Direito Constitucional - panoramas plurais: Volume 1
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Sobre este e-book
Na coletânea Direito Constitucional: panoramas plurais temos cinco trabalhos que são ligados não somente pelo fato de se inserirem no âmbito do Direito Constitucional, mas por trabalharem de forma crítica suas temáticas, preocupados em fugirem do usual, do senso comum e do que já está disposto na doutrina brasileira. Isso fica muito claro na obra. A preocupação em interpretar a realidade experimentada pelos indivíduos também se fez presente na obra, sempre tendo como presença constante a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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Direito Constitucional - panoramas plurais - Janaina Helena de Freitas
A AUSÊNCIA DO TERMO SER HUMANO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Joelma Boaventura da Silva
Mestra
jbomfim.adv@gmail.com
DOI 10.48021/978-65-252-5198-1-c1
RESUMO: O presente texto aborda a ausência do termo ser humano na Constituição Federal Brasileira de 1988, analisando as principais terminologias presentes no texto constitucional como: indivíduo, cidadão, sujeito, pessoa, homem, mulher e todos com seus respectivos desdobramentos, além de tratar alguns dos atributos humanos significativos para a construção de um direito humanizante dentro da perspectiva do direito social. Discorre sobre o caráter simbólico de tal ausência apontando as consequências da mesma para a efetivação de direitos básicos. Apresenta uma abordagem jurídico-filosófico, perpassando pela crítica ao caráter patrimonialista do Direito Brasileiro. Utiliza-se de metodologia qualitativa através do procedimento de revisão de literatura e análise de documento normativo.
Palavras-chave: Ser Humano; Constituição Federal; Poder simbólico; Direito social.
1. INTRODUÇÃO
O texto que ora se inicia tem como tema a ausência do termo ser humano na Constituição Brasileira de 1988 – CF/1988. Tal temática é fruto da constatação que a simples falta da expressão ser humano no diploma jurídico pode trazer consequências a uma parcela da população, tendo em vista que tal ausência no texto constitucional prejudica o acesso dessa população à Justiça. A falta de tal terminologia e de seu consequente significado na referida Constituição deixa um vazio sócio–filosófico, ao tempo em que cria estigmas sobre algumas categorias. Parece haver um contrassenso, tal ausência em texto jurídico tão avançado historicamente, pois o fato de constar na Constituição referência à dignidade da pessoa humana, não estabelece uma correspondência idêntica com dignidade do ser humano.
Questiona-se a existência de denominações tão variadas sobre ser humano na CF/1988, e a que fins podem servir tão multifacetadas denominações num texto jurídico. Até que ponto a utilização pontual de tantos conceitos para o mesmo ser não produz uma fragmentação da visão do mesmo? Pode-se pensar também, que uma vez existindo tal fragmentação, os direitos podem estar comprometidos de alguma maneira.
Por que a Constituição não contempla a todos naquilo que os difere dos demais seres da natureza e que justamente habilita à vida em grupo? Por isso chega-se a seguinte problemática: Quais as consequências da ausência do vocábulo ser humano na legislação constitucional brasileira? Tem-se a hipótese de que parcela significativa da população está excluída de garantias e direitos fundamentais. Outra hipótese que se pode levantar dentro desse tema, está relacionada com a base patrimonialista do Direito brasileiro, enquanto mecanismo de redução de possibilidades de emancipação humana.
A importância do tema está na observância, a saber: o ser humano está graficamente fora da Constituição de 1988, e portanto estaria desprotegido por essa Cártula Constitucional, pois pela máxima do Direito, (que só admite) existe no mundo jurídico, aquilo que existe nos autos, portanto por analogia, não está contemplado no texto legal, logo não é alvo de sua proteção, não lhe é permitido a análise do mesmo dentro desse Direito que é o mais abrangente do ordenamento jurídico.
O tema se torna relevante dentro das perspectivas filosófica e constitucional, pois questiona as possíveis conotações dadas ao ser humano dentro do texto constitucional com suas respectivas consequências.
A maior contribuição desse tema é juntar em torno do texto normativo, as perspectivas filosófica e de linguagem, fazendo assim uma discussão interdisciplinar. O trabalho é feito também a partir da análise de artigos constitucionais, visando deixar claro ao leitor, em que medida os elementos segregatórios ali presentes, podem provocar danos, bem como resulta na necessidade de uma prática emancipatória do ser humano no mundo jurídico.
2. SOBRE A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Para tratar da ausência do verbete ser humano na Constituição de 1988, se faz necessária uma digressão sobre as gerações de Direitos Fundamentais¹, as quais podem ser divididas em três dimensões. A primeira referente aos direitos civis e políticos, enquanto que a segunda dimensão se ocupa com os direitos econômicos, sociais e culturais, estando a terceira dimensão voltada para os direitos solidários, os quais ainda não foram, amplamente, reconhecidos em nível internacional como legalmente executáveis. O Brasil está inserido na segunda dimensão desses direitos, pois incluiu no ápice do ordenamento jurídico, direitos econômicos, sociais e culturais. Pode-se afirmar, portanto que a Constituição Federal é avançada e inovadora, uma vez que nenhum país conseguiu ainda normatizar a terceira dimensão dos direitos fundamentais². Dentro da temática constitucionalista, observa-se que o Brasil optou pelo modelo de ordenamento jurídico discutido especialmente por Kelsen em sua obra Teoria Pura do Direito.
Não cabe, no entanto, um relato prolongado em relação à história das Constituições Brasileiras, tendo em vista que a existência da última Constituição revoga as anteriores. Cabe, todavia, tratar rapidamente de uma das funções da Constituição, a saber: a de propaganda e de educação política, enquanto aquela que tem elevado conteúdo ideológico devido aos princípios de orientação e estímulo de ativação de massas, como bem se percebe em Bobbio (2004)³. Além da função, a Constituição tem conteúdo que é variado, permeado de realidade concreta e que a concepção de Estado ou regime político acaba por influenciar de modo determinante o texto constitucional
(BOBBIO, 2004, p. 259). Daí infere-se que a atual carta Constitucional atende a parte significativa de demandas sociais que estavam sufocadas no período antidemocrático.
Diante das informações anteriormente expostas, é correto afirmar que a Constituição de 1988 tem perspectiva de vanguarda, além de uma legitimidade ímpar, devido ao enfoque dado aos direitos fundamentais, como deixa claro Piovesan (1997). Exatamente por ter esse perfil, é que causa estranheza, a ausência do termo ser humano em um diploma jurídico tão promissor, mesmo sabendo-se que a mera definição ou inclusão de uma terminologia não garante a alteração da realidade, no entanto, sua não inclusão serve como óbice direto à discussão de direitos.
Nesse trabalho, se pensa o ser humano na perspectiva ética admitindo-se a transformação ou ascensão do indivíduo, à categoria que lhe é própria: ser humano. Sendo a Constituição brasileira a norma maior, deveria a mesma contemplar em seu bojo, o maior ser de direito, qual seja, o ser humano, pois se assim o fizesse, as demais normas infraconstitucionais também o fariam por imposição da constitucionalidade das leis. A Constituição Federal faz a nomeação oficial, a qual, segundo Bourdieu (2000) é ato de imposição simbólica. O ato de atribuir nomeação oficial é operado pelo Estado, enquanto detentor do monopólio da violência simbólica legítima.
3. SOBRE ATRIBUTOS DO SER HUMANO
Constata-se que a ausência da expressão ser humano na Constituição Brasileira é uma contradição ante a proposta da mesma. Tal afirmativa se torna plausível, pois que neste artigo toma-se o conceito de ser humano na vertente marxiana⁴, compreendendo esse ser como aquele que produz sua existência e nela se engendra, utilizando de atributos que lhe são inerentes em decorrência da sua condição humana. Essa condição é entendida por Arendt (1991), como mais abrangente do que as condições de vida dadas ao homem
(ARENDT, 1991. p.17/18). O conceito de condição humana é fundamental para a atual discussão, pois considera Arendt que a condição humana compreende algo mais que as condições, nas quais, a vida foi dada ao homem; a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas não correspondem à condição humana.
(1991, p.18). Observa-se que a condição humana vai além de condições de vida dadas ao homem, pois muitas das vezes essa condição de vida é indigna para um ser humano, por não atender ao que seja básico, como saúde, moradia, alimentação e educação, tão bem previsto no artigo 6º da CF / 88. Não é concebido por Arendt (1991) que a condição humana se resuma à condição simples de natureza humana⁵, devido a necessidade de racionalidade do ser humano, que o impulsiona à consciência e à liberdade, como se verá a seguir no texto quando os atributos do ser humano são explicitados. É equívoco atribuir ao somatório de atividades e capacidades humanas, a sinonímia da condição humana, pois o ser humano é bem mais complexo que essa reunião de capacidades e atividades.
Esta perspectiva é corroborada por Bomfim (2001) quando a partir de Marx especifica alguns atributos do ser humano, e dentre eles, destaca-se a liberdade, o trabalho e a consciência. É com base no próprio Marx que se pode tratar do atributo liberdade, enquanto possibilidade de escolha sem coação. No Mundo do Direito tem-se mais coação que liberdade, principalmente, quando não se inclui o ser humano no texto da Carta Magna, ou seja, não há possibilidade de escolha para o ser humano no direito constitucional brasileiro.
3.1. Atributo do trabalho
É fundamental que o ser humano construa sua existência, o que é feito pelo trabalho, mas a ele não se reduz, senão teríamos a alienação. Entende-se trabalho nesse artigo, como algo maior que atividade remunerada através da qual o trabalhador se sustenta. É a atividade vital do homem enquanto objeto de vontade e consciência, pois transforma a natureza e se transforma dentro do contexto socialmente construído pelo coletivo.
O trabalho é uma categoria central da teoria marxiana, pois traz em seu bojo a discussão da alienação, além de ter um caráter teleológico no qual se distingue o homem do animal, pois o primeiro pensa sobre o trabalho e planeja o seu resultado, enquanto que o segundo, pela ausência de razão e de consciência, apenas o executa com base no instinto. Segundo BOMFIM (1996, p.8) o trabalho é um ato de pôr-se consciente, consciente da razão do porquê do seu fazer, consciente do próprio fazer.
Pode-se afirmar que a criação do direito é trabalho exclusivo de ser humano, pois requer consciência do que faz; porque o faz e acrescenta-se para quem faz, daí a necessidade do ser humano se reconhecer no seu trabalho, e por esse reconhecimento, empreender criação e produção de sua existência, não meramente executando, operando, como fazem os animais.
3.2. Atributo da consciência
Nesse contexto racional do trabalho, o ser humano desenvolve a consciência e a dignidade. Consciência segundo BOMFIM (2001)⁶, tem três abordagens, sendo duas delas úteis a esse trabalho, a saber: a primeira incidindo na reprodução da realidade pela via do conhecimento; a segunda é o momento teleológico do ser humano perceber-se como ser na realidade. Conclui-se que independente de qualquer uma das duas abordagens dadas a consciência, só o ser humano pode desenvolvê-la, pois é um atributo humano. A existência do ser humano construída sem alienação, pela via do trabalho, portanto é expressão de sua consciência.
É lícito afirmar que a consciência do ser humano de si, de sua própria existência e sobre as demais espécies, logicamente, repercute na sociedade, por ser essa uma construção social e coletiva. Na coletividade, o ser humano cria o Direito com seu arcabouço normativo, portanto o Direito é criação do ser social. O Direito deve contemplar, alcançar e resolver conflitos