultura de mercado interno, houve também um forte aumento do custo de vida para a classe trabalhadora (por conta da inflação dos preços de alimentos), com aumento da pobreza, da fome e das desigualdades socioeconômicas (Dupas, 1987, pp. 66-70). Essa era a herança que os militares deixavam para o próximo governo...

    Confirmada a vitória eleitoral, Tancredo Neves indicou o seu sobrinho Francisco Dornelles para comandar o Ministério da Fazenda, encarregando-o de negociar a transição da política econômica com Delfim Netto, conhecido como o czar econômico da ditadura. Dornelles e Delfim tinham muitas coisas em comum, como os serviços prestados à ditadura (Dornelles foi integrante da Arena, do PDS e depois do PFL, além de secretário da Receita Federal no governo Figueiredo) e a defesa do liberalismo econômico. O ortodoxo Dornelles pretendia implantar um choque recessivo, cujo principal objetivo era o controle da inflação, para conseguir negociar a dívida externa com o FMI com maior credibilidade. O principal instrumento para atingir esse objetivo seria o arrocho fiscal, com forte corte de investimentos públicos. A palavra de ordem do economista Dornelles, e repetida até a exaustão depois que assumiu o ministério,² passou a ser é proibido gastar (Sampaio Júnior e Affonso, 1986, p. 63; Brum, 2000, p. 403; Maciel, 2012, pp. 103-107; Dupas, 1987, p. 79; Carvalho, 2017, p. 243; Afinal, 26/3/1985, pp. 24 e 63-65).

    Como observou David Maciel, o conservadorismo de Tancredo Neves no campo da economia era um indicador de que o presidente eleito possuía uma relativa autonomia diante de seu partido, cujo setor majoritário apresentava um perfil mais progressista. Economistas influentes no partido, como João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo, por exemplo, defendiam medidas desenvolvimentistas (como o fortalecimento da demanda) e assumiam posições que muitas vezes eram diametralmente opostas às de Dornelles.³ De fato, nenhum nome do PMDB foi cogitado por Tancredo para ocupar o poderoso Ministério da Fazenda no seu governo. A decisão de nomear Dornelles provavelmente foi tomada após Tancredo consultar membros da equipe econômica de Figueiredo, reforçando assim a retórica em torno da unidade e da conciliação nacional para agradar aos setores hegemônicos. Mas essa decisão também foi a maneira encontrada por Tancredo para reter o controle pessoal sobre as decisões econômicas, por causa das relações de parentesco e confiança existentes entre ele e Dornelles (Maciel, 2012, p. 65).

    Tancredo Neves anunciou seu programa de governo em fevereiro de 1985, entre a eleição e a data prevista para a sua posse. Pouco antes de anunciá-lo, muitos já davam como certo que a orientação da sua política econômica seria bastante conservadora, e que não haveria mudanças significativas em relação às diretrizes adotadas pelo ditador Figueiredo. Sem detalhar o conjunto de medidas que pretendia adotar, e falando sempre de forma muito vaga e genérica (como era o seu estilo, para evitar especulações e garantir o apoio de grupos tão diferentes como aqueles que compunham a Aliança Democrática), Tancredo buscava tranquilizar os investidores estrangeiros e a burguesia brasileira. Nesse sentido, o presidente eleito insistia, em declarações à imprensa, que a prioridade no seu governo seria o combate à inflação (de maneira gradual, como preconizavam os ortodoxos), o corte dos gastos públicos e o respeito aos contratos já assinados (Maciel, 2012, pp. 64-67; Isto É, 24/10/1984, pp. 74-76). Diversos representantes do pensamento desenvolvimentista criticaram essas tendências manifestadas por Tancredo:

    O Conselho Regional de Economia e associações de economistas do Estado de São Paulo lançaram manifesto contra o continuísmo da atual política econômica no governo Tancredo Neves. O documento reitera a necessidade de mudanças fundamentais, recorda os compromissos públicos do presidente eleito e acentua que sua vitória se deve não só à aliança de várias correntes políticas, mas, principalmente, à pressão popular nas ruas, originária do movimento em prol das diretas.

    Sem mencionar o nome de Francisco Dornelles (cotado para a pasta da Fazenda), o presidente interino do CRE, José Carlos de Souza Braga, 36, apontou o risco de alguns setores imaginarem que se possa administrar a crise com as linhas antigas da política econômica. (FSP, 7/2/1985, capa e p. 8)

    Tancredo vinha enfrentando críticas feitas também por seus próprios colegas de partido. Dentro do PMDB, eram muitas as queixas em relação aos compromissos assumidos com os representantes do continuísmo. Um grupo de parlamentares, liderados pelos senadores Álvaro Dias (PR) e Pedro Simon (RS), falando em nome das bancadas do PMDB dos três Estados da região Sul, expressaram profunda preocupação com a influência de grupos conservadores na elaboração do programa de governo de Tancredo e na provável composição de seu ministério. Simon e Dias levaram suas queixas ao presidente nacional do partido, o deputado Ulysses Guimarães, que deveria servir de interlocutor diante da situação (com riscos de se transformar numa crise que poderia dividir a legenda). Álvaro Dias entendia que os lobbies e pressões vindos de fora do partido poderiam comprometer a transição política, contrariando assim os desejos de milhões de pessoas que depositaram em Tancredo a esperança por mudanças (FSP, 6/2/1985, p. 5).

    Dornelles era criticado até mesmo por aliados de Tancredo que agora integravam a Frente Liberal. Estes chegaram a declarar que não aceitariam a participação de nenhum membro do PDS no ministério, e que isso seria considerado um gesto de consequências muito negativas para o partido que eles estavam criando, o PFL. Além de Dornelles, havia outro pedessista cotado para assumir um ministério (o das Comunicações) no governo de Tancredo: era Antônio Carlos Magalhães, ferrenho adversário das esquerdas, e que, apesar de ter apoiado Tancredo na disputa com Maluf, ainda permanecia filiado ao PDS⁴ (FSP, 6/2/1985, p. 4; FSP, 9/2/1985, p. 4). A maioria da população brasileira também era contrária à participação de integrantes dos governos militares na Nova República: pesquisa divulgada pelo jornal Folha de São Paulo, e realizada nas seis maiores capitais do país, revelou que cerca de dois terços (67,6%) da população eram contrários à permanência de qualquer ministro ou alto funcionário do governo Figueiredo a partir de 15 de março (FSP, 10/2/1985, p. 5).

    Tancredo Neves demonstrava bastante preocupação com os indicadores econômicos, no início de 1985: recessão, altos índices de desemprego, inflação anual de aproximadamente 200%, enorme endividamento público (interno e externo), déficit do setor público e falta de reajuste de preços e tarifas das empresas estatais. A equipe econômica indicada por Tancredo, que não foi alterada mesmo depois da sua morte por conta de compromissos assumidos pelo seu vice José Sarney, anunciou que os principais objetivos do novo governo seriam a geração de empregos, recomposição do poder aquisitivo dos salários (com redistribuição mais justa da renda), um rígido controle da inflação, a redução do déficit público e a renegociação da dívida externa (Brum, 2000, pp. 402-403). Mas enquanto medidas impopulares, como a redução dos gastos públicos e fim de alguns subsídios, seriam tomadas imediatamente, alegava-se que os efeitos positivos sobre a renda e o trabalho seriam um resultado das medidas de austeridade adotadas, sem previsão de quando isso efetivamente seria

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