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Memórias de uma franco-alagoana
Memórias de uma franco-alagoana
Memórias de uma franco-alagoana
E-book496 páginas7 horas

Memórias de uma franco-alagoana

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Sobre este e-book

E, então, a França se casou com o Brasil. Dos bistrôs de Paris aos elegantes salões de ricaços de New York, das igrejas de bucólicas aldeias da França a terreiros de candomblé de Maceió, Chantal Frazão, num turbilhão de casos, lembranças e histórias, delicia-nos com passagens desse tumultuado matrimônio. Nascida em um lar onde ainda estavam presentes as sequelas das duas grandes guerras, com um pai autoritário e uma mãe puritana, a autora mostrou desde cedo sua rebeldia, sua vontade de ser e conhecer o mundo.
O leitor vai se deliciar com as aventuras da adolescente indisciplinada, expulsa de várias escolas, que falsificava com maestria a assinatura do pai no boletim; vai se comover com a criança incompreendida, que buscava refúgio com a avó e o tio-avô; vai acompanhar os amores e as aventuras da jovem parisiense, seu casamento com um alagoano e sua vinda para o Brasil. Vai descobrir a esposa apaixonada, a mãe amorosa e a mulher séria, mas sempre curiosa, divertida e irreverente, capaz de enlouquecer seu psiquiatra, arrumar estripulias numa butique nova-iorquina ou extrapolar num coquetel de bacanas.
São histórias de mandingas, terreiros, namoros exuberantes, mortes e sofrimentos (até assassinatos), depressões e alegrias, histórias que têm fins surpreendentes. Ou que não têm fim...
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento3 de jan. de 2022
ISBN9786525405902
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    Memórias de uma franco-alagoana - Chantal Frazão

    APRESENTAÇÃO

    Dos talentos artísticos de Chantal Frazão, tinha visto antes, ao vivo e em cores, desenhos e pinturas de excelente qualidade. Se não ouvi gravações, li sobre o cantar dela, acompanhando a descrição das incursões da jovem parisiense no terreno da Bossa Nova. Quando ela me mostrou pela primeira vez um escrito, vi uma luz acendida: que texto! Era uma crônica, escrito memorialístico focado num episódio dado. Daí transbordou uma sequência.

    Para minha sorte, pois à época tinha a missão de editar um suplemento especialíssimo no saudoso diário Gazeta de Alagoas, o Saber. A publicação se destinava exclusivamente a veicular produtos culturais de gente que não fosse jornalista, pois a missão era divulgar prioritariamente escritos do público externo às redações.

    Os textos de Chantal caíram como uma luva nas múltiplas necessidades de encontrar contribuições diferenciadas, inovadoras, criativas e instigantes para a publicação, que mensalmente requeria uma alimentação de alta qualidade cultural. Colocar nas páginas um escrito dela era (é) garantia de sucesso editorial.

    Independentemente de ter-se findado o suplemento Saber – e o próprio diário –, a publicação de um livro representa um passo – primeiro de uma série – indispensável para o espalhamento da obra literária, memorialística, dessa franco-alagoana.

    Evidentemente, sigo defendendo a imprensa periódica e a editoração cultural. Hoje vivemos tempos de valorização desmesurada das outras mídias, especialmente as chamadas digitais, redes sociais e que tais. Mas não abro mão de reconhecer ao velho e bom impresso um valor imenso, peça de resistência de grande importância na luta pelo conhecimento também nos dias em curso.

    Nessa batalha contra a ignorância – onde se acredita que a postagem de textículos com cerca de cento e quarenta caracteres seriam capazes de definir eleições –, é prazeroso devorar páginas e páginas, viajar por parágrafos e parágrafos de ótima prosa sem risco de topar com repetições teimosas de vocábulos, abreviações de palavras, emoticons no meio das frases e outras modas ditadas pelas ditas mídias sociais.

    Lógico que Twitter, Instagram, Facebook e outros formatos não podem nem devem ser responsabilizados pelo empobrecimento editorial que assola o mundo, muito menos por retrocessos eleitorais. Essas plataformas são apenas veículos; podem transportar tanto obras de arte quanto obradas no sentido escatológico mais vulgar – depende da freguesia.

    Chantal produz seus escritos sem economia de palavras, para uma clientela ávida por abordagens criativas, descrições apaixonadas e apaixonantes, criaturas desejosas de textos que não tenham pressa alguma por acabar. E para não se desejar o ponto final num produto literário não-ficcional é necessário arte. Talento. E cultura.

    Não basta ter habilidade em contar memórias. É necessário conquistar o leitorado com um tema que é seu: são suas lembranças, seus lugares, sua parentela, suas amizades e conhecidos de vista a desfilarem para gente alheia. Não é fácil. Inexistem nesse universo, salvo as crônicas de personagens com vidas totalmente diferenciadas e explosivas, os super-heróis e super-heroínas, o fantástico e o extraordinário se limitam às ocorrências cotidianas. Nos escritos dela, ninguém voa, ninguém volta da morte; ninguém deixa de ser uma pessoa comum, de carne, osso e sentimentos comezinhos, domésticos – embora não domesticados.

    Mulher globalizada, vivente com raízes na França e no Brasil, nossa autora é uma autêntica criatura universal, polinacional – para não usar os termos multinacional nem global, globalizada ou, muito menos, globalista – capaz de fazer fluir com naturalidade as ambiências brasileira e francesa, aqui as fundindo, ali as individualizando. E isso apenas relatando, descrevendo suas próprias experiências. Dos ecos do parente tragado pela guerra à roupa que se indispôs com o corpo, a vida vai-se irradiando com humor inteligente – nas memórias de Chantal.

    Que este seja o primeiro de uma série de livros!

    Enio Lins

    Jornalista, chargista, Secretário de Estado da Comunicação; foi Secretário Estadual de Cultura de Alagoas, Presidente do Iteal (Rádio Difusora, Rádio Educativa, TV Educativa), Secretário Municipal de Cultura de Maceió, Vereador por Maceió, Coordenador Editorial da Organização Arnon de Mello.

    PREFÁCIO

    Ao me mudar para o Brasil, em 1979, eu não falava uma só palavra de português. Tagarela por natureza, e cercada por pessoas que não compreendiam minha língua materna, o francês, não tive outra escolha: precisei mergulhar com afinco no novo idioma. Aprendi rapidamente, pois, em três meses, eu já dominava a fala luso-brasileira satisfatoriamente.

    Logo após minha mudança para Maceió, ganhei dois filhos. Por não ter ninguém para me ajudar na criação, resolvi me concentrar unicamente na educação dos meninos. Tornei-me mãe e dona de casa em tempo integral. Durante duas décadas, não produzi uma só carta na língua de Camões, aliás, nem precisava, pois só me correspondia com meus parentes franceses. As únicas coisas que eu redigia em português eram as listas dos produtos que eu ia comprar nos supermercados: sabão em pó, leite, cenouras, chuchus...

    Em reuniões de amigos, eu costumava contar casos divertidos. Alguns dos presentes diziam que eu deveria publicar um livro. Mas como isso poderia acontecer? Por nunca ter tido uma única aula de português, achava a barreira intransponível!

    A partir de 2002, passei a usar a Internet. Timidamente, entrei em salas de bate-papo e iniciei umas conversas com brasileiros. Pouco a pouco, fui criando asas, ganhei confiança, passei a me soltar. Após estrear um blog, comecei a utilizar o programa Word. Graças às ferramentas desse processador de textos, sinto-me mais segura, pois, caso eu venha a grafar algo errado, o programa me avisa, sublinhando as palavras incorretas com um traço vermelho.

    Num belo dia de 2011, decidi escrever um artigo contando uma curiosa experiência pessoal. Assim que ficou pronto, enviei o texto para Ênio Lins, na época coordenador editorial do jornal Gazeta de Alagoas. Ênio deu-me seu voto de confiança ao publicar minha crônica no Caderno Cultural Saber. Após a primeira, vieram outras narrativas, todas publicadas nesse mesmo periódico. Em pouco tempo, recebi um retorno: fui abordada na rua por pessoas querendo falar a respeito das minhas histórias. Ganhei também cartas de fãs. Outras pessoas me enviaram recados calorosos, parabenizando-me pelas redes sociais ou via e-mails.

    Diante desse sucesso, cogitei a possibilidade de juntar todas as matérias numa coletânea. Pouco depois, já com duas novas composições prontas, eu descobri que o suplemento ia ser reduzido pela metade. Como a maioria dos meus trabalhos requer duas ou três páginas inteiras, eu soube que seria impossível tê-los divulgados na versão encurtada da Gazeta.

    Aquilo não me chateou de jeito algum. Pelo contrário, serviu de empurrão para, enfim, me decidir pela elaboração do tão sonhado livro. Portanto eu me sentei novamente diante do computador, arregacei as mangas e formulei novos textos. Foi assim que nasceu este Memórias de uma Franco-Alagoana, obra autobiográfica de uma francesa que inventou de morar no Nordeste.

    Todas as histórias relatadas são verídicas e foram vivenciadas por mim. Porém, para não expor certas pessoas, embaralhei o gênero, o parentesco e outros dados de alguns personagens envolvidos. Da mesma forma, mudei alguns nomes para outros muito parecidos. Através da leitura dos meus relatos, convido o leitor para passear por minhas aventuras, ora tristes, ora divertidas, mas sempre lembradas com gratidão por tantos acontecimentos que me ajudaram a amadurecer e a sentir-me privilegiada pelo que a vida me tem oferecido.

    Chantal Jeanne

    PREFÁCIO

    Ela consegue entreter, com chiste e com aquilo que tem feito falta à esmagadora maioria da prosa contemporânea: a curiosidade pelo caso que move a narrativa. Sem a mínima pose de querer agradar pela citação erudita e pelas referências, Chantal – essa conterrânea e admiradora de Maupassant – toma como lastro do que escreve fisgar o leitor pela história, que não precisa ser extraordinária, mas, sim, extraenvolvente, com um bem dosado tempero de simpatia pelo leitor, como se este lhe fosse um conviva à mesa, para um café com licor e aquelas coisinhas feitas com sal, açúcar e... afeto. Sim, é isto: Chantal está longe de querer afastar o leitor perante um narrador grandiloquente ou, pelo contrário, metido até o último fio de cabelo da narrativa com experimentalismos vanguardistas ou minimalismos esnobes. Chantal quer mesmo é contar uma história, com pitadas de reflexões que não sobrecarreguem o tempo nem a paciência do leitor. Não se aventura pela ficção "tout court nem fica engendrando coquetéis de frases artificiosas com o objetivo de embriagar o leitor com lirismos ou esmagá-lo com filosofia. A escritora sequer inventa: ela passa mesmo é a limpo episódios de uma vida que eu – particularmente – aprendi, em seus contos, como vivida a fundo com os recursos à mão da personagem-narradora, no tempo de ocorrência de cada um desses episódios. Revisitando-os, a narradora comenta-os com as lentes mais agudas da maturidade e da distância temporal – ou espacial, como bem o declara o título desta coletânea: já no Brasil, Chantal volta o olhar por sobre o Atlântico, ora atravessando-o obliquamente em direção à sua pátria originária, ora percorrendo-o até outras paragens por onde essa franco-brasileira tem andado. Alguns contos são hilários, outros são carregados de uma dor levada a sério pelo que trazem de fatos dolorosos, situações de perda, resgates de vivências difíceis. Chantal fala de si o tempo todo, mas para assumir, eu diria, a responsabilidade pelas inconsistências ou pelos defeitos na apresentação de casos e personagens, sem culpar a ninguém nem amaldiçoar as circunstâncias. Certos relatos, certamente, pesam mais, a ponto de precisarem ser levados e lavados pelas águas de chuvas ou de lágrimas, como é o caso de As bodas enlutadas ou de O enterro do faraó". Há aqueles onde Chantal explora seus sustos e embaraços com aspectos enigmáticos ou misteriosos da vida, tais como algumas sincronicidades, presságios, crenças nada domesticáveis pelo cartesianismo latente dessa francesa muito observadora e curiosa, sensível a detalhes – o que a faz especular com graça até nos envolver em seus surtos de Sherlock. E, por falar em Sherlock, há conto sobre gente da máfia italiana, conto sobre um maníaco anônimo que a atormentava em Paris, conto sobre uma vendedora de plantas que germinavam e floresciam viçosas em um sinistro terreno de desova em Maceió, experiências com mau-olhado, kardecismo e candomblé, a pungente história de uma secretária doméstica tragada pelo alcoolismo e brutalmente assassinada, o caso de uma malsucedida visita a uma boutique para magras, as cenas idílicas com um tio formidável e travesso, acontecimentos testemunhados por sobreviventes de uma ou outra das duas Grandes Guerras, lembranças de brincadeiras e companheiros de infância, os encontros com a MPB já na França de sua juventude, a admiração por Marguerite Duras (que lhe fora vizinha) e Jeanne Moreau, episódios de viagens, o casamento e os filhos com um brasileiro e outros brindes mais da memória de uma gringa que aterrissou em Maceió.

    Paulo José Silva Valença

    Professor Associado 4, de Teoria da Literatura e Literatura de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Alagoas.

    UMA NOVA REALIDADE

    NOVOS CREDOS

    Eu vivia ainda em Paris, ao lado do meu namorado Antônio, quando passei a receber cartas de um brasileiro, com nome idêntico. Esse outro Antônio estava doido para me conhecer. Queria que eu me mudasse imediatamente para o Brasil. Falou que eu seria recebida de braços abertos e lembrou até que me providenciaria uma passagem de avião. Enfim, esse novo Antônio fazia de tudo para me conquistar.

    Eu sempre aguardava a visita do carteiro com certa impaciência. Logo após abrir as missivas, eu chamava meu namorado para ele me verter as frases em francês. Antônio nunca teve ciúmes desse outro brasileiro: tratava-se do seu querido pai, meu futuro sogro. Como eu não falava português, eu respondia na minha língua materna, pois sabia que alguma parenta traduzia-lhe minha correspondência. Era a primeira vez que eu postava cartas que cruzariam o Atlântico. Essa troca epistolar sinalizava as primícias da futura grande aventura: ir morar nos trópicos!

    Na hora do nosso primeiro encontro, o entrosamento foi imediato! Adorei o sr. Frazão desde o primeiro dia, logo após descer do avião em Maceió. Já com 74 anos, era aposentado como diretor da Rede Ferroviária Federal (RFF) em Alagoas. Extremamente ativo, continuava trabalhando no seu pequeno escritório situado defronte à antiga estação de trem, na Rua Barão de Anadia. Entre outras atividades, ele exportava cocos para o sul do Brasil e tinha contrato de fornecimento de dormentes de madeira para a RFF.

    Morei na casa dos meus sogros durante um ano. Ao longo desse período, aprendi a falar o novo idioma. Sendo assim, passei a trocar muitos papos com o singular sr. Frazão. Num dos nossos colóquios, ele me colocou a par da doutrina kardeciana, até então desconhecida por mim. Eu nunca tinha ouvido falar do francês Allan Kardec, apesar de seu túmulo ser o mais florido no ilustre cemitério parisiense Père-Lachaise. Minha família era essencialmente católica, do tipo que coloca crucifixos em todos os quartos e deixa um presépio ao lado da árvore de Natal.

    Pouco depois da minha chegada, o sr. Frazão apresentou uma tosse persistente e chegou a cuspir sangue. Os raios-X sinalizavam um nódulo redondo no pulmão esquerdo. Alarmados, seus filhos mostraram os resultados a vários especialistas. Todos os oncologistas consultados confirmaram o diagnóstico: meu sogro estava com câncer e precisava ser operado o mais breve possível. Acontece que, espírita fervoroso, o doente só acreditava na cura mediúnica.

    Certo dia, bem antes do sol raiar, saiu de casa de fininho, sem avisar a família. Só voltou perto das 10h, meio pálido e com uma manchinha de sangue maculando-lhe as costas da camisa branca. Assustados, todos cercaram o frágil idoso para saber o que ocorrera. Soubemos então que meu sogro havia sido operado por um senhor que incorporava o espírito de um suposto médico alemão.

    Munido de uma faca de cozinha, o cirurgião extirpara o tumor sem fazer uso de substâncias anestésicas ou antissépticas! Depois daquele dia, o sr. Frazão parou de tossir por completo. Além disso, o apetite voltou redobrado e nunca mais alguém mencionou a terrível doença.

    Logo a seguir, precisei extrair um dente siso. Após ingerir os antibióticos receitados pelo dentista, comecei a passar mal. Eu sofria de uma violenta enxaqueca e, para piorar o quadro, não conseguia engolir os analgésicos, pois meu estômago embrulhado só fazia regurgitar os remédios junto com a água. Chegando em casa para o almoço, o sr. Frazão foi colocado a par da minha indisposição.

    Ao entrar no quarto, aproximou-se da minha cama para me aplicar um passe que, segundo ele, era uma transfusão de energias terapêuticas. Assim que posicionou a palma das mãos sobre minha testa, fechou os olhos, concentrado no ritual. Pouco após ele começar a murmurar uma prece insondável, algo inacreditável aconteceu: em dois segundos, fiquei boa subitamente! Além da cefaleia sumir como num passe de mágica, eu pude enfim engolir quatro bolachas junto com um café recém-coado.

    Totalmente místico, o sr. Frazão acreditava em qualquer assunto esotérico e, tentando me doutrinar, recitava inúmeras histórias esdrúxulas. Certo dia, assegurou-me de que os marcianos, muito mais evoluídos do que os terráqueos, reproduziam-se a partir de cândidos selinhos trocados com as marcianas. Ouvindo aquilo, lembrei-lhe que o método reprodutivo dos humanos não o desagradara tanto assim, dado que ele tinha gerado cinco filhos através de concepções nada imaculadas. Nisso, meu sogro, todo encabulado, sorriu-me timidamente.

    No dia a dia, o sr. Frazão era um homem bonançoso, um Doutor Jekyll extremamente manso e carinhoso. No entanto, transformava-se num feroz Mister Hyde assim que subia no seu carro. Sem fazer uso do cinto de segurança, ele metia o pé na tábua. Geralmente, desrespeitava as regras básicas do trânsito e, com frequência, ignorava as placas de sinalização. Depois do almoço, eu costumava sair com ele, para resolver alguns assuntos no centro da cidade. Sua conduta perigosa me fazia berrar todas as vezes em que ele queimava um sinal vermelho. Nessas horas, o intrépido velhinho me jurava que estávamos a salvo, visto que os espíritos encontravam-se no comando do veículo.

    Na hora em que anunciei ao meu sogro que ele seria avô de uma criança franco-alagoana, ele ficou todo exultante! No dia seguinte, acordou com uma notícia surpreendente. Ele havia sonhado com espíritos de luz lhe anunciando que o neném seria um menino de cabelo louro e olhos claros. Achei pouco provável, visto que, assim como meu marido, meus olhos são castanhos. Alguns meses depois, Hugo nasceu, ruço e com íris azul da cor do mar de Maceió...

    Por ser extremamente bonito, todo mundo queria tocar meu filhote, todos desejavam segurá-lo nos braços. Acontece que, depois de um tempo, meu pequeno começou a ficar sem apetite, bocejava sem parar e tinha espirros repetidos. Como o pediatra não conseguia achar o motivo do fastio, segui os conselhos de uma comadre, recomendando-me uma benzedeira capacitada para tirar quebranto de bebê. Logo após receber as preces da velha curandeira, meu filho voltou a ficar esperto e começou a engatinhar pela casa toda.

    Reconheço que, aos poucos, fui contaminada pelas crendices das pessoas ao meu redor. Para começar, inaugurei banhos de sal grosso, toda vez em que eu voltava da rua carregada de energias negativas. Assim que me mudei para minha primeira casa, plantei espadas-de-São-Jorge bem perto da entrada principal. Funcionavam como um poderoso escudo contra o mal.

    Algumas amigas me repassaram suas superstições, que fui logo assimilando ao meu cotidiano. Por exemplo: nunca mais deixei minha bolsa no chão, pois era pedir para que o dinheiro fosse embora; para afastar o azar, passei a bater três vezes na superfície dos móveis de madeira; a visita não podia abrir a porta para ir embora, caso contrário não voltaria nunca mais; além disso, por uma razão semelhante, o convidado sempre devia sair pelo mesmo lugar pelo qual havia entrado...

    Eu estava grávida do meu terceiro filho quando um moço de certo parentesco com meu esposo veio a falecer. Para me poupar, devido ao fato de que eu estava no final da gestação, ninguém me repassou a terrível notícia. Tempos depois, descobri a história toda e seus desdobramentos. Vou revelá-la agora mesmo.

    Uma semana após o sepultamento, a jovem viúva começou a sentir frios intensos que apareciam assim, do nada. Marcou consultas com vários médicos. Foram feitos inúmeros exames, que não acusavam moléstia alguma. Sabendo disso, meu sogro declarou que o ar gélido era um fenômeno paranormal. Acontecia quando a alma de um morto baixava em determinado lugar. Na certa, o defunto devia estar visitando a esposa, pois não tinha noção de ter desencarnado, dado que a morte era recente.

    Pouco antes do meu terceiro filho nascer, um filme de terror passou na programação noturna de um canal televisivo. Meu marido estava sozinho na sala, assistindo, enquanto eu tinha ido dormir no quarto. Em pleno mês de fevereiro, o calor era intenso. Com o ar-condicionado quebrado, precisei abrir a janela para tentar abrandar a quentura do aposento. Demorei a dormir, pois o ambiente estava extremamente abafado.

    O filme em questão contava uma sinistra história, baseada num caso verídico: O fantasma do voo 401 (1978). Em 29 de dezembro de 1972, um avião da empresa aérea Eastern Airlines caiu nos pântanos da Flórida, matando 101 pessoas, entre elas, o piloto e o engenheiro, responsabilizados pelo acidente. Depois da tragédia, várias partes da aeronave acidentada foram reutilizadas em outros aparelhos da companhia.

    A partir daí, começaram a aparecer rumores surpreendentes de passageiros que voavam pela Eastern, precisamente nos aviões que haviam reaproveitado as antigas peças recolhidas após o fatídico desastre. Essas pessoas juravam ter visto misteriosas aparições fantasmagóricas durante os voos. A maioria desse pessoal fazia parte da tripulação e todas juravam ter reconhecido tanto o comandante como o engenheiro, fardados e sentados em poltronas. As aeromoças afirmavam que um frio glacial se espalhava pelas cabines no instante em que as presenças espectrais tomavam forma.

    As últimas cenas ainda estavam passando na tela quando, de repente, meu marido ouviu meus gritos pedindo socorro. Chegando até o quarto, Antônio me encontrou encolhida em posição fetal. Batendo os dentes, eu tremia toda, não conseguia movimentar nem me levantar para pegar um agasalho. Eu estava congelada, como se tivesse caído numa grossa camada de neve alpina.

    Implorei para Antônio pegar um cobertor no armário e um par de meias grossas para cobrir os pés. Solícito, meu amado começou a esfregar-me as costas e pernas, na intenção de ativar a circulação. O frio foi embora ligeiro, assim como chegara. Logo após retirar as roupas de inverno, pois sentia calor novamente, voltei a dormir num sono profundo.

    Impressionado pelos três fenômenos consecutivos (o da viúva, o do avião e agora o meu), Antônio demorou um bocado para adormecer. Quando, enfim, pôde descansar, ele teve um sonho ruim. Nele, duas idosas entravam na nossa casa sem serem convidadas. Uma chamava-se Abigail e a outra, Jurema. Deram seus nomes completos, que logo foram esquecidos no desenrolar do sinistro pesadelo.

    Percebendo que as senhoras eram espíritos malignos avançando no corredor, meu marido barrou o acesso até o último quarto, onde nosso pequeno Hugo dormia no berço. Colocando os dois antebraços em forma de cruz, Antônio (ateu enquanto acordado, mas crente durante o sono), invocou a Deus para afastar as almas penadas.

    Assim que despertei, meu esposo foi logo me contar os detalhes da sua fatídica noite. Infelizmente, sem os sobrenomes das duas estranhas, não foi possível verificar se tinham existido de verdade...

    Desde minha chegada a Maceió, sempre reparei o quanto as pessoas cristãs flertavam às escondidas com outros credos. A fachada de catolicismo era mantida, as bodas eram celebradas com grande pompa nas igrejas ricamente decoradas, mas, por debaixo dos panos, muita gente mantinha contato com rituais nada católicos. Boa parte das minhas amigas podia me fornecer ora o endereço de uma Mãe de terreiro que jogava búzios, ora o número de telefone de uma cigana que lia os destinos nas cartas de tarô.

    Recordo de ter ido até a residência de uma vidente que, apesar da alcunha, era completamente cega. Possuía olhos com íris totalmente nevadas. Sem fazer uso de óculos de sol para esconder a enfermidade, exibia globos esbugalhados, sendo a esfera da esquerda bem maior do que a da direita e bastante projetada para fora da órbita.

    Num terreno vizinho, notei vários carros de luxo, com seus motoristas aguardando pacientemente. Após entrar na humilde casa, reconheci várias damas da sociedade sentadas em singelas cadeiras de plástico. Numa estante, uma santinha de porcelana branca e, na mesa, um buquê de flores artificiais. Esses simplórios adornos contrastavam com a opulência das abastadas consultantes.

    Procurei os conselhos de outra deficiente visual, que atendia numa modesta casa caiada. Alguém me dera o contato, jurando-me que aquela velha senhora tinha um dom fenomenal, pois conseguia enxergar nitidamente o futuro que nos era reservado. Quando telefonei, a voz de uma mulher jovem acertou comigo a data e o horário da consulta. Como meu esposo estava atravessando sérios problemas pessoais, eu queria encontrar palavras tranquilizadoras, apesar de que o caso parecesse não ter solução.

    No dia marcado, a dona da voz abriu-me o portão. Era uma jovem morena que, além de cuidar da idosa, recolhia a remuneração do serviço prestado. Assim que me sentei de frente para a anciã, fiquei impressionada pela altivez da sua nobre figura. Durante as apresentações, descobri que era filha de um casal de ingleses, o pai viera implantar a rede ferroviária pelo Nordeste do Brasil. Calculei que Miss Mitchell devia ter nascido por volta de 1900.

    Depois de misturar e espalhar o baralho sobre a mesa, a inglesa me mandou puxar uma carta. Devo frisar que, em nenhum momento, a idosa quis saber quais eram minhas preocupações ou qual era a situação da minha família. Assim que separei a carta solicitada, Miss Mitchell a colou contra seu olho direito – o único que ainda vislumbrava alguns vultos imprecisos. Na hora, foi categórica ao me dizer que eu estava esperando uma resposta, não para mim, mas para meu esposo.

    Não confirmei nem falei nada, para não lhe fornecer qualquer pista. Imediatamente, Miss Mitchell disse-me que o aborrecimento do meu marido seria solucionado num dia de comemoração. Para não ter dúvidas, a idosa repetiu:

    — Presta bem atenção! Vai ser num dia de celebração, pode ser um casamento, um aniversário, uma festa qualquer.

    Após separar outras cartas, Miss Mitchell revelou-me que um dos meus filhos passaria por sérios problemas de saúde. Assegurou-me que meu menino ficaria bom, mas avisou que eu deveria estar preparada. Depois veio o terceiro oráculo: meu marido ia receber uma convocação para uma reunião de trabalho numa cidade imensa, com prédios muito altos.

    Assim que cheguei em casa, anunciei as três profecias ao marido. Dando de ombros para mim, Antônio me perguntou como é que eu conseguia acreditar em tamanhas idiotices. Acontece que meu cético cônjuge ficou banzado quando, dias depois, recebeu um inesperado convite para participar de uma reunião em New York. Essa seria a primeira de suas muitas viagens a trabalho na cidade dos arranha-céus.

    Posteriormente, meu caçula começou a sofrer do ouvido. Seu caso era preocupante, pois precisava passar por melindrosas cirurgias. Felizmente, após ser operado por um especialista pernambucano, meu filho recuperou plenamente a audição. Finalmente, no dia da festa de formatura do ABC do Hugo, Antônio recebeu a resposta que tanto esperava: seu problema havia cessado, tudo havia entrado nos eixos.

    Em 1988, experimentei algo bem estranho que já vou contar. Até então, eu só tinha dirigido veículos sem ar-condicionado. A grana era curta, não nadávamos em rios de dinheiro. O desconforto cessou no dia em que meu marido comprou outro carro. Após receber o novo modelo, herdei o antigo dele, todo refrigerado. Como os festejos do final de ano estavam chegando, resolvi aproveitar o friozinho do meu atual automóvel para visitar algumas amigas que costumavam encontrar-se numa butique. Eu desejava dar-lhes meus votos natalinos.

    Logo após estacionar bem na frente da vitrina, entrei na loja e comecei a beijar as bochechas das colegas. Toda vez que eu encostava o rosto nas suas faces, cada uma reclamava que minha pele estava gelada. Entre elas, havia uma mulher que tinha sido uma grande amiga no passado. Infelizmente, depois de passar por maus bocados, tornara-se uma mulher azeda e rabugenta. Ouvindo os protestos das comadres, a invejosa resolveu manifestar-se. Não acreditei quando a escutei dizer que eu havia enfiado o rosto no ar-condicionado para todo mundo saber que eu andava com um carro novo.

    Decidida em não engolir sapos, retruquei imediatamente que, se eu soubesse que eu ia ser recepcionada com tamanha estupidez, eu me teria poupado de sair de casa. Irada pela resposta afoita, a zangada me olhou de um jeito maléfico. Querendo desviar meu olhar do seu, virei o rosto para a porta principal, toda de vidro blindado. No instante em que meus olhos fitaram a entrada, ouviu-se um forte estrondo. A porta havia explodido e ruído em mil pedaços, formando um tapete de cacos, espalhado sobre o chão de mármore.

    Assustados, os vendedores e clientes saíram das outras lojas, tentando entender de onde vinha aquele estampido. Sem tardar, passei por cima dos destroços e saí correndo, para me refugiar no aconchego do meu automóvel. Depois daquele dia, não voltei à malfadada loja, para nunca mais experimentar do mau-olhado da rancorosa figura!

    QUANDO EU ERA CANTORA

    Tempos atrás, jantando com o amigo Paulo Valença, professor de literatura da Universidade Federal de Alagoas, veio à baila uma conversa sobre as incríveis simultaneidades que, frequentemente, costumam acontecer na minha vida. Notei quanto meu amigo ficou entusiasmado ao ouvir algumas das experiências que eu vivenciara. Na saída do restaurante, Paulo me recomendou escrever um artigo contando o que eu havia acabado de revelar naquela noite.

    Assim que cheguei em casa, sentei-me imediatamente em frente ao computador e me preparei para iniciar a história, cujos episódios ocorreram ao longo de mais de três décadas. A narração inicia-se na capital francesa e resulta num surpreendente desfecho acontecido num hotel de Maragogi, no litoral norte de Alagoas. Passemos aos fatos!

    Tudo começou em 1978, ano em que eu vivia em Paris e namorava o alagoano com quem eu me casaria no ano seguinte. Graças aos contatos do meu amado, estive presente durante as reuniões de um pessoal, formadas por cidadãos baianos, fluminenses e paulistas, na maioria estudantes. Eram barbudos e cabeludos, como mandava o figurino da juventude daquela época.

    Praticamente todos dominavam diversos instrumentos musicais e sabiam cantar esfuziantes sambas de enredo. Meu amado era versado em percussão: tocava caixa, afoxé, tamborim e surdo. Uma vez por semana, os integrantes se reuniam para esquentar os tambores, já que eram contratados, vez ou outra, para se apresentarem em festas e comemorações.

    Eu quis envolver-me ativamente nesses encontros, mas fui informada de que, por ser uma típica francesa, minha participação fora vetada. Segundo o pessoal, os gauleses não possuíam ritmo algum e nem remelexo nos quadris. Além do mais, eu não falava uma só palavra de português.

    De tal modo meu orgulho fora ofendido que resolvi, no ato, custasse o que custasse, ser aceita na turma daqueles sectários sambistas. Para me preparar, pedi uma semana de folga ao meu empregador e, trancada em casa, fiquei ouvindo uma fita cassete emprestada. Continha os hinos da famosa Portela, da ilustre Mangueira e de outras tantas célebres escolas de samba do Rio de Janeiro.

    Quando tenho uma ideia fixa presa no cocuruto, não tem quem tire, pois sou persistente. Sendo assim, passei sete dias escutando, incessantemente, as compassadas gravações. A todo instante, eu interrompia a audição, apertando a tecla pause. Aproveitava o intervalo para escrever dois ou três vocábulos num bloquinho. Pressionando, novamente, primeiro o botão Fast-Rewind e depois Play, ouvia de novo o mesmo trechinho.

    Foi desse modo, retrocedendo e avançando inúmeras vezes, que pude decifrar, na íntegra, a letra de cada canção. Possuindo um bom ouvido, transcrevi foneticamente, palavra por palavra, todos os sambas e marchinhas de carnaval registrados na fita magnética. Apesar da tarefa ser laboriosa, não encontrei muita dificuldade em ter de anotar as frases numa língua que eu desconhecia, uma vez que o português se escreve praticamente como se pronuncia.

    Nos dois últimos dias daquela semana de recesso laboral, treinei o canto, acompanhando a voz dos puxadores embalando suas escolas. Repetindo os versos, que nem papagaio treinado, pois não tinha noção do sentido das palavras, prestei bem atenção no ritmo sincopado das músicas e tentei reproduzir o sotaque carioca dos intérpretes. Identifiquei as passagens durante as quais eu teria de dar um tal de breque, aquele momento exato de intervalo no acompanhamento.

    Quando chegou o dia da sessão semanal, plantei-me diante dos hirsutos instrumentistas e comecei a entoar os primeiros refrãos das seguintes melodias: Bahia de todos os deuses, O mundo melhor de Pixinguinha, Pela porta aberta, Os meninos da Mangueira, Foi um rio que passou na minha vida e outras tantas...

    Sem ter como negar meu esforço, a assembleia não teve outra saída, pois viu-se obrigada a engolir a sambista de araque na qual eu me transformara. Devo lembrar que, se não me aceitassem, meu namorado pularia fora e, consequentemente, o grupo perderia um ótimo percussionista.

    Junto com os membros desse círculo, subi em palcos e interpretei músicas do país que se tornaria minha nova pátria no ano seguinte. Animamos inclusive, em 1978, um baile popular, no dia das celebrações do 14 de julho, festa nacional que lembra a queda da Bastilha. Uma multidão de jovens, que nos assistia espremendo-se na pequena praça da Contrescarpe, local onde fora montado nosso palanque, delirou e pulou a noite inteira. Mais tarde, o motorista de táxi que nos levou para casa relatou nunca ter visto um público tão inebriado e eufórico.

    Acredito que foi com aquela turma que estivemos presentes durante um carnaval organizado pela comunidade brasileira, numa sala de espetáculo que iria tornar-se dramática e mundialmente lembrada: LE BATACLAN! Isso mesmo! O local onde houve o terrível atentado, em novembro de 2015. Recordo que foi nesse exato lugar que provei, pela primeira vez, uma bebida de gosto peculiar, chamada Guaraná. Achei-a ligeiramente parecida com uma sidra muito adocicada.

    De modo geral, as jovens do grupo eram morenas brejeiras, que não faziam uso de maquiagem alguma e não possuíam peitos turbinados ou jubas artificialmente alisadas, como as brasileiras de hoje. Eram lindas Teresas nascidas no país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Entre todas, existia uma moça que se distinguia pelo timbre de voz encorpado. Exímia intérprete, ela sabia de cor uma profusão de canções brasileiras, de variados gêneros. Irei chamá-la de Luísa.

    Eu soube, através de alguns elementos, que a jovem estava apaixonadíssima por um aclamado compositor e cantor, muito mais velho, criador de delicadas canções intimistas, profundamente românticas. Segundo o zunzum, a família teria enviado a jovem para estudar na Europa, na vã tentativa de fazê-la esquecer esse homem, famoso por ser um incorrigível mulherengo e notório beberrão.

    Eu não sei se essa informação procedia, dado que a moça não parecia ter sido exilada a pulso ou a contragosto. Tudo indicava que ela seguia algum curso. Lembro que, talvez por causa do seu vasto conhecimento musical, a jovem exercia certa liderança sobre a turma.

    Foi no início de 1979 que resolvemos, meu namorado e eu, abandonar a equipe dos barbados, pois pretendíamos montar um novo conjunto. Havíamos conhecido um francês, nascido nas Novas Hébridas. Chamava-se Pascal e, além de cantar em português, o moço tocava violão divinamente bem. Outro jovem, um brasileiro, cujo nome era Nelson, igualmente abandonaria a galera e se juntaria a nós, trazendo um cavaquinho na maleta. Meu amado marcaria o ritmo com seu tantã de madeira e eu seria a voz feminina.

    Não lembro quem foi que nos apresentou a um empresário judeu, só sei que, logo após a formação do nosso quarteto, o homem passou a cuidar dos nossos interesses profissionais. Foi através dele que recebemos nossos primeiros cachês de artistas! A partir dessa parceria, passamos a nos exibir em casamentos hebraicos, em celebrações de Bar Mitzvá e outras comemorações israelitas. Graças ao nosso sucesso, ganhávamos uma graninha nada negligenciável, que arredondava os finais de mês das nossas existências cheias de boemia.

    Para dar um toque tropical ao meu visual, copiei o estilo de uma cantora brasileira que se apresentava em Paris nos anos 70: a bela cabocla chamada Nazaré Pereira. Filha de seringueiro com índia e crescida na Amazônia, Nazaré tinha um repertório cheio de xaxados, xotes e baião. Eu havia assistido a uma apresentação da moça em uma casa noturna, situada, se não me engano, na rua Mouffetard. Lembro de ter ficado encantada ao ouvir a morena entoar O Cheiro da Carolina, de Luiz Gonzaga. Reparei na sua blusa ciganinha, com decote de ombro a ombro, desnudando a parte superior do busto acobreado. Uma flor graúda adornava sua farta e crespa cabeleireira.

    No dia seguinte, percorri lojas atrás de uma bata igual. Encontrei uma parecida, com um grande babado bordado, contornando a alargada abertura da cabeça. Comprei também uma orquídea de tecido, que parecia bem real. A roupa exibia meu colo branquelo e era meio difícil segurar a falsa flor nos meus cabelos lambidos e escorregadios de europeia. Mesmo assim, conferindo minha aparência no espelho, fiquei satisfeita com o novo visual, que eu julgava ser o suprassumo do exotismo tupiniquim.

    A sovinice do empresário nunca liberava verbas para um táxi. Portanto, o popular metrô parisiense era o meio de transporte que utilizávamos para comparecer aos locais das apresentações, em geral, os salões de festas dos hotéis cinco estrelas da capital.

    Ao chegar na estação inicial, já começávamos a treinar, na intenção de aquecer dedos e cordas vocais. Naqueles tempos, não existiam muitos artistas se exibindo nos espaços desse transporte coletivo. Portanto, assim que os sons empolgantes dos nossos sambas ecoavam nos corredores subterrâneos, os passageiros esqueciam-se de espalhar-se ao longo da plataforma. Assim que iam chegando, cercavam nossa pequena banda. Na hora em que o metrô saía do túnel e encostava na estação, uma pequena aglomeração invadia o mesmo vagão no qual nos enfiávamos.

    Em cada uma das paradas da linha, outras pessoas eram seduzidas e fisgadas pelos nossos acordes alegres, saindo pelas portas automaticamente abertas. Todos se dirigiam para o mesmo lugar onde quatro jovens fascinavam com seus cantos entusiasmados, operários, vendedores, secretárias e até executivos de volta para casa após um dia de labor estafante.

    Os viajantes, grudados uns aos outros, esqueciam o desconforto da superlotação enquanto apreciavam nosso show, proporcionado gratuitamente. Alcançando a parada final, onde devíamos descer, éramos recompensados por inebriantes ovações,

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