Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Dizer o testemunho - volume III
Dizer o testemunho - volume III
Dizer o testemunho - volume III
E-book956 páginas8 horas

Dizer o testemunho - volume III

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Esta obra reúne parte dos artigos de Dom Luciano Mendes de Almeida publicados na Folha de S.Paulo de 02/01/1993 a 27/12/1997.
Dom Luciano foi uma figura extraordinária que marcou a história da Igreja no Brasil do século XX e início do século XXI. Os seus artigos revelam sua profunda sabedoria, o seu refinado conhecimento filosófico-teológico, sua invejável sensibilidade humana e social, sua visão eclesial equilibrada e, acima de tudo, a sua inenarrável experiência de Deus. Dom Luciano conseguia "ver Deus em todas as coisas e ver todas as coisas em Deus".
Os artigos de Dom Luciano não têm apenas a função de informar os leitores a respeito de determinados assuntos e problemas da sua época, mas possuem uma validade atemporal e uma perspectiva ética na medida em que formam consciência, tocam corações e geram desejo de conversão. Esta é uma obra para ser lida, meditada e experimentada existencialmente.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento8 de jan. de 2024
ISBN9786558082545
Dizer o testemunho - volume III

Relacionado a Dizer o testemunho - volume III

Títulos nesta série (1)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Nova era e espiritualidade para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Dizer o testemunho - volume III

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Dizer o testemunho - volume III - Vander Sebastião Martins

    Prefácio

    Como diretor-geral da Faculdade pertencente à Arquidiocese de Mariana/MG e que atualmente carrega o nome do seu fundador − Dom Luciano Mendes de Almeida −, tenho a honra e a responsabilidade de apresentar o volume III da obra Dizer o testemunho, de Dom Luciano Mendes de Almeida, cuja finalidade principal é colocar novamente à disposição do grande público os artigos escritos por este grande bispo que foram publicados semanalmente no jornal Folha de S.Paulo, no período de 02/01/1993 a 27/12/1997.

    Os artigos publicados nesta obra foram objeto da análise de um projeto de pesquisa desenvolvido pelos alunos do Curso de Filosofia da Faculdade Dom Luciano Mendes, sob a orientação dos professores Ms. Pe. Vander Sebastião Martins e Ms. Wander Torres Costa. Foi feito um trabalho acadêmico de leitura crítica, aprofundamento e discussão dos artigos de Dom Luciano, que resultaram nos textos introdutórios de cada seção desta obra (religião, sociedade e política). Portanto, este livro contém os artigos de Dom Luciano, antecedidos pelos textos resultantes do projeto de pesquisa.

    Neste ano em que celebramos os 20 anos de fundação da Faculdade Dom Luciano Mendes, que tem suas raízes mais profundas na instituição de ensino mais antiga de Minas Gerais, o quase tricentenário Seminário de Mariana, esta obra adquire relevância especial, pois homenageia e mantém viva a memória e os ensinamentos do seu fundador, o grande intelectual e atual Servo de Deus, denominado pelo Papa Francisco de Santo bispo de Mariana,¹ Dom Luciano Mendes de Almeida.

    Dom Luciano foi uma figura extraordinária que marcou a história da Igreja no Brasil do século XX e início do século XXI. Os seus artigos revelam a sua profunda sabedoria, o seu refinado conhecimento filosófico-teológico, sua invejável sensibilidade humana e social, sua visão eclesial equilibrada e, acima de tudo, a sua inenarrável experiência de Deus. Dom Luciano era um homem profundamente marcado pela espiritualidade inaciana e, por isso, a exemplo de seu mestre Santo Inácio de Loyola, conseguia ver Deus em todas as coisas e ver todas as coisas em Deus.

    Ao fazer uma leitura atenta dos artigos de Dom Luciano, é possível perceber que a sua preocupação maior é evidenciar o rosto de um Deus terno, amoroso, misericordioso e compassivo, que se faz próximo dos seres humanos, e, ao mesmo tempo, divulgar e promover os valores do Reino de Deus. Dom Luciano sonhava os sonhos de Deus para a humanidade, almejava uma religião que traduzisse sua profissão de fé em obras de amor e, acima de tudo, defendia o valor universal e inalienável de cada pessoa humana.

    Convido os leitores deste livro a se deixarem tocar existencialmente pelos temas nela abordados. Os artigos de Dom Luciano não têm apenas a função de informar os leitores a respeito de determinados assuntos e problemas da sua época, mas possuem uma validade atemporal e uma perspectiva ética, na medida em que formam consciência, tocam corações e geram desejo de conversão. Esta não é uma obra apenas para ser lida, mas também para ser meditada e experimentada existencialmente.

    Pe. Edmar José da Silva

    Diretor-geral da FDLM

    Dom Luciano Mendes:

    uma vida em favor dos menos favorecidos

    Nascido no dia 5 de outubro de 1930, no Rio de Janeiro, vindo de família católica, filho de Cândido Mendes de Almeida e de Emília Mello Vieira Mendes de Almeida, Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, ainda jovem, aos 16 anos, entrou para a Companhia de Jesus, ordem religiosa de Santo Inácio.

    Estudou Filosofia em Nova Friburgo (RJ) de 1951 a 1953 e, em Roma, fez seus estudos de Teologia de 1955 a 1958, quando, no último ano, foi ordenado padre. Terminou seus estudos na Europa, com o grau de doutor em Filosofia no ano de 1965. Nomeado bispo auxiliar de São Paulo, recebeu a sagração episcopal no dia 2 de maio de 1976 por Dom Paulo Evaristo Arns.

    Destacou-se no trabalho à frente da CNBB como secretário-geral de 1979 a 1987 e como presidente de 1987 a 1994. Foi membro do Conselho Permanente dos Sínodos Episcopais desde 1987 e da Pontifícia Comissão Justiça e Paz desde 1992, além de vice-presidente do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) de 1995 a 1998. Antes de receber indicação para assumir o governo da Arquidiocese de Mariana, foi bispo auxiliar na Arquidiocese de São Paulo, na Região Leste I, de 1976 a 1988. Foi o bispo brasileiro que mais participou dos sínodos no Vaticano.

    Outro grande destaque se refere às reformas sociais, as quais sempre defendeu, cobrando do governo sua execução, para que pudessem favorecer os mais pobres.

    Em suas falas firmes em relação às questões doutrinárias, rejeitou o aborto, criticou a campanha de combate à Aids, esboçou sua opinião contra o divórcio e sempre foi a favor da vida.

    Dom Luciano organizou a Arquidiocese de Mariana em cinco regiões pastorais e dedicou especial atenção à formação do clero, reestruturando o seminário arquidiocesano. Igualmente, priorizou a atuação dos leigos, realizando assembleias pastorais, constituindo os conselhos arquidiocesanos, dinamizando as dimensões e pastorais, como catequese, Liturgia, Pastoral da Criança e do Menor, Pastoral da Juventude, Pastoral das Vocações e Ministérios, Pastoral do Dízimo e Pastoral Familiar.

    Sob a sua orientação, a Arquidiocese investiu na comunicação, criando o Departamento Arquidiocesano de Comunicação (DACOM) e modernizando a Editora Dom Viçoso. O patrimônio histórico, artístico e cultural (igrejas, museus, imagens etc.) também mereceu do arcebispo grande atenção, com destaque para a recuperação do Santuário Nossa Senhora do Carmo, destruído em incêndio no ano de 2001, e do Palácio dos Bispos.

    Parte I


    Religião

    Lembranças do Eterno

    "Se aprendermos a amar com o coração de Cristo,

    surgirá, aos poucos, uma sociedade diferente,

    verdadeiramente fraterna" (Dom Luciano).

    Com a publicação do terceiro volume da obra Dizer o testemunho, prosseguimos tornando concreto o desejo de apresentar, em livro, os artigos que o servo de Deus, Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida (1930-2006), fez publicar no jornal Folha de S.Paulo, semanalmente, durante os anos de 1993 a 1997.

    O critério aqui adotado segue a metodologia das duas publicações anteriores, cuidando de reunir os artigos, a partir de três temáticas recorrentes em seus escritos: religião, sociedade e política. Com essa opção, pretendemos oferecer a possibilidade de uma leitura agradável, sem o rigor da separação das três dimensões elencadas neste volume.

    Sob o título Lembranças do eterno, descortinamos, aqui, a parte que aborda a temática da religião, presente, como a alma no corpo, em todas as publicações da lavra de Dom Luciano Mendes.

    Ao falar da religião, o servo de Deus convoca as pessoas, em primeiro lugar os cristãos, a assumirem o amor a Deus, antes de tudo, para manifestá-lo através do engajamento na luta contra a miséria, contra a injustiça, contra a opressão e contra a ganância. É convocação a enxergar as contradições presentes na história, julgá-las a partir da fé, com a finalidade de contribuir para a transformação da sociedade, tornando visível o Reino de Deus.

    Essa parte dedicada à religião é constituída por 113 artigos, sempre levando em conta que a visão religiosa de Dom Luciano implica uma atenção especial ao contexto sociopolítico, nacional e internacional, visto e avaliado a partir da perspectiva de fé em Jesus Cristo.

    A leitura dos artigos revela uma liderança religiosa preocupada com as grandes questões mundiais, a começar pelo sofrimento e agonia de pessoas simples, anônimas, nas periferias geográficas e existenciais da sociedade. Seu olhar atento, de pastor fiel e amável, percebe, em meio aos grandes acontecimentos mundiais, um jovem pobre agredido até a morte por colegas da mesma idade, na periferia de Brasília, ou uma mãe que sofre pela perda de seu filho (Marcos), assassinado, no contexto da violência e das drogas, na pequena cidade de Barbacena-MG (15/05/93).

    A leitura e seleção dos artigos nos trazem à lembrança a beleza que foram a existência e o pastoreio de Dom Luciano. Inteligência privilegiada, iluminou a vida interna da Igreja, trouxe esperança e apresentou palavras adequadas para cada momento e situação, para as grandes questões e problemas nacionais (29/01/94) e internacionais (22/04/95; 25/06/94; 23/01/93).

    Os artigos de Dom Luciano são sustentados por uma estrutura coerente e permanente, dentro da qual ele se move: inicia mostrando o problema, evento ou situação da vida cotidiana (02/09/93; 24/04/93); em seguida, procura compreender e avaliar a realidade à luz da Palavra de Deus (13/11/93; 04/09/93; 15/05/93); ao final, apresenta uma solução, um caminho. Ele não admitia a omissão, diante dos graves problemas vividos pelo povo. Enfrentava-os com zelo de pastor (04/09/93; 19/06/93; 01/05/93; 18/11/95).

    Seu olhar penetrante acusa o micro e o macro, com precisão incrível. Seu justo juízo, sempre orientado e sustentado pela fé em Deus e pelos valores éticos e morais, desnuda os equívocos e as contradições das pessoas, das instituições e do mundo. Seu agir, inspirado em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado, manifesta todo o seu empenho na construção da fraternidade universal.

    A leitura de seus artigos nos permite fazer um retrato bastante fiel da realidade mundial (23/01/93; 30/09/93; 14/09/94; 23/01/93), latino-americana (26/03/93) e brasileira (14/09/94). A cada ano, ele apresentou reflexões interessantes sobre os principais eventos da Igreja, em particular, bem como da sociedade e da política, em geral. Não passam despercebidos quaisquer eventos ou datas importantes. Pastor incansável, tudo ele vê e analisa. Faz de tudo para tornar o mundo melhor.

    Seus escritos o revelam um profeta que denunciava com rigor as injustiças, a ganância e o egoísmo dos poderosos, como obstáculos para a construção de uma sociedade igualitária, como grave empecilho ao desenvolvimento de políticas públicas favoráveis aos pobres. Sua compreensão de Igreja e de fé era impensável, sem a predileção pelos pobres e oprimidos (07/01/94).

    Assim era Dom Luciano, tudo o afetava: o sofrimento dos pobres, as dores dos amigos que encontrava pelas estradas, a corrupção do sistema político, os grandes conflitos mundiais. Para ele, a cidade dos homens, sem a luz e inspiração da fé, se perde e é incapaz de criar condições de vida plena para o povo.

    É a partir da fé que ele olha e propõe ações, em favor de uma humanidade reconciliada, daí o constante recurso aos eventos do calendário litúrgico, como fonte inspiradora a partir da qual ele escolhe temas que considera importantes, para tocar o coração de seus leitores, chamando-os à conversão: O tempo de Quaresma leva-nos a examinar a consciência no desejo de sincera conversão pessoal e compromisso na construção de uma sociedade solidária, conforme a vontade de Deus (11/03/95).

    Dá grande ênfase ao tempo pascal, como evento que traz grande otimismo ao gênero humano, alimentando um forte desejo de conversão e de amor universal: A Páscoa de Cristo é passagem do pecado à vida nova e a um tipo diferente de sociedade, marcada, não pela sede de ter mais, e sim pelo respeito à dignidade de cada pessoa, à luz de Deus. A ambição cederá lugar ao mandamento do amor gratuito e universal. Começarão os gestos, de reconciliação, serviço e partilha (10/04/93).

    Os artigos selecionados para a temática religiosa revelam que, para Dom Luciano, a história é necessariamente guiada por Deus. No entanto, o homem é chamado a participar ativamente como colaborador de Deus. Por isso, a religião não deve fugir dos problemas do mundo, mas, ao contrário, ela tem a tarefa de apresentar os valores e princípios que brotam do Evangelho, para nortearem os rumos da história (14/01/94).

    Em dado momento, ele chega a sustentar que será possível construir um mundo melhor a partir somente da ética e do agir moral (19/06/93). Seus textos, porém, mostram que ele considera que, no interior da consciência humana que sempre deseja o bem e evita o mal, habita o próprio Deus (19/06/93). Portanto, para ele eticidade e religiosidade são inseparáveis na vida de uma pessoa (07/08/94).

    Outra fonte inspiradora para os escritos de Dom Luciano são as comemorações cívicas. Seu primeiro artigo de cada ano é uma mensagem de esperança e otimismo, sempre ancorada na fé e na confiança no poder e na misericórdia de Deus.

    O último artigo de cada ano é uma breve síntese ou avaliação do período que termina: recupera pontos positivos, denuncia algumas situações difíceis e chama a todos para fazer diferente e melhor no ano que está para ser iniciado (31/12/94). Por mais difícil que tenha sido o ano que está findando, seu otimismo fica evidente, quando seu olhar se dirige para o Ano-Novo que se aproxima. Nunca lhe falta esperança.

    Nos momentos de grandes festas, como Carnaval, Natal e Ano-Novo, com frequência, ele nos lembra dos pobres que sofrem, dos enfermos que agonizam nos hospitais, dos prisioneiros que ficam esquecidos e dos idosos nos asilos, bem como dos graves problemas que afetam especialmente os mais humildes.

    Interessante e fundamental para compreender as convicções profundas de Dom Luciano é entrar em contato com sua visão antropológica. Para ele, toda pessoa possui uma dignidade que se torna evidente a partir da fé em Deus, que nos cria à sua imagem e semelhança: "O Evangelho nos ensina a origem da dignidade de cada pessoa, à luz do amor de Deus. Jesus Cristo nos revela que, já neste mundo, somos chamados a conhecer a vida de Deus e dela participar pelo amor gratuito e universal ao próximo [...] Feliz é quem faz os outros felizes" (11/09/93).

    O bem, infundido na pessoa humana pelo Criador, aumenta a confiança e o otimismo de Dom Luciano no ser humano, cuja conversão constitui uma possibilidade real, por mais corrompida que esteja a pessoa: Há duas verdades fundamentais que nos levam convictamente a defender a vida, dom de Deus. A primeira é a capacidade que todos temos de superar o mal e de refazermos o caminho do bem [...] A segunda verdade é da responsabilidade fraterna. Quando alguém erra, a culpa é nossa também, pois temos o dever de colaborar para a vida e recuperação dos outros. Maior ainda é esta obrigação para quem crê no Evangelho de Jesus Cristo (16/01/93).

    Ele propugna que toda pessoa recebe do Criador uma luz que lhe permite o discernimento do bem e do mal. No interior de cada pessoa, existem os princípios éticos de base que orientam ou deveriam orientar o itinerário do ser humano no mundo: Quem de nós não experimenta essa voz interior? Ela tem, também, a força de uma luz que ilumina nossos atos livres, mostrando o que é certo e errado (05/06/93).

    Porque a pessoa humana tem, em si mesma, o conhecimento do bem e do mal e pode agir com liberdade, é convocada a viver com responsabilidade sua existência. E sua primeira tarefa é a de ser fiel à própria consciência. O pecado é, em primeiro lugar, trair nossas convicções mais profundas, além de destruir e prejudicar a imagem que temos de nós mesmos. Viver em harmonia consigo mesmo é ser fiel ao bem e à verdade que a própria consciência, iluminada por Deus, nos mostra. Deus fala ao ser humano a partir do mais profundo da própria consciência.

    Não obstante essa presença do eterno em nós, continuamos com o coração fechado aos demais. Muitos não se compadecem de ninguém. Coração petrificado. No mundo, ainda reina implacável a lei do mais forte. Não poucos se dedicam exclusivamente aos bens materiais e à busca desenfreada de prazer e de poder, ignorando, por completo, a voz da própria consciência. Daí a necessidade de alguém que lembre aos homens e às mulheres a presença do eterno na história e na vida de cada ser, para ajudá-los a transcender suas próprias paixões e egoísmo.

    O otimismo de Dom Luciano, em relação à pessoa humana, o torna incansável na luta contra as injustiças e na conservação da dignidade do ser humano.

    Dom Luciano insiste na ideia de que todos somos responsáveis pelo bem comum. Citando João Paulo II, ele sustenta que: Os cristãos não podem abdicar da participação na política, ou seja, na variada ação que promove orgânica e institucionalmente o bem comum. O que está na raiz do exercício da cidadania e da participação política é o espírito de serviço e solidariedade que nos leva a promover os direitos e deveres de todos e de cada um (17/09/94).

    Concebendo o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, e convencido da dignidade de cada pessoa, Dom Luciano se via na obrigação de lutar pela justiça social, sobretudo pelos pobres e indefesos. É nos horizontes da fé que compreendemos sua opção pelos pobres: A honestidade, a justiça, a paz e a promoção do bem comum, que a todos deveriam atrair, para o cristão tem como fundamento o amor gratuito e universal que Jesus nos ensina. Assim, na base da justiça social, deve estar o amor que leva ao apreço e respeito a toda pessoa humana, sem discriminações de classe, raça e origem. O cristão, a exemplo de Jesus, precisa ainda assegurar a solicitude pelos mais carentes, no anseio de oferecer a eles condições dignas de vida, reduzindo as distâncias que separam ricos e pobres, até chegarmos a uma vivência verdadeira da fraternidade (02/04/94).

    Em cada artigo, as soluções apresentadas têm fundamento na fé. O caos reinante na sociedade se explica pela ausência de Deus. Perdido o horizonte da transcendência, a pessoa humana volta-se para si mesma e vive egoisticamente sua existência, numa busca desenfreada pelo ter e pelo prazer. Para Dom Luciano, está claro que a mudança comportamental só será possível através do abandono ou destruição do sistema vigente, marcado pelo lucro e violência. É preciso instaurar uma nova ordem social, capaz de promover e respeitar a dignidade de todas pessoas (19/06/93).

    O fato de Dom Luciano apontar que a saída está na conversão do homem a Deus não significa que ele não acredite nas instituições humanas democráticas. Ele sabe que, sozinhas, elas são incapazes de proporcionar a felicidade da humanidade: Para nossa sociedade, ainda hoje violenta e vingativa, a única solução é a lei divina do amor (14/08/93). Sobre essa sua convicção ele continua: Precisamos, quanto antes, ordenar os valores da sociedade e rever nosso comportamento diante de Deus e da própria consciência. À luz do Evangelho, torna-se necessário converter o próprio coração, para reconhecermos o respeito devido a Deus e à dignidade de cada irmão, de cada irmã (31/07/93).

    Apontando Deus como solução para a vitória sobre o caos, ele compreende igualmente que é tarefa da Igreja contribuir para a formação da consciência ética, responsável e solidária, à luz dos valores do Evangelho (28/05/93). Não entra em seus horizontes uma evangelização que não promova, a um só tempo, a pessoa humana (10/06/95). Sustenta que, somente com o auxílio da graça de Deus, a sociedade organizada poderá, a curto prazo, demonstrar que, à luz dos princípios cristãos, é possível sanar, entre nós, o problema da fome e do empobrecimento, garantindo condições dignas de vida para todos os brasileiros (23/01/93).

    O abandono dá fé ou a indiferença religiosa constituem o grande problema do mundo moderno: Apagando-se a consciência do pecado, recrudescem o vício, a violência e as injustiças. A grande resposta é a fé em Deus, amado sobre todas as coisas (19/03/93). Dom Luciano está convencido de que mudança nenhuma é possível, se Deus não estiver presente no coração da pessoa humana (17/06/95).

    Na temática religiosa, fica evidente que Dom Luciano sabe que o ser humano se apega muito a este mundo e se esquece de que está aqui de passagem, que sua existência é efêmera. Por isso, ele se pergunta, angustiado, por que acumular tanto, se o nosso tempo é tão pouco, é tão efêmero? Por que ajuntar tantos bens, se não teremos nem mesmo tempo para consumi-los (11/03/95). Ele nos lembra do eterno.

    Incansavelmente, ele recorda que o ideal maior do cristão é construir, de todos os povos, a fraternidade universal, sem barreiras ou muros de separação. O importante é construir uma nação de irmãos, na qual ninguém se sinta estrangeiro ou tenha necessidade de visto para entrar.

    Assim, ele recorda que, quando se deixa guiar pelos valores éticos e democráticos, a política se converte numa ferramenta importante a favor da vida e da promoção do bem comum. Baseado nos valores e princípios que brotam da fé cristã, ele denuncia o descaso com a saúde, com a educação e com a segurança pública. Mostra que a corrupção e a impunidade são uma agressão à vida do povo, especialmente dos mais pobres.

    Em sua compreensão, não deveria existir separação entre religião e política. O religioso deve estar atento ao mundo, para dar sua colaboração às instituições democráticas: Pertence aos cristãos oferecer, à luz dos princípios do Evangelho e da doutrina social da Igreja, sua cooperação, para que o anseio de democracia participativa responda sempre mais ao ideal da justiça e fraternidade para todos (11/03/95).

    Motivado por essa convicção profunda, ele nunca deixou de se envolver nos assuntos políticos e sociais. Ao contrário, em atitude de diálogo, sempre denunciou, com coragem, as injustiças e desmandos dos responsáveis pelo poder. É por isso que ele nos traz à memória o sofrimento dos índios que aguardam aflitos a demarcação de suas terras, e denuncia que a ganância e o egoísmo, a certeza da impunidade e a lentidão dos políticos terminam por favorecer o crescimento dos conflitos e da violência no campo (26/03/93) e na cidade, bem como aumentam a fome, o drama das crianças abandonadas e do povo de rua.

    Com igual determinação, denuncia a situação dos imigrantes espalhados pelo mundo por causa da miséria, da situação climática e dos conflitos internacionais. E lembra que muitas vidas são ceifadas cruelmente, devido ao descaso das grandes nações, que não se empenham na solução dos graves problemas que afligem os pobres, mundo afora. E conclui que, diante de Deus, nós temos o dever de cuidar dos pobres e, especialmente, das crianças.

    Por fim, a leitura desses artigos nos permite conhecer um pouco sobre a vida familiar de Dom Luciano, através de pequenas referências autobiográficas (30/08/97; 19/03/93).

    Mesmo avesso à autorreferencialidade, em alguns poucos artigos ele confessa, por exemplo, a falta da presença do pai: homem reservado e muito dedicado ao trabalho e com pouco tempo para a família. Sem contar que o próprio Dom Luciano saíra muito cedo de casa para ingressar na Companhia de Jesus. Ressalta com grande alegria, porém, a presença de seu pai no momento em que entrou para o seminário e no dia de sua ordenação. Revela que, apesar de seu pai ser um homem calado, no dia de sua ordenação, ele se ajoelhou para agradecer a Deus.

    De sua mãe as lembranças são mais positivas e vivas. Era a professora sempre presente. Mulher da filantropia, cumpridora do Evangelho, educadora da fé. Ensinou as orações e, como boa catequista doméstica, educou os filhos na fé e na participação assídua na Eucaristia. Além do tempo dedicado aos filhos e à educação, encontrava um jeitinho de subir aos morros da cidade do Rio de Janeiro para ajudar os pobres. Dom Luciano revela que era costume de sua mãe economizar em casa para poder ajudar mais os pobres das favelas.

    De sua infância, ele recorda, com imensa alegria, do tempo em que serviu, como coroinha, o Padre Leonel Franca, grande filósofo. E, já naquela época, alimentava-se espiritualmente e se formava através das ricas e profundas palavras do filósofo, por ocasião da administração dos sacramentos.

    É possível perceber, na leitura dos artigos, alguns traços da personalidade de Dom Luciano. Aparecem nos textos, nas entrelinhas, por exemplo, sua tristeza e desânimo, diante dos desafios e problemas do povo. Sabe-se que o otimismo era uma marca conhecida de Dom Luciano. Contudo, uma leitura cuidadosa dos artigos mostra momentos de fraqueza, de desânimo. A angústia não lhe era estranha. Algumas expressões fortes revelam esse seu lado pouco explorado. A superação dessa espécie de depressão era possibilitada pela fé numa ordem transcendente.

    Nos artigos, nesta primeira parte deste livro, Dom Luciano, em muitas ocasiões, mostra-se abatido, triste. Por vezes, até sem esperança, vencido. Revela toda sua decepção de pastor, e une-se ao Cristo sofredor, ao Cristo do Monte das Oliveiras. Como o Cristo, compassivo, ele chora amargamente pelos pecados do mundo. Seu coração parece sangrar diante de algumas situações. Nessas ocasiões, ele usa expressões fortes e chocantes, destoando de seu conhecido, costumeiro e manifesto otimismo: "Mesmo quando o caos e o desânimo parecem dominar [...] Não ceder ao desânimo" [...] (23/10/93); "Além da miséria que atinge a tantos, existe outra miséria maior: é a miséria moral. Não existe apenas a agressão física à vida sob a forma de assaltos, sequestros, chacinas e linchamentos. Há algo mais profundo: é a perda de valores éticos, acarretando a série de desmandos comportamentais (21/08/93); Faltam boas notícias. Somam-se miséria, seca, corrupção e violência. O horizonte permanece cinzento e pesado (10/04/93); miséria e fome continuam questionando nossa consciência. Ficamos angustiados, desejando que haja pão para todos. Diante da corrupção e dos desmandos morais, como conseguir a mudança de comportamento e a transformação da sociedade?" (19/05/93). São alguns dos vários trechos que mostram a desilusão e o sofrimento do pastor amável e bondoso.

    O mal, presente na sociedade, é sempre o pecado, constata com tristeza Dom Luciano: Precisamos desta luz para perceber onde está a causa de tantos problemas e decepções. Há um vício fundamental que lesa os esforços da sociedade e da vida pessoal. É o fato de que tudo está voltado para a acumulação de bens materiais e para o lucro desmedido. Existe uma atração, difícil de ser vencida, para a riqueza e o gozo de vida cômoda, sem trabalho nem sacrifícios. Sequestros e assaltos visam obter dinheiro. Novelas e propagandas comerciais ferem a consciência e atropelam valores morais, para conseguir maior audiência e faturamento. Qual é a raiz da corrupção política? É o anseio de enriquecimento rápido, embora ilícito. A busca desenfreada de lucro gera um modelo de sociedade perniciosa, caracterizada pelo egoísmo e desrespeito ao próximo. O que importa é enriquecer sempre mais e desfrutar a vida fácil. Isto demonstra perversão de discernimento e desordem de valores (10/04/93). O pecado cresce sempre mais e parece definitivamente que vencerá.

    Apresenta-se decepcionado com as estruturas de poder presentes no mundo, mostrando que a cidade dos homens estará completamente falida, decadente e sem esperança, se não se abrir ao auxílio da graça. No tempo em que Jesus Cristo iniciou sua pregação, no coração humano havia − como hoje − o pecado que ofende a Deus, semeia o ódio e a discórdia. Jesus Cristo não considerou que tudo estava perdido. Longe de se abater diante da maldade, repetia a palavra que salva, convocando a todos para a conversão interior, a correção do erro, assegurando-nos da parte de Deus a misericórdia que perdoa e a graça que nos fortifica para querer e fazer o bem. O mal não há de dominar. É possível vencer o ódio pelo amor (04/09/93). A angústia sentida o fazia entrar numa espécie de esperança de socorro da parte de Deus.

    Dom Luciano tinha os pés no chão. Seu otimismo não era ingênuo. Sua angústia não era doentia. Diante de algumas situações, o único sentimento possível é o da indignação, angústia e tristeza. Ele sabia que o mundo não é um mar de rosas. A certeza da vitória do amor sobre o ódio remete ao evento pascal. O sofrimento na cruz aponta para a glória da ressurreição. Existe, sim, uma solução: a conversão do coração a Deus. Assim, e somente assim, será possível a superação do egoísmo para a construção da tão sonhada fraternidade universal: O remédio para a crise social é a conversão a Deus. ‘Só Deus nos faz querer e praticar o bem’ (02/01/93).

    Os artigos de Dom Luciano revelam um pastor cheio de sabedoria e compaixão na condução do seu rebanho. Sabia atrair, inclusive, quem não fazia parte do seu rebanho. Experimentou a sede e a fome do povo. Fez-se próximo e cuidador.

    Queira Deus que a leitura desses artigos nos faça conhecer e vivenciar os três aspectos, na visão de Dom Luciano, tão fundamentais para construir a fraternidade universal: O primeiro é a oração por uma vida mais simples, mais sóbria, para conservar os recursos naturais e permitir uma participação maior de todos nos bens materiais. O segundo é a liberdade interior que leva ao desapego, à luz da transitoriedade desta vida e da certeza da ressurreição, graças a Jesus Cristo. O terceiro é o respeito a cada pessoa, valorizando as diferenças de origem, de formação e cultura. Nesta perspectiva há de sobressair a força dos valores espirituais que dão verdadeiro sentido à vida (13/03/93).²

    Campanha da Fraternidade

    20/02/1993

    Neste ano o tema é fraternidade e moradia. O tempo litúrgico da Quaresma prepara-nos durante 40 dias, cada ano, para celebrar o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Com a quarta-feira de Cinzas começa o tempo de penitência e conversão. Comemorando, na fé, a vitória de Jesus Cristo sobre o pecado, o egoísmo e a morte, procuramos assumir melhor a vida nova que o Filho de Deus nos comunica: o amor a Deus e ao próximo. Este amor requer de cada um de nós e das comunidades cristãs um esforço constante na prática da fraternidade. Neste ano somos convidados a voltar nosso olhar para a realidade da moradia de nosso povo.

    Que vemos? O êxodo rural dos últimos decênios aliado à especulação imobiliária agravou a situação das cidades. Muitas famílias não têm moradia digna nem fixa e sobrevivem em condições precárias e até subumanas. Favelas, cortiços e lotes clandestinos marcam a fotografia e o drama cotidiano de nossas capitais.

    Que pensar desta situação? Deus quer a dignidade da pessoa humana. Sem casa, a família se desagrega, as crianças vão para a rua, surgem incertezas, sofrimentos e miséria. Cresce cada vez mais o número de catadores de papel e sofredores de rua, sem segurança e sem teto. O cartaz da CF mostra toda aflição de um casal diante do futuro incerto. A casa digna é sinal do Reino de Deus entre nós, é o abrigo, a defesa, o lugar do descanso, do afeto, aconchego e solidariedade. No lar, educam-se os filhos e garante-se o amparo dos idosos. A moradia estável é condição básica para o desenvolvimento da pessoa, da família e do exercício da cidadania.

    Que fazer? A CF 1993 convida-nos a rezar, refletir e descobrir gestos concretos de fraternidade que permitam transformar as situações injustas e promover moradia digna para todos. Sociedade e governo precisam encontrar, a curto prazo, solução para esse problema crucial. O programa é amplo. Requer-se o auxílio das leis que garantam a distribuição justa do solo urbano, atendendo à função social da sociedade. Possuir uma casa própria sempre foi o maior sonho de uma família. É preciso retomar a política de construção de casas populares para as famílias de baixa renda. Saudamos os novos programas do governo federal e de vários Estados, anunciando iniciativas promissoras. Temos que apoiar as associações e movimentos de moradia popular e a formação de conselhos municipais de habitação popular que fomentam e preparam a convivência pelo trabalho de mutirão.

    No próximo mês, em São Paulo, nos dias 13 e 14 vai se realizar o encontro nacional desses movimentos, apoiando o projeto de lei que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular, entregue ao Congresso a 19/11/91 com mais de um milhão de assinaturas.

    A igreja é chamada, especialmente neste tempo de Quaresma, a fortalecer, à luz do Evangelho, a vontade de servir e de contribuir em todo país com uma nova política habitacional.

    Que Deus nos conceda a graça de aliviarmos o quanto antes − pelo empenho das comunidades − o sofrimento de tantos irmãos sem-teto. Como na casa de Jesus, Maria e José, em Nazaré, Deus esteja em cada lar dando a todos, nesta campanha da fraternidade, união, paz, vida e esperança.

    Quaresma e a Amazônia

    27/02/1993

    O tempo da Quaresma significa para as comunidades cristãs um período de oração e crescimento na fé, para melhor preparar, cada ano, a Páscoa de Jesus Cristo. A graça de Deus nos move à conversão interior e à prática da caridade. No Brasil, a Campanha da Fraternidade convida-nos, neste ano, a promover moradia digna para nosso povo.

    Na Alemanha, durante a Quaresma, a ação missionária Misereor convoca as comunidades para refletir sobre a responsabilidade dos cristãos quanto ao desenvolvimento e o meio ambiente. Em todas as paróquias um cartaz chama a atenção para a região amazônica, que abrange nove países da América Latina. Aparece em cores a floresta tropical queimada, em contraste com a beleza do rio e das margens verdes, cheias de vida. No centro do cartaz o rosto do seringueiro incerto sobre seu futuro mostra o vínculo entre o homem e a natureza. Em grandes letras lê-se o lema: Conservar a criação, para que todos tenham vida.

    As paróquias recebem o texto para reflexão que questiona a consciência dos cristãos sobre a destruição do meio ambiente e compara a situação do mundo desenvolvido com a Amazônia. Na Alemanha, o que acontece? Há enorme consumo de matérias-primas, concentração de substâncias tóxicas no ar, resultante das indústrias e do excesso de carros. A quantidade de detritos na Alemanha supera, em cada ano, o total de 400 quilos por pessoa. Que fazer do lixo plástico e dos detritos especiais e nucleares? Preocupa a todos a destruição da camada de ozônio e o efeito estufa.

    E a região amazônica? Trata-se de um ecossistema complexo que requer grande equilíbrio para se manter. A agricultura, a caça e a pesca praticadas pelos povos indígenas eram adaptadas ao meio ambiente e não destruíam a floresta tropical. Nos últimos decênios, a Amazônia começou a ser vítima de enormes queimadas, de exploração desordenada de madeiras e extração de minerais. O mais triste e dramático é a morte dos grandes rios, através de toneladas de mercúrio, usado na concentração do minério aurífero. É o caso do rio Tapajós, agora poluído e antes de águas límpidas, com abundância de peixe, fonte de sobrevivência para a população ribeirinha. Vários índios já morreram envenenados. Que fazer?

    Nossa geração está destruindo o meio ambiente e as condições da própria existência. Esgotam-se as reservas básicas do planeta pela ganância predatória e pelo estilo de vida de exagerado consumismo.

    Para assegurar o futuro da humanidade não bastará preservar rios e florestas. Temos com urgência que mudar nosso modo de pensar e agir, baseado na ética que garanta a vida digna para todos. Além do esforço individual por um estilo de vida mais austero, que evite o desperdício e reduza o consumo, será indispensável, em nível mundial, rever o modelo de desenvolvimento, tornando-o compatível com a conservação da natureza, conforme as conclusões da Eco-92.

    A destruição progressiva da Amazônia serve de sinal e alarme para o mundo inteiro. Jesus Cristo venceu o pecado e a morte. Veio para que todos tenham vida plena. As comunidades cristãs, à luz do Evangelho, precisam dar exemplo de respeito à criação e de verdadeira solidariedade fraterna.

    Sementes de esperança

    06/03/1993

    A quaresma na Alemanha tem se revelado uma fonte de participação da juventude. Às vezes referimo-nos à nova geração com pessimismo e muita apreensão por causa da droga, da permissividade moral. É, portanto, com alegria que constatamos, na Alemanha, grupos, cada vez mais numerosos, de jovens com ideais humanitários e exemplo de atitudes promissoras.

    Esta juventude assume, com entusiasmo e coragem, a campanha lançada pela ação missionária Misereor: Conservar a natureza para que todos tenham vida. Demonstra profunda afinidade pelo tema, uma vez que a ela compete, de modo especial, preservar o meio ambiente e tornar possível a existência sobre o planeta. Em continuidade com os movimentos pela paz e pela justiça, multiplicam-se agora os grupos de defesa ecológica. São severos na crítica ao consumismo nos países ricos. Preocupam-se, sobretudo, com impedir a destruição da natureza e anseiam por mudar o rumo da história, superando a violência e injustiça social, pela prática da solidariedade fraterna.

    Neste ano, a abertura solene da quaresma deu-se em Bamberg. Os jovens organizaram uma grande caminhada. Partiram de Müster, revezando-se em quatro grupos e percorreram, apesar do frio e da neve, mais de 500 quilômetros. Entraram cantando na cidade, com cartazes e faixas em favor da vida. Reuniram-se milhares de pessoas para a celebração eucarística e para intenso programa com debates, cantos e troca de experiência.

    O que mais impressionou foi a projeção, em tela gigantesca, de cenas da Amazônia. Após a beleza das florestas e dos rios, apareceu a visão dramática das queimadas e destruição das matas. Cenas de terra árida e troncos secos. Morte das árvores e dos rios. Morte dos homens, também.

    Por quanto tempo poderemos ainda sobreviver? Amanhã não será tarde demais? Os jovens de hoje captam logo a mensagem e vibram com a esperança de mudar o horizonte de valores e evitar a hecatombe da humanidade.

    Daí o compromisso de começar já agora a modificar o estilo de vida: Torne a vida possível para todos.

    Num clima de alegria vão surgindo propostas novas e surpreendentes. Decidem convencer as empresas multinacionais a racionalizar o consumo de recursos naturais. Pretendem reduzir o uso de carros para evitar a poluição do ar. Fazem propaganda de bicicletas e de caminhadas a pé. Propõem uma vida simples e austera, privando-se de objetos e alimentos como gesto de solidariedade com os que passam fome. Interessam-se junto aos políticos para que favoreçam as organizações populares e projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo.

    No Brasil e em outros países a juventude vem despertando para os mesmos ideais. Os grupos que pensam assim são ainda poucos. Os gestos são modestos, mas têm valor de símbolo. São sementes de esperança e anunciam que é preciso o surgimento de uma nova civilização marcada pelos valores cristãos de solidariedade e de partilha.

    Quaresma e conversão

    13/03/1993

    Estamos na celebração da Páscoa de Jesus Cristo, mistério central da vida cristã. Nas leituras dominicais apresentam-se as exortações dos profetas à conversão e leem-se as passagens do Evangelho que já nos primeiros séculos eram usadas na preparação para o batismo dos adultos. A palavra de Deus desperta para a oração e convida o povo cristão a reviver as promessas do batismo. Neste sentido recomenda-se a participação nas celebrações penitenciais para que os fiéis purificados possam, com fruto, alegrar-se no Domingo da Ressurreição.

    A penitência ensina-nos a detestar o pecado como ofensa a Deus e a nos corrigir das faltas. A penitência quaresmal é a conversão interna e pessoal, mas também deve se manifestar na sua dimensão social, orientando-se para as obras de misericórdia em favor dos irmãos. É neste espírito que deve ser praticado o jejum na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa, bem como a abstinência de carne nas sextas-feiras. Esta última prática pode ser substituída por outro ato de penitência ou obra de caridade. O importante é sempre converter o coração para Deus.

    A Campanha da Fraternidade aponta, a cada ano, um aspecto que requer especial atenção dos fiéis, especialmente na dimensão social. A falta de moradia demonstra quanto estamos longe da sociedade justa em que cada família tenha um lar estável e digno. Daí a necessidade de unirmos nossos esforços para que haja a vontade de promover a política habitacional adequada. Quem não percebe o sofrimento de tantos irmãos que não têm onde morar ou que devem se contentar com quartos miseráveis e insalubres?

    O tempo da quaresma faz-nos pensar nas condições de uma sociedade solidária em que todos possam ter o necessário como fruto da verdadeira fraternidade. Há três aspectos que ajudam na construção desta sociedade. O primeiro é a oração por uma vida mais simples, mais sóbria, para conservar os recursos naturais e permitir uma participação maior de todos nos bens materiais. O segundo é a liberdade interior que leva ao desapego, à luz da transitoriedade desta vida e da certeza da ressurreição, graças a Jesus Cristo. O terceiro é o respeito a cada pessoa, valorizando as diferenças de origem, de formação e cultura. Nesta perspectiva há de sobressair a força dos valores espirituais que dão verdadeiro sentido à vida.

    Todos sonhamos com uma sociedade sem egoísmo, sem injustiça social e sem violência. O que parece utopia deve começar a ser realizado já nesta vida, demonstrando a vitória de Cristo sobre o pecado pessoal e social.

    Há, no entanto, fatos cuja correção não pode tardar mais, pelo muito que ofendem a Deus e ao próximo. Não podemos aceitar a morte de inocentes, fruto da covardia, amparada pela impunidade. Em Campo Bonito, Paraná, nesta semana, em represália pela morte de três policiais, foi utilizada uma criança, filha de um colono sem-terra, para procurar o pai foragido que, depois de encontrado, foi morto. Não podemos aceitar a morte dos policiais, como também somos obrigados a rejeitar a morte do colono e uso de uma criança como instrumento do assassinato de seu pai. No tempo de penitência precisamos pedir a Deus, todos, que converta o nosso coração.

    Padre Leonel Franca

    19/03/1993

    A Universidade Católica do Rio de Janeiro comemorou ontem o centenário de padre Leonel Franca, um de seus fundadores. Sacerdote jesuíta, de cultura vasta e profunda, ensinou pela palavra e escritos, notabilizando-se pelo zelo em defender a fé, discernimento espiritual e dedicação em dirigir as consciências. Aos 55 anos, em 1949, foi chamado por Deus para receber o prêmio de uma vida exemplar.

    Lembro-me de como o conheci, nos anos 40. Naquela época padre Franca organizara os cursos de filosofia e direito da futura universidade. Apesar da saúde precária, com grave deficiência cardíaca, estava sempre disponível para ouvir e orientar quem o procurava. Bem cedo, diariamente, celebrava a Eucaristia na igreja do Colégio Santo Inácio. Muitas vezes, tive, ainda menino, a graça de ser seu acólito na celebração da missa. Na fé em Jesus Cristo residia o segredo de sua prodigiosa atividade.

    Padre Franca trabalhou ao lado de d. Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. Foi instrumento de Deus para o crescimento espiritual de Alceu de Amoroso Lima e de tantos outros, cujos nomes guardou com discrição. Seu legado é precioso para nossos dias.

    Nesses cem anos de história, a violência explodiu em guerras e guerrilhas. Padre Franca acompanhou de perto o conflito mundial de 1914 e os anos de 39 a 45, com sua repercussão no Brasil. Sua mensagem de paz insistia na força do direito e na educação para a liberdade.

    Diante do empobrecimento das massas e da injustiça social, o apóstolo afirmava a dignidade da pessoa, à luz da doutrina social da Igreja, promovendo debates, ciclos de estudos, análise de causas e soluções de solidariedade. Temos que captar esta mensagem e fazê-la nossa, apoiando com urgência as transformações sociais a fim de erradicar a miséria.

    Padre Leonel soube reconhecer a autonomia e o valor da ciência, a harmonia com as verdades da fé. Chama a atenção seu interesse pelas grandes descobertas científicas. Necessitamos, no entanto, aprender com esse mestre as exigências éticas que excluem o aborto, a eutanásia e a manipulação da vida. Isto vale, hoje, para que o projeto de lei sobre patentes de micro-organismos seja fruto do maduro discernimento e respeite a dignidade da vida.

    Seus ensinamentos iluminam também

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1