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Juntando Prosa
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E-book471 páginas5 horas

Juntando Prosa

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Sobre este e-book

São crônicas escritas ao longo de sua vida, assim como textos sobre assuntos gerais. Estimulada por amigos e leitores, resolveu fazer uma seleção de suas crônicas e textos, transformando em livro o produto de seu trabalho. Nasceu então "JUNTANDO PROSA", no qual procura mostrar um pouco de si mesma e suas observações frente aos acontecimentos e à vida, ao longo de muitos anos.

Muitas vezes sua inspiração é legado dos próprios leitores, com palavras de incentivo e carinho: no dizer de um professor, a leitura destas prosas o animaram a continuar sendo professor; outra leitora deixava chegar à autora as muitas vezes em que se emocionou com o que lia; um jornalista brilhante comparou-a a personagem de um livro de Mário Palmério, personagem considerado uma "praga consciente", tratando-se de política; outra escreveu com delicadeza: "dona das palavras, intérprete dos sentimentos, descrevendo o cotidiano cheio de nuances"; para um escritor uberlandense, o que Marília escreve "possui a leveza e o descompromisso da crônica, como a aragem passa pelo roseiral e se vai, mas deixando o cheiro gostoso da flor na lembrança da gente".

No "Juntando Prosa", realizou-se um sonho acalentado por muitos anos. Um livro se fez presente, concreto. Com o incentivo de família e de muitos amigos, apresenta para vocês um pouco dos seus escritos, em que alinhava sentimentos, acontecimentos, paixão, amor e saudade, tudo isso um resumo dela mesma! Boa leitura!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de dez. de 2023
ISBN9786527003762
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    Juntando Prosa - Marilia Cunha

    Saudade de mim...

    Vai muito longe este tempo... Bem, nem tão longe assim. Se minha aurora já era, o crepúsculo ainda tarda. Em termos mais claros: não sou tão velha! E procuro muitas vezes recusar atitudes saudosistas. Saudades... Saudade dói. A gente quer escapulir dela, brincar de pique, ficar escondida atrás do murinho vendo a saudade passar e rir gostoso se ela não nos acha. E de vez em quando, sem esperar, ela diz nas nossas costas: Peguei! Pegou está pegado, não tem jeito de fugir.

    E a saudade pegou-me desprevenida com um montão de lembranças. Lancheira em punho chegávamos eu e Marlene (minha irmã) no colégio. Amedrontadas, ressabiadas. Que mundo este tão grande, tão desconhecido ia se abrir para nós? Muros altos, salas grandes, longas mulheres vestidas de negro, algumas de branco, todas longas... Ficamos ali, apertadinhas uma na outra. Mãos suadas, o coração batendo que nem bumbo em parada de sete de setembro. Caladinhas. Quietinhas. O olhar perscrutador se intrometendo em tudo. Uma ponta de inveja de outras crianças já íntimas do colégio, correndo pelos pátios, de mãos dadas com as mulheres longas...

    Eu me vi de novo amedrontada, no primeiro dia de aula, presa naquela fortaleza imensa. Aos poucos, sob os cuidados da Ir. Rosalva e Ir. Misael começava a me sentir protegida. O medo e a insegurança indo pra cucuia... Em termos: nunca perdi o medo das silenciosas salas de piano, do salão de teatro vazio onde um simples murmúrio provocava ecos estranhos. E da Nossa Senhora da gruta que, diziam as meninas, vigiava passos errados e chorava pra quem pecasse. Passava umas temporadas sem olhar a Santa. Medo do inferno, mil vezes pior que o de Dante, descrito pela Ir. Reginalda. E um pedido todas as noites para Jesus: Eu sei que sou uma santinha, que nem Santa Teresinha, mas não precisa aparecer para mim não, tá? Medos infantis, criados pela imaginação fantasiosa de criança e alentados pelo ar de profunda religiosidade que se respirava no Colégio.

    Saudade dos teatros... a primeira vez que participei fazia o papel de boneca, vestida de holandesa. Treinei dias a fio uma poesia bonitinha que falava de moinhos girando e tulipas. O dia chegou. Plateia numerosa. As bonecas, cada uma de um país, declamando e cantando coisas de sua terra. Quando chegou a minha vez, pés apertados em tamanquinhos de pau, luzes, povão esperando, deu um branco na Holanda. A Marlene falou: Recita, Marília! Recitar o que? Apavorada, emocionada, eu não sabia nem por onde começar. Foi quando comecei a acreditar nos tratamentos de choque. Um beliscão da mana deu corda na boneca holandesa e trouxe à consciência a poesia toda, de cor e salteado. Um alívio...

    As missas domingueiras, cheiro de flor e incenso, véu branquinho teimando em escorregar da cabeça, emoção genuína quando a campainha tilintava sonora anunciando a eucaristia. Silêncio pesado e místico se intercalando com o coro da Ir. Ilza, palavras latinas se espalhando pelo ar.

    Houve fase de rebeldia, marca registrada da adolescência. Jovem é jovem em qualquer tempo, com precisão de modificar o status quo. Livros de M. Delly se fechando para Somerset Maughan, Stephan Zweig e até Kafka. Necessidade de afirmação. E a hora gostosa do fim da aula, três esquinas abaixo o namoradinho esperando. A pasta trocava de mão. Poucas palavras. O negócio era caminhar bem lento para controlar o tempo.

    Saudades da vigilância severa. A Ir. Idelizia qual sentinela, firme no seu posto. Apesar da vigilância a porta do parlatório era o caminho mais certo para uma retirada estratégica. Saudade da enfermaria, onde o indefectível purgolete dava conta de todas as mazelas. Das provas escritas, vinte pontos com três questões cada uma, todas dissertativas. Das provas orais (que naquele tempo havia de se espremer bem o aluno) geradora de dor da barriga geral.

    As passeatas, ai as passeatas! A rua Virgilio de Melo Franco numa profusão de uniformes, bandeiras e a emoção maior quando o Tiro de Guerra, com sua estrondosa fanfarra, chegava para marcar o ritmo. E descia glorioso o Colégio Sagrado de Jesus atrás da banda, ocasião propícia para paqueras, principalmente para as internas que passavam longos e tenebrosos invernos sem ver espécimes masculinos.

    Ir. Eloyta, Ir. Gáudia, Ir. Olga, Ir. Gema, Ir.Solange, Ir. Magna, Ir. Amália, Ir. Guida, Ir. Giovanni, Ir. Galgani, Ir. Dulce, ir. Neumann, Ir.Eunice e tantas outras que povoam o universo de nossas recordações. Aprendi muito com todas. Elas repartiram comigo um pouco de suas vidas.

    Entrei de novo no colégio. Ali estavam as paredes altas, os corredores compridos, a capela luminosa e florida, o pátio, a gruta, algumas antigas professoras e colegas. Senti-me envolvida por sentimento misto de alegria e tristeza. Senti saudade de tudo e de todos. E me arrepiei com uma sensação estranha... Saudade de mim!

    * Publicado no Jornal Gazeta do Triângulo (Araguari) -1979

    O velho na praça

    Sentou-se com esforço no banco da praça. Ajeitou-se demoradamente procurando uma posição melhor para as pernas trôpegas. Pernas desobedientes, quase centenárias. Ponta do guarda-chuva fincada no chão, apoiou as mãos no cabo e ergueu com dificuldade a cabeça. Queria ficar assim, altivo, firme, recebendo o sol de rijo na cara barbuda. Cara de Papai Noel. Sol gostoso, quente. Bom para afugentar friagem que se instala em osso velho.

    Chuva ou sol o guarda-chuva preto sempre acompanhando os passeios matinais. Guarda chuva é menos senil que bengala. E serve bem como apoio. Corpo desobediente. Cansado. Amarrotado. O sol trabalhando energia na carne fria.

    Suspirou inquieto. Procurou mais ar. Diabo de pulmão preguiçoso. Quanto ar dando sopa e ele enjeitando. Diabos! Tinha de aproveitar bem aqueles momentos. Encostar, largar o corpo. Mas qual! Andaram reformando a sua praça. Fizeram misérias. Deram fim naqueles bancos acolhedores, escondidos no meio dos pés de beijo. Banco para dois, onde ele e a finada esposa sentaram-se muitas vezes. Fizeram planos, trocaram carinhos. Sentaram-se apenas, no silêncio, sentindo a vida. Agora a moda é banco coletivo. Para caber mais gente. Está usando gente amontoada. Mas qual! Ninguém para se sentar nos bancos. O assento é ruim mesmo, espanta qualquer um. A vida esquisita, corrida, seca, enxota o povo do jardim, desabriga o amor, aniquila o amor.

    Que desejo de não mais voltar para o quartinho, na casa da filha. O seu cantinho - diziam eles. Riu irônico... Nada mais tinha de seu. Nem vontade. Todo mundo a mandar, a decidir, a resolver por ele. A fala quase centenária morta no peito. Não se queixava não! É difícil mesmo conversar com pessoas que escutam pouco. Dá nervoso. Para que? E depois, já tivera muita conversa com o mundo, queria agora falar para si mesmo. E para a finada. Deus a tenha!

    Uma bola tonta lhe bateu no braço. Atrás da bola o moleque. Na boca do moleque o nome feio gritado para o companheiro. Menino atrevido, sem educação! Nem uma desculpa. Devia estar pensando que ele era uma planta. Atrevido! Tivesse força puxava-lhe as orelhas, dos netos, dos bisnetos, de todo mundo. Era bom ter raiva. Estava vivo, com raiva, tomando sol. Praça esquisita. Tiraram o relógio, derrubaram o coreto. Praça sem história. Nunca mais andou por ali, como fazia nos velhos tempos. A força não dava, no terreno posto irregular de propósito. Não se sabe para que... Modernismos. Bah! De antigo só ele, ansiando algum calor, figura solitária no banco comprido da praça.

    Precisava ir, já tardava. Hora de voltar para o seu cantinho. Riu irônico: Seu cantinho... Nada mais tinha de seu. Só o corpo cansado, amarrotado, custoso de carregar, querendo ficar mais leve, voar, voar que nem o da finada. Deus a tenha! E aquele mundo encantado, aquela vida escondida bem dentro de sua cabeça, refúgio de pensamentos, de lembranças, de existências. Só ele sabia o caminho.

    Custoso levantar. De pé, o olho miúdo piscando repetidamente querendo enxergar melhor, o cabo do guarda

    chuva apertado na mão. Respirou fundo. Queria guardar a volúpia do ar brincando em volta. Relutou em começar a caminhada. Medo de não voltar mais à praça. Precisava ficar firme, fazer força para não parecer muito fraco. Andavam falando em proibir o passeio matinal. Velho demais para andar sozinho o velho sempre sozinho. Diabos!

    Como um sonâmbulo entraria na casa. Sentar-se-ia num canto. A agitação, o vozerio, o latir dos cachorros, a água saindo das torneiras, o barulho dos pratos, o sobe e desce escadas, o canto da cozinheira, o cheiro da comida, o toque da campainha, telefone sem parar, barulho de carro chegando, alguém lhe perguntando como ia sem esperar resposta, o olho fechando devagarinho, a fuga para o mundo encantado, seu mundo, bem escondido, do qual só ele sabia o caminho, só ele...

    Nota: texto publicado no Jornal Gazeta do Triângulo (Araguari) em 1979.

    O CALIL…

    Minha secretária do lar anunciou que iria entrar em recesso domingueiro. E me vi, domingo, 10 horas da madrugada, depois de um despertar difícil, muito sininho bimbalhando na cabeça denunciando os birinaites de sábado à noite. Um olho batendo desconsolado no temível fogão e nas monstruosas panelinhas e outro namorando aquele céu azul e sol brilhante que entrava pelo vitrô.

    Convite regateiro a curtir seu calor... A opção não foi difícil. Aliás, as opções são difíceis quando não se sabe o que se quer e eu, sabia perfeitamente o que era melhor.

    Bati em retirada sem qualquer constrangimento. Já cheguei a conclusões várias, baseadas na vivência, na reflexão e na intuição. Dentre elas: não queira ser coroada rainha do lar; no final da cantilena, você vai ser escrava dele. Tudo bem. Todos a postos, meia volta, marchar para a Churrascaria Camponesa, do Celso e da Santinha.

    Na Churrascaria encontramos o Calil. Aquele homenzarrão sentado à mesa, desapetrechada de churrasco e feijão tropeiro, mas guarnecida da cerveja gelada que ele sorve com prazer, cada gole uma visível homenagem ao jogo da vida, muitas vezes mazelenta, cheia de noves-fora, mas vida.

    Degluti o almoço acompanhando com atenção o pensamento do Calil, meu amigo. Apartes poucos, que certos momentos e certas pessoas merecem ouvidos atentos.

    O Calil, sentimental, vive um pouco de lembranças, rememorando amigos que se foram. Não recordações fúnebres e chatas que transformam qualquer domingo em sexta-feira da paixão. Cada amigo um olhar prá cima, um gesto de saudade... Do meu pai ele diz a toda hora: O Ranulpho, aquele velho malandro e sem vergonha, embarcando assim sem mais nem menos, sem deixar endereço prá gente manter uma correspondência. O velho Ranulpho, lá de cima deve rir matreiro e comentar com os anjos: passei mais uma finta no turco.

    O Calil, andar apressado por vocação e feitio, fugindo da ginástica, da moderação, do tem que isso, do não deve aquilo, que na cabeça dele a morte chega a qualquer hora, sem marcar quilometragem ou desempenho.

    Há tempos atrás, cedendo a pressões, resolveu fazer um checkup. O médico, evidentemente, pediu radiografias. Hoje em dia a gente nem entende mais como já existiu medicina e médico sem existir radiografia. O Calil pensou naquele mundo de pedacinhos, separando sua integridade em cabeça, tronco, membros. Não gostou da imagem. Passou no Simão e mandou tirar um retrato assim, com a marca do aprumo e da sorridência. Levou o dito para o médico e disse: Toma aqui a minha radiografia. Tudo bem por fora. Se lá por dentro tiver algum parafuso frouxo, eu não quero nem saber. O parafuso que se dane.

    O Calil gosta da vida transparente, sem medo, sem recusas, sem cuidados excessivos. Vida pelas metades, isto é vida? Vida treteira e manhosa, cheia de porões escuros e escadas falsas ele enfrenta de peito aberto, muito humanamente. O Calil advogado, professor, excelente profissional. O amigo leal que me abraça com calor de pai. O ser humano sensível e admirável, cuja vida tem horário e vaga certa para aquela paradinha reflexiva e necessária.

    Saímos da Churrascaria, o sol e a Santinha de luz baixa, a moleza do fim de domingo convidando a um cochilo. O Calil tomou seu rumo, nós o nosso. E eu disse para o marido:

    - Tá vendo, Adilson? Se eu tivesse ficado em casa, enfurnada com a poeira e as panelas, o momento bom não iria acontecer. Ele respondeu:- É mesmo, Marília, é mesmo...

    *Calil Canut, grande advogado e professor, um homem que imensos serviços prestou a sua comunidade e a sua pátria. Um amigo leal. A ele minha homenagem e eterna e carinhosa lembrança.

    *Publicado no jornal Ventania (Araguari), em 17/09/1981

    Lembranças de professora

    Idos de 1965. Entrei na sala de aula. Em cima da mesa, um bilhete anônimo: A bunda da professora é grande e feia. Calmamente dobrei o papel, olhei fixo para os alunos procurando decifrar rostos indecifráveis e tergiversei mais ou menos 30 minutos sobre a nobreza do professor, seu valor e importância, a amizade e interesse que dedica aos alunos, querendo ardentemente comunicar um sentimento de dignidade que deveria existir nas relações professor-aluno. Alguns até choraram... No outro dia, em cima da mesa um bilhete anônimo, a mesma letrinha: Desculpa eu. A bunda da professora é pequena e bonita. Dobrei o papel, peguei o giz e comecei a passar os exercícios no quadro. Chega de discurso moral. Afinal de contas, a tragédia toda acabou residindo apenas numa questão de antônimos...

    XXXXXXXX

    Dia de matrícula. Aquela fila comprida de pais alvoroçados, preocupados com vaga para os filhos. Chega a vez de um velho, mas velho mesmo:

    - Bom dia!

    - Bom dia, dona. Eu quero matriculá o Zezinho.

    (O Zezinho do lado, esperando. Magrinho e pequenininho. Olhar curioso apreciando o lado burocrático da coisa).

    - Que gracinha! O Zezinho vai entrar para a nossa escola? Que bom heim, Zezinho? Vai aprender muita coisa. O senhor é avô dele?

    - Não, dona. Sou pai mesmo!

    Fiquei deveras espantada. Não escondi a surpresa!

    - Uai, dona. Só porque a espingarda é veia não vai sortá fogo?

    Riu o velho satisfeito, levantando o Zezinho, produto de sua inconteste virilidade. Riu a fila comprida que se estendia atrás dele. Ri eu... Por que eu tinha de fazer aquela cara de espanto e interrogação?

    XXXXXXXXX

    Aproximava-se a festa da 1ª. Comunhão. Naquele ano resolvemos abolir os vestidos compridos, enfeitados, singulares e aderir à uniformização. Atitude meio revolucionária à época, atitude sadia, visto a maior parte dos alunos não poderem arcar com grandes despesas. Por que transformar uma 1ª Comunhão em festa de inveja e comparação?

    Tudo foi organizado cuidadosamente e chegou o grande dia. Dois anjos líricos e lindos, estes sim, vestidos como anjos mesmo, com asas e tudo, começaram a puxar os meninos para a mesa da comunhão. O anjinho ia para a ponta do banco, puxava a primeira fila, esperava os iniciantes comungarem, levava a fila de novo para o banco. Puxava a 2ª. fila e assim por diante. Acontece que por volta do 4º. banco, o anjo lírico e lindo cutucou o menino da ponta para que ele saísse e puxasse a fila. A criatura nada, absorta a olhar para outro lado, boca aberta, encantada talvez com a igreja cheia, as flores, o canto. O anjo lírico e lindo cutucou novamente, com um pouquinho mais de força. Nada. O menino que devia acompanhá-lo continuou absorto a olhar para trás, boca aberta. Os outros da fila esperando. Tudo ensaiado. O anjo aborrecido perdeu as estribeiras, lascou um tabefe com força no boquiaberto menino que desceu imediatamente das nuvens e saiu atrás dele, afobado e vermelho. Da 5ª. fila em diante tivemos um anjinho mais humanizado, mais apressado, resmungando coisas ininteligíveis, um anjinho frustrado com os erros terrenos, metade do lirismo indo embora com o cansaço das idas e vindas.

    Sinto que, vez em quando, meu anjo tutelar me pega desprevenida, boca aberta; meu anjo invisível, sem asas, talvez sem corpo, meu anjo. O que espero mesmo é que ele nunca deixe o saudável costume de, igual ao da 1ª. Comunhão, presentear-me com um sonoro tabefe todas as vezes que eu precisar. Do tabefe, é claro. Do anjo eu não posso prescindir para nada...

    *Crônica publicada na Gazeta do Triângulo (Araguari) em 24/10/ 1981

    Promessas e esperanças

    Cada um festeja como pode a entrada de um Ano Novo. Começo de ano é sempre para ser comemorado, como a cutucar velha chama ardente e ansiosa que não pode nunca se apagar no coração do homem: a Esperança! De teimosos muitas vezes vivemos, que a vida é repleta de ciladas e a caminhada escorregadia. Cadinho de medos, angústias, dúvidas, isto aí o coração dos homens. Modernamente equipados também de pontes safenas, válvulas eletrônicas, marca passos e outros bichos estranhos. Mas sempre um lugarzinho reservado para a boa, velha e eterna esperança, mola a animar o passo seguinte. Se não é a esperança o que é da vida?

    O 1992 nasce de parto laborioso, cercado de um clima de insegurança. Facilidade não é o forte do momento e não é necessário muito esforço para se constatar o fato. Não podemos nos cercar de clima de completo otimismo, sinônimo atual de alienação. Nem tão pouco viver clima fatalista, terror de véspera de hecatombe final. O negócio mesmo é enfrentar o temível, com as armas da coragem, da garra e da vontade de viver.

    Vamos rir sem timidez, nos momentos oportunos. Eles podem não se repetir. Riso forte, gargalhado, de corpo inteiro. E chorar também insucessos e tristezas, chorar fatalidades que se impõem a nós, choro bom que molha a cara e lava a alma, choro desavergonhado dos que não tem vergonha de sofrer.

    Vamos deixar que as emoções percorram nossos corpos e os façam vibrar até doer, sentir que estamos vivos. E acariciar muito os nossos filhos, os nossos netos, que amor é muito mais para ser feito do que falado. Ouvir os velhos, suas histórias, respeitar sua experiência, curtir os moços, na sua inquietação e jovialidade. Ousar muito mais, desprovidos de medo, sem agarrar-se somente às coisas que vêm com a cláusula: Garantido para toda a vida.

    Sair cedo de casa, andar atoa por aí, sem rumo, rindo para o sol, procurando quem sabe, um trevo de quatro folhas ou um urubu-rei ou ainda nada, simplesmente atoa... Prestar atenção no que merece ser visto, um requebrado de galhos da árvore, canto de passarinho, olhar sem graça de uma criança sendo observada.

    De repente, vamos deixar para amanhã alguma coisa que pode ser feita hoje. Esquecer a inexorabilidade do tempo. E amar intenso, sem recusas, dando e sentindo prazer. Amor verdadeiro carrega bilhete de ida e volta. Sair do casulo, mostrar toda a beleza que em nós existe. Vamos policiar menos nossos gestos, ser mais felizes. Ser feliz é preciso. E o que pensamos de nós mesmos vale muito mais do que as opiniões alheias. Amar-se, para amar o próximo.

    É preciso ser mais gente. Jogar-se por inteiro nesta aventura maravilhosa que é a vida e maravilhar-se com ela. Agarrar cada minuto. Percebê-lo. Reivindicar com força direitos. Dos deveres nada digo. Tem sempre alguém para lembrar.

    Que nosso viver seja repleto de esperanças. Se não é a esperança o que é da vida? Esperança que a paz reine, que a justiça grasse, que a verdade se imponha e o amor habite sempre o coração dos homens. Feliz Ano Novo!

    *Publicado no jornal da empresa Nacional Expresso em Janeiro de 1992

    Um caso de amor

    A televisão bombardeia ouvidos e olhos. Ou é notícia ruim a qual de leve nos acostumamos, como se a dor, o sofrimento, o desespero fossem lugar comum, coisa corriqueira que nos assusta no primeiro momento e nos entorpece nos seguintes ou um amontoado de baboseiras vulgares, a respeito de pessoas ainda mais vulgares que, não se sabe por que, de repente foram alçadas a celebridades e se comportam como tais, fazendo de nosso mundo um grotesco teatro, numa total inversão de valores. Da política nem falo...

    Pensando nestas coisas, aproximei-me da janela do meu apê, no 6º. andar de um prédio, situado numa antes bonita praça de Uberlândia. Fazendo moradia na floreira que enfeita o peitoril, lá estava ele, o casal de pombinhos. Passei a fazer reparo nos seus movimentos, dia após dia. Primeiro foi o namoro. A excitação crescente, os arrulhos apaixonados, peitos arfantes, asas batendo em frenético movimento, bicos se beijando e se bicando, olhares, gemidos sedução em alto grau contaminando o local. Tenho a impressão que também rolaram alguns tabefes pois, como se diz por aí, tapinha de amor não dói. Não sei exatamente quando se deu a conjunção carnal; de repente a euforia da pombinha aquietou-se, o ar de cortesã deu lugar a um doce e maternal semblante. Ajeitou-se ela em um ninhozinho mal feito, enquanto o ansioso namorado passou a agitar-se de lá prá cá, trazendo no bico coisinhas para sua amada. Numa luminosa manhã nasceu o ovo, fruto daquela paixão tempestuosa que uniu, numa celebração repleta de rituais, uma pombo e uma pomba.

    O espécime masculino, penso eu, logo se cansou da história e foi fazer ovo em outra freguesia. A mãe (como são solenes, convictas e fiéis as mães) conservou-se firme no seu papel, cuidando para que o ovo rebentasse em explosão de vida, dando luz àquela figurinha estranha, puro bico!

    O bichinho cresceu, cresceu, emplumou-se e começou a andar pelo beiral da janela, nada de voar. Voar prá que? É preciso boa dose de coragem para alçar voo pela primeira vez, das alturas, ganhando espaço e liberdade. A mãe paciente protege, alimenta, espera. O taludinho já estava um baita pombo e nada de voar. Voar prá que? Soltar-se do peito quente e generoso, abandonar o calor do ninho, jogar-se rumo ao desconhecido... Prá que?

    A sabedoria que tantas vezes falta ao homem, na natureza jorra em profusão. A ilustre e extremosa mãezona, a certa hora, sentiu que era chegado o momento de o filho ir buscar seus caminhos. Empurrou-o ninho afora, quantas vezes necessário fora obrigando o soberbo e forte pombo a voar e viver seu destino.

    Gostei muito de acompanhar a trajetória daquela família. Dei um jeitinho para que nenhum outro fizesse moradia em minha janela. Li que dejetos de pombos fazem mal à saúde. Não sei se fazem tanto mal assim, dados outros males que estão instalados no mundo em que vivemos e contra os quais nada fazemos... Pombas!

    Publicado no Correio de Uberlândia em 03/02/2006

    Folia + Folia

    Nossa! Não estou entendendo mais nada. Leio nos jornais que o Brasil, este colosso, este país de proporções continentais, tão apetrechado de riquezas, tão promissor, ficou na lanterninha em matéria de desempenho na economia em 2005. Foi o segundo pior da América latina. Por Deus, superou apenas o Haiti. Já pensaram o que vai ser 2006? O que será dos brasileiros num ano em que nada se mexe, apenas a máquina dos governos esbanjando campanhas eleitorais, demagogia e assistencialismo? Putz! Eu me pergunto ainda, que nação é esta que julga com tanta condescendência seus governantes, haja vista pesquisas eleitorais que estão rolando por aí?

    Para aumentar a aflição, nossa Minas Gerais ficará prejudicada no orçamento da União para 2006. O infeliz de um deputado de Santa Catarina privilegiou o seu Estado em detrimento do nosso. Abiscoitou de nós, pobres mineirinhos, a ínfima quantia de 23,5 milhões. Arregacem as mangas, deputados das Gerais, Minas tem perdido muito em todos os sentidos e é preciso resgatar a força política e a dignidade que sempre foi motivo de orgulho para nós. É preciso recolocar Minas nos trilhos e devolver a ela sua grande destinação histórica.

    Uma voz etílica, cometendo Sassassaricando, todo mundo leva a vida no arame (ai, que coisa mais antiga!) afastou maus pensamentos que costumam povoar noites insones. Esqueci a política e passei a recordar os carnavais da minha bela cidade de Araguari, onde morei há algumas décadas. Duas foliãs nunca saíram da minha lembrança.

    Uma se fantasiava sempre de índia. Não índia brasileira, que naquele tempo não se admitia mulher pelada nem na hora do banho. Era índia americana, roupa de couro bem curtinha, tranças falsas, colares de contas coloridas, sapatilhas estilo sioux. Lindo, lindo vê-la rodar pelo salão, esbanjando formosura e alimentando a fantasia dos homens que se acotovelavam para admirá-la. Centenas de olhos gulosos, satisfeitos apenas em desejá-la de longe. E ela feliz, sentindo olhos gulosos pousando sobre sua beleza e graça. E havia também a moça feia, que no carnaval transformava-se em cigana. Era uma verdadeira transmutação. Soltava os longos cabelos, abria o sorriso raro, liberava os botões da blusa que teimavam em prender a opulência, na luta para se expandir a partir do generoso decote. Punha à luz a alegria e doidice que se escondiam, tornava-se sensual e moça tímida e feia.

    Boas lembranças, memoráveis tempos que têm o dom de enriquecer nosso presente. E talvez, quem sabe, tornar mais ameno e agradável nosso futuro. Bons tempos aqueles, bons tempos...

    *Publicado no Correio de Uberlândia em 04/03/2006

    É proibido envelhecer?

    Hoje em dia é politicamente incorreto chamar alguém de velho. Para atender a um modelo social em que a juventude é um bem ao qual temos de nos agarrar, seja aos trancos ou aos barrancos, convencionou-se usar termos mais amenos como idoso, melhor idade e outros mais.

    Hodiernamente, valorizou-se tanto a juventude e demonizou-se de tal maneira a velhice que as pessoas passaram a ter medo do tempo e do efeito que ele tem sobre elas. O descaso, o desrespeito aos idosos, a negação de suas necessidades e anseios tornou-se um problema sério. Numa sociedade que se preocupasse com seus idosos, haveria a necessidade de um Estatuto que os protegesse?

    E o que é a velhice, senão um processo pessoal, natural, indiscutível e inevitável? O que é a velhice, senão uma nova fase da vida, com horizontes diferentes, outros planos, novas perspectivas?

    Quando a gente é jovem, não tem muita ligação com os velhos. É difícil acreditar e encarar o fato de que o tempo vai passar, que a mobilidade corporal vai diminuir, que as rugas aparecerão (apesar do botox, do preenchimento, das cirurgias plásticas e mil outras coisas que surgem a cada dia, num esforço insano para garantir eterna juventude). Envelhecer com dignidade e qualidade não é desistir da aparência. É ter sabedoria e serenidade para lidar com a aparência. É sentir-se satisfeito consigo mesmo e pensar que lutou a melhor de suas lutas para viver bem e tentar fazer as pessoas felizes.

    E para não dizer que não falei das flores (e espinhos), aqui vão umas historinhas reais sobre os de melhor idade: - O médico distraído abriu a porta do consultório, pôs o rosto para fora e perguntou à enfermeira: - Aquela senhora velhinha ainda está aí? – A senhora velhinha que estava sentada num lugarzinho meio escondido, levantou-se prontamente e respondeu orgulhosa: Velhinha é a vovozinha! Meu nome é Matilde! E fiquei sabendo pela TV que uma senhorinha de melhor idade assaltou um banco, de arma em punho, touca ninja, daquelas bacanas, típicos esconderijos de cara de bandido. Olha só, quanta modernidade! Velhinhos não são pura bondade... E a outra idosa, vestindo training e tênis, andava com certa dificuldade (e lindo esforço) na Praça Sérgio Pacheco. O garoto sem educação e com excesso de desrespeito e pressa gritou: - Vai morrer, velhota. E a mesma respondeu com aquela serenidade bonita que vem da experiência: - Se tiver muita sorte, você também vai ficar velhinho.

    Peço licença para lembrar minha mãezona. Quase um século de ganhos e perdas, de vida enfim. A derrota nunca se alojou em sua mente. Corpo em declínio, primavera no coração e espírito sem rugas. Diz um velho ditado: Para um tolo, a velhice é um inverno amargo; para um sábio é uma época dourada...

    *Publicado no Correio de Uberlândia em 20/06/2006

    Cerrado da minha infância

    Na minha meninice as pessoas viajavam muito de jardineira. A jardineira, aqui no Triângulo, devia ser a congênere da marinete na Bahia. Colorida, ruidosa, banquinhos de madeira duros, tão duros que deixavam a derriére em petição de miséria a cada solavanco. Não importava o limite dos assentos, a jardineira ia parando pelo caminho e nela se aboletavam de gente a leitãozinho, dava de um tudo.

    Eu gostava de sentar-me no banco da janela. Ia olhando fascinada a paisagem estranha que margeava a estrada de terra: árvores peculiares, com troncos fortes retorcidos, folhas grandes e rígidas, esparsas em uma vegetação rala e rasteira. No tempo das chuvas o verde, em vários tons, dominava tudo. No tempo da seca tudo se amarronzava, coberto de poeira da estrada. Ia olhando, fascinada, aquela paisagem estranha com sua maravilhosa diversidade de espécies de plantas e animais.

    Naquele tempo eu (e muitos mais) desconhecia a importância do Cerrado, nome regional dado às savanas brasileiras e que hoje, infelizmente, está reduzido, talvez, a apenas 20% ou menos da área original. A devastação é grande, o estrago irrecuperável, perdendo-se com o Cerrado a proteção de nossos mananciais e a diversidade biológica nele existente.

    Continuo viajando de carro e ônibus pelas estradas do meu Triângulo Mineiro, agora asfaltadas, mas cheias de buracos. Olho pela janela e não vejo mais aquela paisagem estranha e retorcida que caracterizava o Cerrado.

    O que é do pau-santo, da barba-de-timão, da catuaba, do indaiá, do buriti? O que é do bacuri, cajá, gabiroba, frutas nativas que tipificavam o

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