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A dignidade humana como limitador da ordem econômica
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A dignidade humana como limitador da ordem econômica
E-book375 páginas4 horas

A dignidade humana como limitador da ordem econômica

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Sobre este e-book

O interesse coletivo, pelos valores constitucionais, está acima do interesse privado, passando a prevalecer (quando há conflito entre as normas), como disciplinado pela Constituição da República de 1988, os princípios que norteiam a pessoa humana, sendo estes o primado do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a preservação e conservação do ambiente, o direito do consumidor, dentre outros. Assim, a Constituição, apesar de resguardar também os interesses privados, como, por exemplo, o interesse das empresas de iniciativa privada, não permite que estes prejudiquem os demais princípios constitucionais, servindo os mesmos de barreira aos primeiros, na medida em que a iniciativa privada tem o direito à livre iniciativa e à livre concorrência, não podendo, todavia, colidir, por exemplo, com o direito ambiental, direito do consumidor etc., devendo, ainda, utilizar a propriedade privada de forma a cumprir o seu papel social. A constitucionalização da dignidade da pessoa humana e a elevação desse princípio a fundamento da própria República impedem a degradação do homem, na hipótese de sua conversão em mero objeto do Estado, sendo que referido princípio trouxe consequências importantes: o reconhecimento da igualdade entre os homens; a consagração da autonomia dos indivíduos; a observância e proteção de seus direitos inalienáveis e a necessidade de ação para garantia de condições mínimas de vida, a fim de que essa vida possa ser vivida de forma plena.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de set. de 2023
ISBN9786525290218
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    A dignidade humana como limitador da ordem econômica - Dinara de Arruda Oliveira

    1. RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E ECONOMIA

    Inicia-se este primeiro capítulo, tratando das relações existentes entre o Estado e a Economia, para que se dê embasamento teórico ao tema proposto no trabalho, qual seja, de demonstrar por um enfoque ao Art. 170 da Constituição Federal que o princípio da dignidade da pessoa humana deve funcionar como limitador da ordem econômica.

    Tal fato torna-se imprescindível em decorrência da necessidade de um aporte acerca do conceito de Estado, bem como dos sistemas econômicos e a relação existente entre ambos, para que se verifique se o modelo de Estado existente no Brasil suporta, de forma satisfatória, a meta de se obter a plenitude da dignidade da pessoa humana. Mas, para isso, faz-se necessária uma incursão na História da humanidade, até os dias atuais, em face de que, o momento em que hoje se encontra o Brasil, é resultado de um construído de conceitos, ideias e valores, trazidos do seio da sociedade e que foram adquiridos no decorrer de sua história.

    1.1 ASPECTOS CONCEITUAIS DO ESTADO

    Para que se possa dar a conceituação de Estado, importante se faz que se apresente a concepção deste antes de 1500 (que marca o fim da Idade Média, também conhecida com Idade das Trevas), bem como sua concepção após aquele ano, chegando-se, posteriormente ao seu entendimento atual, já que:

    O Estado não existiu eternamente. Houve sociedades que passaram sem ele, que não tinham a menor idéia (sic) do Estado ou de seu poder. Num determinado estágio de desenvolvimento econômico que estava necessariamente ligado à divisão da sociedade em classes, o Estado, em virtude dessa divisão, tornou-se uma necessidade. ¹

    Passa-se, portanto à construção histórica, bem como à análise, do conceito de Estado, apresentando-se alguns filósofos que contribuíram para a formação da concepção que se conhece hoje. Importante frisar, todavia, que não se pretende trazer, neste trabalho todos os filósofos conhecidos da humanidade, mas apenas e, tão somente, ilustrar o caminhar da História, por intermédio do pensamento de alguns filósofos, até a formação do que se entende, atualmente, como Estado. Ressalta-se, também, que não se esgotará, neste todas as informações e características de cada filósofo apresentado, o que resultaria, por si só, em um novo trabalho, pincelando, somente, alguns pontos importantes para o desenvolvimento deste, em face do corte metodológico eleito.

    Apresentar-se-á, também, o pensamento de juristas, os quais ajudaram a moldar o conceito de Estado, bem como definiram suas funções e elementos.

    1.1.1 A Concepção do Estado antes de 1500

    A concepção do Estado antes do término da Idade Média e início do período das navegações e das grandes conquistas (em especial para Portugal e Espanha), não deve ser vislumbrada apenas na era cristã, devendo-se, de outra forma, ser analisada em face dos grandes filósofos e pensadores da Antiguidade, em especial dos pensadores gregos. E, um dos grandes representantes dessa época é Sócrates (por volta de 470/69-399 a.C.), que já tinha uma concepção a respeito do Estado. Percebe-se que, na época ora tratada, o conceito de Estado se confunde, na maioria das vezes, como o de governo e, vice-versa. Aliás, foi a filosofia grega que trouxe uma teoria racional de Estado, tendo sido os gregos os primeiros cultivadores desse pensamento. ²

    Friedrich Engels, na obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, remonta a tempos pré-históricos da civilização, para explicar, em primeiro lugar, como se originou a família e, como dela surgiu o Estado. Passa pelo estado selvagem, pela barbárie e, posteriormente, pelo início da civilização, para demonstrar o desenvolvimento e aprimoramento humano, em todos os aspectos, inclusive nas ligações afetivas. Faz um retrospecto histórico, passando por várias fases da evolução da humanidade, referente ao desenvolvimento e avanço da família, até chegar à gens grega e, posteriormente, à gênese do Estado Ateniense, apontando que:

    Nos tempos pré-históricos já os gregos e outros povos de tribos aparentadas, estavam constituídas em séries orgânicas idênticas à dos índios americanos: gens, fatria, tribo, confederação de tribos.

    [...] Em resumo, a riqueza passou a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens foram pervertidas para justificar a obtenção de riquezas pelo roubo e pela violência. Só faltava uma coisa: uma instituição que não só protegesse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas de constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e declarasse essa consagração como a finalidade mais elevada da comunidade humana, mas também imprimisse o selo do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras e, portanto, a acumulação cada vez mais acelerada das riquezas; uma instituição que não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar aquela que pouco ou nada possuía e a dominação da primeira sobre a segunda.

    E essa instituição nasceu. Foi inventado o Estado.

    Em nenhum lugar melhor que na antiga Atenas, pode-se observar como o Estado se desenvolveu, pelo menos na primeira fase de sua evolução [...]³ (grifo do autor).

    Sócrates, apesar do governo de Atenas ter sido uma das primeiras democracias conhecidas no mundo, não a reconhecia como a melhor forma de governo, já que entendia que o Estado estaria melhor se fosse governado apenas por uma pessoa, que deveria ser sábia, já que este filósofo denominava governante, como aquele que sabe. Importante frisar também, que, para ele, só se poderia dizer o que é lícito, se soubesse o que é justo, já que, como citado por Platão, na obra A República, ele assim se manifesta: Adiemos então, a discussão a respeito do que é lícito dizer sobre os homens, até que tenhamos concluído o que é a Justiça, se é útil a quem a pratica, quer este pareça justo, quer não.

    Com relação, ao Estado, faz-se necessária a transcrição de um trecho da Obra A República de Platão, onde Adiamanto, discípulo de Sócrates, em uma discussão com este, afirma que: Sem nenhuma dúvida, o desprezo das leis insinua-se aí de maneira tão fácil que as pessoas acabam não se dando conta. Sócrates, em contrapartida, concorda com seu aluno, tendo, ainda, acrescentado que o desrespeito se dá na forma de jogos, como se tal fato não ocasionasse nenhum mal. Adiamanto, ato contínuo, concordou com as palavras de seu mestre, tendo afirmado:

    A princípio, não faz senão introduzir-se pouco a pouco e infiltrar-se suavemente nos usos e costumes, daí, sai mais forte e passa às relações sociais; em seguida, das relações sociais marcha sobre as leis e as constituições com muita insolência, Sócrates, até que finalmente, haja consumado a ruína total dos cidadãos e do Estado.

    [...] Sócrates: Eu não creio que, numa cidade mal ou bem governada, o verdadeiro legislador devesse se preocupar com este tipo de leis: no primeiro caso, porque são inúteis e de nenhum efeito; no segundo, porque qualquer pessoa descobrirá uma parte e a outra derivará das instituições já estabelecidas.

    [...] A moderação não atua assim: espalhada no conjunto do Estado, põe em uníssono da oitava os mais fracos, os mais fortes e os intermédios, sob a relação da sabedoria, se quiseres, da força, se também quiseres, do número, das riquezas ou de qualquer outra coisa semelhante.⁵ (grifo do autor).

    Sócrates entendia que existiam tantas formas de governo, quanto havia espécies de almas, já que, dentre elas, se entre os magistrados há um homem que se sobrepõe aos outros, esta forma é chamada de Monarquia; e, se de outra forma, a autoridade é compartilhada por vários homens, chama-se de Aristocracia. Todavia, afirmava este filósofo que havia uma única espécie de constituição, tendo em vista que quer o mando esteja nas mãos de um só homem, quer nas de vários, isto não altera, em regra, as leis fundamentais da cidade.

    Veja-se, a preocupação de Sócrates e, de seu discípulo com o desprezo das leis, já naquela época, tendo em vista que a norma, em seu entendimento, se não for obedecida acaba por causar a ruína dos homens e do próprio Estado. E, que somente com a educação seria possível a total obediência às leis, tornando-as efetivas.

    Ainda, seguindo os ensinamentos de Sócrates, tem-se, acerca da forma de governo, que:

    Reputo, pois, uma tal forma de governo boa e correta, tanto para a cidade como para o homem, e julgo as outras más e defeituosas, se aquela for correta, quer objetivem a administração das cidades, quer a organização do caráter no indivíduo. Estas formas de governo são representativas de quatro modalidades de vícios.

    [...] Em minha opinião, aquele que mata alguém acidentalmente comete um crime menor do que aquele que induz alguém a erro a respeito de belas, boas e justas leis. Além do mais, é preferível correr esse risco entre inimigos do que entre amigo!

    Sócrates demonstra, na seqüência, a sua inclinação, no sentido de que o governo deve ficar a cargo daqueles que possuem, não só conhecimento, como também a experiência, obtida empiricamente, em detrimento daqueles que se limitam apenas à especulação.

    Sócrates entendia que na Democracia, o povo era a classe mais numerosa e a mais poderosa, quando unida. E, o povo tem o costume de por à sua frente um homem, cujo poder alimenta e engrandece. Surge, portanto, o tirano, cuja raiz se encontra no protetor, como um lobo que, na pelo de um cordeiro, simula-se preocupado com os que se encontram a sua volta e, [...] nos primeiros dias, sorri e acolhe bem todos os que encontra, declara que não é um tirano, promete muito em particular e em público, adia dívidas, distribui terras pelo povo e pelos seus prediletos e finge ser bom e amável para com todos. ⁷ Todavia, após se sentir tranquilo e confiante, incita a guerra, para que o povo tenha necessidade de um chefe.

    Os ensinamentos deixados por Sócrates são inúmeros, todavia não há como, neste estudo, esgotar referidos ensinamentos, até porque não é este o objeto desta pesquisa.

    Dando seqüência, ao estudo do Estado, em face dos pensamentos filosóficos da História, tem-se o sucessor e, discípulo, de Sócrates, Platão (aproximadamente 428/7-348/7 a.C.), sendo que, como seu grande mestre, também questionava a República e, pregava que o sábio deveria governar, pois entendia que a Justiça depende do saber. Na sua obra A República, ele expõe suas ideias políticas, bem como as filosóficas, além de outros conceitos, como Justiça, trazendo à tona os ensinamentos de seu grande mestre, o qual teve suas obras compiladas pelo próprio Platão.

    Platão, assim como seu mestre, pregava a Justiça, entendendo que esta pertencia à classe dos maiores bens, devendo ser perquiridos não só pelas suas consequências, mas, de forma mais incisiva, por eles mesmos.

    Platão iniciou seus estudos da ordem social com uma definição e uma análise do conceito de justiça. O Estado não tem outro fim, ou um fim mais elevado, do que ser administrador da justiça. Mas, na linguagem de Platão, o termo justiça não significa o mesmo que na linguagem comum. Tem um significado muito mais profundo. [...] É um princípio geral de ordem, regularidade, unidade e legalidade.

    Além disso, Platão buscava não um Estado melhor (diferentemente de outros filósofos), mas sim um Estado ideal, o qual estaria embasado nos princípios de Justiça. Até porque, para ele, o Estado teria por finalidade a obtenção da justiça. E, Platão não podia substituir simplesmente um sistema político ou forma de governo por outro novo e melhor. Necessitava, desse modo, introduzir um novo modelo e um novo postulado ao pensamento político. Platão entendia, assim, que os governantes deveriam governar de forma a perseguir a justiça, utilizando-a como mola propulsora para a construção do Estado.

    Ernst Cassirer lembra que, Platão, em sua juventude, pretendia fazer parte da estrutura do Estado ateniense, tendo, todavia, abandonado tal pretensão quando se tornou discípulo de Sócrates, passando a ser um estudioso voraz da dialética. Mas, foi a própria dialética que o levou novamente à Política, pois Platão percebeu que o conhecimento que Sócrates exigia não se podia conseguir enquanto o homem permanecesse cego acerca da questão principal e enquanto não penetrasse efetivamente no alcance da vida política, pois a alma do indivíduo está sujeita à natureza social, não tendo como separar uma da outra. Sendo interdependentes, se a vida pública é corrupta, a vida privada não tem como se desenvolver e nem alcançar seus fins. Platão, em sua obra República inseriu uma descrição dos perigos aos quais se expõe um indivíduo dentro de um Estado injusto e corrompido. Ainda, Ernst Cassirer, ao pinçar trechos da República traz que:

    Sabemos que toda semente ou toda coisa que cresça, seja animal ou planta, quando não encontra alimento, ou clima, ou terreno apropriados, sofre tanto mais por estas privações quanto mais vigorosas sejam. O mal é pior inimigo dos bons do que dos maus. [...] O mesmo ocorre, pois, com essa natureza que temos assinalado ao filósofo, o qual, quando recebe a educação apropriada, chega necessariamente a produzir todos os frutos da virtude, porém se, pelo contrário, a planta é semeada e cresce em terra ruim, então produz, necessariamente, todos os vícios, a menos que seja salva pela intervenção divina. Esta foi a idéia (sic) fundamental que conduziu Platão, desde seus primeiros estudos da dialética, ao estudo da política. Não podemos proceder a uma reforma da filosofia sem nos empenharmos em reformar o Estado. Se desejarmos trocar a vida ética dos homens, este é o único caminho. O primeiro problema é o mais urgente, que é encontrar a verdadeira ordem política.

    É perceptível que Platão preocupa-se com a necessidade de conjugação da ética com o próprio Estado, entendendo que tudo passa pelo Estado, sendo que se este contiver vícios vai viciar todo o resto. Verifica-se, pois, a importância do Estado para a construção de uma sociedade mais justa e, portanto, com mais dignidade.

    Ao concluir o pensamento de Platão, Ernst Cassirer aponta que, para aquele filósofo, a manutenção do Estado não pode assegurar seu êxito material, nem pode de outra forma, garantir a sustentação de certas leis, sendo que, ainda, as leis (escritas ou não) precisam estar arraigadas na mente do povo, para que possam vincular, já que sem esse apoio popular e, moral, a força do próprio Estado pode ficar em perigo.

    Na seqüência, tem-se Aristóteles (aproximadamente 384-322 a.C.), outro grande filósofo grego, cujos pensamentos sempre estiveram muito voltados para com a Ética, sendo o autor de Ética a Nicômaco (onde trata dos tipos de busca da felicidade pelo homem) e Política, entre outros textos. Para o mesmo, a Ciência Política deveria estar embasada na prática, devendo esta prática ser realizada com ética, já que, para ele, o homem bom é aquele que está bem preparado para governar, pois [...] o bom governante é um homem bom e sensato, e que aquele que quiser ser um estadista deverá ser um homem sensato. ¹⁰

    Dentro da obra Política, Aristóteles discorre acerca do que a Ciência Política deveria estudar, conforme trazido por Mendo Castro Henriques, em introdução e comentário à referida obra:

    I. A ciência política deveria estudar (1) o Estado ideal, (2) aquelas Cidades que podem ser melhores obtidas sob circunstâncias especiais, e até mesmo (3) aquelas que são essencialmente ruins. O estadista deve, algumas vezes, ser capaz de tirar o melhor de uma constituição ruim.¹¹

    Veja-se a preocupação, que sempre foi constante, da necessidade de um Estado voltado para a busca de um ideal, de um Estado voltado para as necessidades da sociedade que o formam, o que demonstra desde cedo, a preocupação social, na qual se encontra presente a própria dignidade da pessoa humana, já que impossível conseguir a efetividade do bem comum sem se preocupar com a dignidade do indivíduo.

    Aristóteles trata de um Estado ideal, no qual [...] a idéia (sic) de um Estado constitucional implica que seus cidadãos são considerados iguais por natureza. Não obstante é preciso distinguir os que comandam de seus comandados [...] ¹² E, além disso, para este filósofo, o melhor regime político seria aquele em que o grupo governante mostrasse a excelência humana, em especial, as virtudes éticas, tendo em vista que o homem atinge a real felicidade, por intermédio da virtude, sendo que referidas virtudes só poderão ser realizadas na esfera da sociedade política. Assim, o Estado deve se preocupar com a virtude e, conseqüentemente, com a felicidade de cada indivíduo. E, para a felicidade plena, o indivíduo tem que ter garantida a plenitude de sua dignidade. Lembrando-se que havia à época distinção entre homem livre e escravo, entre homem e mulher etc., sendo considerados cidadãos apenas uma pequena parcela da sociedade, portanto, apenas essa pequena parcela possuía direitos e, podendo, assim, galgar a plenitude de sua dignidade.

    O método utilizado por Aristóteles é empírico, baseado, portanto, na experiência. Na obra Política, o que se propõe [...] é oferecer uma análise descritiva das várias formas de Constituição. Mas, precisamente porque é um observador empírico, encontra que é impossível negar a fundamental desigualdade entre os homens. ¹³

    Para este filósofo, os homens são desiguais, tanto em caráter, quanto em seus dons naturais, do qual se verifica a necessidade da escravatura, pois segundo Aristóteles, nem todos os homens de uma sociedade são considerados cidadãos, não fazendo parte, portanto, de forma efetiva, da sociedade da época, determinando-se a existência, para ele, de escravos natos, em face de que [...] um cidadão é definido como aqueles cujos pais são cidadãos; ¹⁴ e somente os cidadãos poderão ser considerados como iguais. Havendo escravos natos, pode-se dizer que há muitos homens incapazes de governarem a si mesmos, não podendo, portanto, serem membros do Estado. Carecem, pois, de direitos e responsabilidades próprias e devem estar, sempre, ao comando de seus superiores. Para Aristóteles, a abolição da escravatura não é um ideal político e ético, mas uma mera ilusão, sendo que acreditava que os homens não são naturalmente iguais, mas que uns nascem para a escravidão e outros para a dominação, verificando-se, portanto, a importância de se ter governantes éticos e preocupados com o bem comum.

    Sete séculos mais tarde, Santo Agostinho retoma o pensamento de Platão. A cultura medieval, todavia, não foi o resultado imediato do pensamento grego. Com o nascimento do Cristianismo surgiu uma força superior que, a partir de então, absorveu todo o interesse prático e teórico. O Estado ideal de Platão estaria além do tempo e do espaço; não teria, assim, um aqui e agora. Os pensamentos do filósofo grego, na doutrina de Santo Agostinho, passam a ter pensamentos de Deus, sendo que em conformidade com essa transformação, todos os conceitos da filosofia grega teriam que passar por uma mudança radical. Com essa metamorfose, nem sequer o Estado ideal, descrito por Platão, seria um porto seguro para Santo Agostinho, já que o Estado, ainda que perfeito não tem como satisfazer os desejos humanos, posto que o único repouso verdadeiro, para o ser humano, é o repouso em Deus.

    Ainda sobre a Idade Média, pode-se dizer que a República de Platão foi considerada sempre como uma utopia política, ainda que fosse o modelo clássico de pensamento político, já que tinha pouco ou nada a ver com a vida política; a vida real. Todavia, averiguando-se a vida pública e social da Idade Média, essa ideia teria que ser abandonada, tendo em vista que o pensamento de Platão do Estado legal mostrou-se, nesse período, possuir uma força real e ativa, a qual influenciou tanto os pensamentos dos homens, como suas ações. A ideia de que o foco principal do Estado é a Justiça foi incorporada pela teoria política medieval, tendo sido aceita por todos os pensadores da época, tendo penetrado em todas as formas da civilização da Idade Média. Platão, tendo sido citado por Santo Agostinho, afirmava que a Justiça é o fundamento do Direito e da sociedade organizada, sendo que onde não há Justiça não há comunidade. E, para haver plenitude da Justiça, necessário se faz a promoção do bem estar social, e, conseqüentemente, garantir-se a dignidade da pessoa humana.

    Apesar desse ponto de toque entre a Teoria Medieval e a Clássica, há, da mesma forma, diferenças substanciais, não somente em um viés teórico, mas também, com consequências práticas. Em conformidade com os princípios basilares, o período medieval não podia conceber uma Justiça abstrata e impessoal, já que na religião monoteísta (lembrando que a Igreja Católica dominava à época) a lei tem que sempre se referir a uma fonte pessoal e sem um legislador não pode haver nenhuma lei. E, em face da Justiça não poder ser considerada algo puramente convencional; acidental, o legislador tinha que estar acima de toda a força humana. A vontade que se manifesta na Justiça é uma vontade sobre-humana. Ora, a concepção de bem de Platão não requeria nenhuma autoridade sobre-humana, pois para esse filósofo cada ideia existe e subsiste por ela mesma, tendo uma validez objetiva e subjetiva. Esse princípio, todavia, não podia ser aceito por Santo Agostinho ou pelos dogmas da época, porque para aplicar as ideias de Platão fazia-se necessário converte-las aos pensamentos de Deus, redefinindo-as e adequando-as, portanto. Tudo deve submeter-se a um poder mais alto, sendo que no pensamento cristão só existe a lei divina, devendo as pessoas, a natureza e todas as leis humanas curvarem-se diante dela. Não podendo ser diferente com o próprio Estado, que deveria, também, se curvar às leis de Deus. Esse reflexo ocasionou uma procura, ainda que tímida, pela dignidade da pessoa humana, posto ser o homem, filho de Deus, criado à semelhança d’Ele, motivo pelo qual, deveria se resguardar a dignidade do homem.

    Santo Agostinho, em uma de suas obras, afirmou que Deus fez o homem senhor dos animais, mas não senhor de outros homens, não lhe dando poderes sobre as almas humanas. Assim, pode-se concluir que a autoridade política não pode jamais ser absoluta, estando sempre subordinada às leis da Justiça. E, essas leis são sempre invioláveis e irrevogáveis, pois exprimem a vontade do legislador supremo (Deus). No pensamento medieval nem mesmo os reis estavam isentos de se submeter a essa lei, sendo que o princípio divino dos reis estava sempre submetido a certas limitações fundamentais.¹⁵ E, um dos limites que se destaca é a própria dignidade da pessoa humana, já que o pensamento da Igreja estava voltado, de alguma forma, para o ser humano, por este ser filho de Deus, possuindo, portanto, uma parcela do divino e, o divino deveria sempre prevalecer sobre o mundano; sobre o mundo terreno. Assim, a Igreja impedia que atrocidades fossem cometidas pelos soberanos contra os homens comuns, limitando, assim, a própria soberania.

    Sete séculos após Santo Agostinho, Gregório VII continuava repetindo a mesma tese. Salientava que o Estado era obra do diabo, sendo, portanto, pecado. De qualquer forma, até essa teoria radical deveria fazer algumas concessões ao Estado terreno. Deveria reconhecer que a ordem política possui, ao menos, um valor condicional (já que exerce, ainda que de forma limitada, uma função indispensável). É certo que não tem a capacidade de levar até o caminho verdadeiro, mas evita que os homens padeçam de algo pior: a anarquia. O problema do Estado encontra-se arraigado como o pecado original, sendo profundo e incurável, todavia não é algo absoluto, mas relativo. Ao comparar o Estado com a suprema e absoluta verdade religiosa, verifica-se que o primeiro está muito abaixo da referida vontade religiosa (que pretende representar a vontade de Deus), todavia verifica-se a sua necessidade em face dos homens, os quais se não fosse o Estado estariam no mais completo caos. Em um mundo corrompido e desorganizado, o Estado terreno é o único modo de se tentar manter o equilíbrio.

    São Tomás de Aquino jamais duvidou dos dogmas e ensinamentos da Igreja Católica, entretanto encontrou um novo mestre e uma nova autoridade. Para ele, assim como para Dante, Aristóteles era o mestre do conhecimento. E,

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