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O bailar do tempo velho: tomo I - a dança e seus mestres
O bailar do tempo velho: tomo I - a dança e seus mestres
O bailar do tempo velho: tomo I - a dança e seus mestres
E-book578 páginas6 horas

O bailar do tempo velho: tomo I - a dança e seus mestres

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Sobre este e-book

A dança acompanha o homem desde sua aparição e em sua organização social. Ele dançava como meio de comunicação, acasalamento, interação de grupos, relações sociais etc. O homem nasce dançando, porque faz parte de sua natureza dançar.

Mergulhando nesta obra "O BAILAR DO TEMPO VELHO: Tomo I – A Dança e seus Mestres", veremos que, ao longo da história, a dança teve seus significados e sentidos transformados e aperfeiçoados, até que, com a aristocracia do século XV, a dança passou a ser executada nos grandes salões dos palácios, quando surge a Dança de Salão.

Os Mestres de Dança ("maîtres de danse") ensinavam à nobreza a dança e a etiqueta da corte. No Brasil também circularam os Mestres de Dança, bem como o seu legado e as suas obras literárias, que foram pilar para a sedimentação deste vasto e importante conhecimento artístico. Foi de fundamental importância a circulação dos mestres de dança na corte e em todo o país.

A dança é uma comunicação não verbal do pensamento interno, por meio do corpo, uma manifestação do pensamento em movimento. A dança é uma arte criativa e cênica, que tem como objeto o movimento e, como ferramenta, o corpo. "Ela é imanente do corpo, impossível separar a dança do corpo que dança".

Esta obra é uma ponte entre gerações; os leitores terão a oportunidade de aprender sobre História da Dança e culturas diferentes, ampliar sua compreensão do mundo e, mais importante, contribuir para a preservação das tradições que enriquecem nossa humanidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jan. de 2024
ISBN9786527017196
O bailar do tempo velho: tomo I - a dança e seus mestres

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    O bailar do tempo velho - Rodrigo Gil Ribeiro

    O DANÇAR E A SUA HISTÓRIA

    "A dança tem algo em particular que enobrece a pessoa,

    algo que a caneta não consegue ensinar".

    François de Lauze (1623)

    De acordo com o professor Justino Dias Lima Soares (1896), o estudo das artes:

    É a ocupação mais agradável a que o espírito humano se pode entregar. Elas recreiam-nos e afastam-nos agradavelmente das mágoas com que os trabalhos e os sucessos da vida afetam o nosso espírito.

    A dança é definida como a linguagem do indivisível, expressão de movimento através da sua organização em experiências que transcendem a palavra e a mímica. A dança é uma linguagem expressiva que se dá por meio do corpo, que por sua vez, comunica-se por movimentos e se expressa de forma diferente de acordo com o momento histórico.

    Falar de história é recuar no passado, então, quanto mais recuamos na história da humanidade, mais percebemos e confirmamos a presença da dança no início da vida humana. Como nos ensina o mestre de danças brasileiro Álvaro Dias Patrício (1888), a origem da dança como a da música perde-se nos primitivos tempos da humanidade.

    Ao longo dos tempos, a música associada à dança tem estado presente nas mais distintas culturas, como forma de lazer, veículo de comunicação com o sobrenatural, catarse social, parte integrante de um rito, propiciadora das relações entre os sexos e, em sua transcendência, arte. Independente da forma como se expresse, segundo apontamentos da professora Rosa Zamith (2011), a música/dança pode revelar sociedades e comportamentos humanos, como marcas culturais, geralmente em contínuo processo de mutação, tanto quanto a sociedade na qual está inserida.

    A prática da dança esteve presente na vida dos homens desde o princípio da humanidade como forma de expressão e de linguagem. A dança teve caráter religioso, ritualístico, teatral, social, mas sempre permeou a comunicação entre os homens e entre eles, seus deuses e a natureza. Não se sabe ao certo quando o homem dançou pela primeira vez, mas existem registros gravados nas cavernas que sugerem que os homens pré-históricos já faziam da dança parte do seu cotidiano, indicando possíveis rituais religiosos.

    A dança é a arte mais antiga que se conhece, dela surgiram as chamadas representações teatrais, as formas de entretenimento coletivo e não se tem notícia de um povo, por mais primitivo que seja, que não saiba dançar.

    A arqueologia, maravilhosa ciência que tanto esclareceu e continua a esclarecer sobre o nosso passado próximo ou longínquo, ao traduzir a escrita de povos hoje desaparecidos, indica a existência da dança como parte integrante de cerimônias religiosas, parecendo correto afirmar-se que a dança nasceu da religião, se é que não nasceu junto com ela.

    Antes do homem se exprimir através de uma linguagem oral, ele dançou. A dança foi a expressão do homem através da linguagem gestual. O homem estabeleceu posteriormente todo um código de sinais, gestos e expressões fisionômicas ao qual imprimiu vários ritmos. Foi, então, a primeira manifestação de comunicação do homem. Está em todo o processo de civilização acompanhando a sociedade e servindo como meio para o homem se expressar, acompanhando a evolução social.

    Dançaram para expressar revolta ou amor, reverenciar ou afastar deuses, mostrar força ou arrependimento, rezar, conquistar, distrair, enfim, viver! Com o tempo, a dança deixou de ter apenas motivação religiosa e passou a adquirir função recreativa e estética, fazendo-se presente em todas as sociedades humanas. Ainda hoje, verifica-se o uso da dança como manifestação de devoção, com caráter religioso. Atualmente, é usada inclusive com finalidade terapêutica.

    Antropólogos e arqueólogos assumem que o homem primitivo dançava como sinal de exuberância física, rudimentar tentativa de comunicação e, posteriormente, já como forma de ritual.

    A dança aparece registrada nos mais antigos testemunhos gráficos da pré-história, documentos que datam da última época glaciar, dez a quinze mil anos antes da nossa era, podem ser observados nas cavernas pré-históricas do Levante espanhol – Alpera (Valência) e Cogull (Lérida) – e são semelhantes a outros documentos pré-históricos relativos à dança encontrados na África do Sul (Rodésia e Orange) e na França (Solutrais e Dourdogne). Tais pinturas rupestres levam-nos a crer que o homem primitivo executava danças coletivas nas quais predominavam os movimentos convulsivos e desordenados.

    Desde muito cedo a dança esteve presente e diversos tipos de dança podiam ser encontrados nos antigos povos. Há entre os povos pré-letrados uma série de danças como as da caça, de máscaras, guerreiras e secretas, as nupciais, as de fecundidade ou eróticas ou genéticas, as de nascimento, de iniciação ou circuncisionais. Também as fúnebres, as medicinais, as de colheita, as lunares, as pleiadares, as festivas ou puramente recreativas, as mágicas, as religiosas ou sagradas ou propiciatórias, as imitatórias, as lúdicas, etc.

    Danças de Guerreiros (dança tribal africana – África do Sul).

    A dança era parte viva e funcional das comunidades, uma verdadeira reação e interação com o universo no qual se vivia. Ela surgiu com vários significados e formas, mas, principalmente, estava ligada ao sentido religioso. A dança percorreu um longo caminho até chegar à profissionalização.

    Ao compulsarmos a história veremos a música e a dança adaptados aos povos da mais remota antiguidade, entre os egípcios, os judeus, os arcadios, os persas, os indianos, e outros mais, nos tempos de Amphion, Orpheo, Tahmyrese e David. Moisés apresenta Jubal, da família de Caim, como autor da música, o qual tinha um irmão de nome Tubalcaim, que trabalhava em ferro e bronze; em ocasião em que Tubalcaim estava na sua forja, Jubal impressionado pelos sons compassados produzidos pelos martelos sobre a bigorna, lembrou-se de compor sons musicais. Outros porém atribuem a Pitágoras essa descoberta, e afirmam que ele, ao passar por uma forja e ao ouvir os sons que dela saiam, deu origem às primeiras regras de música.

    A origem da dança é mais obscura que a da música. Muitos querendo dar-lhe um quê de divino, atribuem-na a Rhéa, filha do Sol e da Terra, que a ensinou a Phrygia, e aos sacerdotes do culto divino na ilha de Creta. Outros porém com mais fundamento e dando crédito à lenda de Andron afirmam ser ele o primeiro que na Grécia ao som da flauta lembrou-se de acompanhar a música com alguns movimentos do corpo.

    De acordo com o mestre Patrício (1888), afirma-se que:

    "o Siciliano Andron, natural da Catania, foi quem primeiro levou aos gregos as noções de dança, isto na opinião mais corrente. Alguns escritores dão a paternidade da dança ao deus Baccho e outros ainda à deusa Minerva. O que de certo há é que a dança e a música remontam às primícias da humanidade".

    Os egípcios faziam da dança uma das solenidades fundamentais do seu culto; os guerreiros de Creta caminhavam para a guerra, dançando ao som da música marcial; os israelitas executavam danças sagradas em honra do Bezerro de Ouro; a filha de Jephte recebe seu pai dançando ao som dos tambores, quando ele volta vitorioso da guerra contra os ammonitas; Davi depois de matar o gigante Golias é recebido entre danças, que as mulheres de Israel executam no auge da alegria. A introdução da dança sagrada entre os gregos é também atribuída a Orpheu que, partindo do Egito para a Grécia, deu os fundamentos às danças sagradas; desde então cada ídolo tinha as suas danças solenes, que os sacerdotes executavam nas festividades religiosas.

    Homero, em sua "Ilíada e Odisséia, conta sobre a dança dos antigos gregos; na lenda hindu, relata-se que o mundo girou a partir da dança do Deus Shiva. Os festivais de Dionisio incluíam tanto o drama como a dança. Aponta-se uma delas como exemplo, as danças lascivas das bacantes. No Egito havia danças sacras em homenagem a Ápis, o touro sagrado", diante de Hat Hor, a deusa da dança e da música.

    Verificou-se que os hebreus possuíam danças próprias e outras provavelmente de origem egípcia. No Velho e no Novo Testamento dos textos bíblicos obteve-se exemplos de citações em que a dança esteve presente. Como um dos exemplos, temos o trecho dos dez mandamentos, que Moisés trouxe do Monte Sinai e foram guardados dentro de uma arca (espécie de baú) que era aberta somente por uma pessoa pura de pecados uma vez por ano. Uma dessas pessoas foi Davi que a transportou da casa de Obed-Edom para a sua cidade e quando chegaram:

    "...Davi dançava com todas as suas forças diante do Senhor, cingido com um efod de linho. O rei e todos os israelitas conduziram a arca do Senhor, soltando gritos de alegria e tocando a trombeta. Ao entrar a arca do Senhor na cidade de Davi, Micol, Filha de Saul, olhando pela janela, viu o rei Davi saltando e dançando diante do Senhor, e desprezou-o em seu coração... Voltando Davi para abençoar a família, Micol, filha de Saul, veio-lhe ao encontro e disse-lhe: ‘Como se distinguiu hoje o rei de Israel, dando-se em espetáculo às servas de seus servos, e descobrindo-se sem pudor, como qualquer um do povo!’ – ‘Foi diante do Senhor que dancei, replicou Davi; diante do Senhor que me escolheu e me preferiu a teu pai e a toda a tua família, para fazer-me o chefe de seu povo de Israel. Foi diante do Senhor que dancei...’"(Bíblia Sagrada, 2006, p. 342, Samuel, c 6 v 14, 15, 16, 20 e 21).

    Em Alexandria e em Jerusalém existiam templos, junto aos quais haviam lugares elevados a que davam o nome de córos, onde os padres executavam cânticos e danças religiosas, que também foram adotados entre os cristãos. Os sacerdotes cristãos conjuntamente com os fiéis executavam as danças sagradas, e que de ordinário se realizavam à noite, dando-lhes o nome de mysterios. Relata-nos o professor Patrício (1888):

    Ainda hoje nas alegres noites de São João, São Pedro e Santo Antônio, as folias que se fazem em volta das fogueiras, não são mais que pálidos reflexos dos mysterios dos primitivos tempos do cristianismo.

    As danças religiosas eram executadas nos próprios templos ou em outros lugares, para uma entidade superior como o Senhor citado nos textos bíblicos. Destas, ressalta-se a dança das tochas executada na festa dos tabernáculos. É provável que na corte do rei Salomão já existissem bailarinas profissionais.

    De origem romana existiam as "danças de maio", as quais consistiam em voltas ao redor de mastros coroados de flores. Estas danças, a princípio confiadas somente aos padres por serem os únicos encarregados de transmitirem aos deuses as homenagens dos homens, foi pouco a pouco e com o correr do tempo espalhando-se por todo o povo, que as adaptaram às divindades pagãs. É dali que nos vêm a origem das danças profanas.

    Através de Platão, Sócrates, um dos grandes filósofos gregos, considerou-se a dança como a atividade que formava o cidadão por completo. A dança daria proporções corretas ao corpo, seria fonte de boa saúde, além de ser ótima maneira de reflexão estética e filosófica, o que a fazia ganhar espaço na educação grega. Conforme Diniz (2008), o homem grego não separava o corpo do espírito e acreditava que o equilíbrio entre ambos que lhe trazia o conhecimento e a sabedoria.

    Em Atenas institui-se a dança do hymeneo em honra ao matrimônio, a qual era executada durante o tempo em que duravam as cerimônias do casamento, por um grupo de jovens de ambos os sexos ornados de myrtho. A dança do hymeneo foi a primeira dança profana executada na Grécia. Foram dali que despontaram os primeiros fulgores da aurora da dança; acharam-na os gregos tão útil e necessária para patentear a beleza plástica que reconheceram como uma necessidade física o seu desenvolvimento; e tanto assim que Sócrates aprende a dançar com Aspasia; Homero considerava-a uma necessidade nos banquetes. Lycurgo compunha danças incluindo algumas delas nas suas leis, como obrigatórias para os jovens da Lacedemonia. Enfim, na Thessália e na Lacedemonia era a dança considerada nas classes das Belas-Artes; e nas escolas coreográficas entravam os filhos dos senadores, a fim de completarem a sua educação.

    Entre os Etruscos só se observa a dança através de representações, pois não há, até hoje, conhecimento de textos escritos. Mas pode-se perceber que recebeu forte influência dos gregos desde o Séc. VII a.C., pelas representações em que aparecem indícios de danças guerreiras, dionisíacas, de banquete, entre outras. As representações mostram movimentos harmônicos entre gestos e discursos, na mímica antiga.

    Os romanos, à imitação dos gregos, edificam teatros onde se exibem esplêndidos espetáculos. Seguindo-se as orientações de Numa, organiza-se uma dança em honra ao deus Marte e a destina aos sacerdotes. Sobre seus auspícios Luciano, Apulio, Seneca e Marcial mais tarde dão origem à dança itálica, conjunto de gestos e danças de cunho heróico-cômicas. Augusto, imperador romano, permitiu que o povo de Roma, em tempo de paz, se entregasse a essa dança de tal entusiasmo que chegou a ser o seu favorito divertimento.

    Entre os Romanos, a dança parecia ter um sentido mais claro e específico: tudo girava em torno de Reis, República e Império. Do século VII ao VI a.C., Roma foi dominada pelos Etruscos; assim, as danças eram de origem agrária. Mas pode-se destacar também as danças guerreiras (costume entre os Salinos), celebradas amplamente durante a primavera e em honra a Marte, deus da guerra, ou seja, ainda nessa época encontra-se a dança sagrada.

    O Baixo Império (305-476 d.C.), na Roma cosmopolita da época, onde não mais podia se representar o drama falado por causa da diversidade de línguas, e onde os espetáculos refletiam a decadência da história, as artes tornaram-se cada vez mais grosseiras, sendo representadas pela violência sádica do circo e a obscenidade da pantomima.

    A população era basicamente de soldados em Roma, onde desprezava-se a dança, considerando-a incompatível com o espírito do povo conquistador; então degradaram a dança como fizeram com a poesia, a escultura e a filosofia. A maior parte do povo surgia nas enormes arenas, por exemplo, no Coliseu e no Circus Maximus, para ver gladiadores lutando com animais ferozes; "isso sim era arte!"

    A dança foi, assim, envolvida na corrupção do modo de vida romano. Na condenação do cristianismo de que esse mundo apodrecia, ele englobou as artes que refletiam essa decomposição.

    Não tardou porém que a dissolução dos costumes invadisse também a dança, exibindo-a nos teatros de Roma em plena obscenidade e a tal ponto foi que Tibério, sucessor de Augusto e mais tarde Domiciano formularam leis contra a dança, até que afinal Trajano, em face das cenas licenciosas, e, dentre outras, a "Festa dos Loucos" e a "Mai Louca", que então se ostentavam em público, a proibiu completamente. Com a morte de Trajano, novamente reaparece a dança em Roma, mas sempre com as mesmas obscenidades.

    Os padres da Igreja, Santo Agostinho entre eles, condenara "essa loucura lasciva chamada dança, negócio do diabo. Além desta maldição circunstancial, havia a contaminação do pensamento bíblico pelo dualismo grego, que levou São Paulo a opor o espírito aos sentimentos e a desprezar o corpo: o bem, no homem, só está na alma, e todo o mal vem da carne". Essa perversão dualista do cristianismo trouxe como consequências a consideração do corpo como obstáculo à vida da alma e à orientação da vida para outro mundo, com a negação da carne, que deve ser ignorada, punida, e mortificada.

    Dessa forma, a dança perdeu sua força nessa atmosfera de suspeita em relação ao corpo. A partir do século IV d.c., com estes imperadores ditos cristãos, o teatro e a dança foram condenados. O batismo era recusado aos que atuavam no circo ou na pantomima. E no ano 398, no Concílio de Cartago, os que iam ao teatro nos dias santos foram excomungados. Mesmo no século XVII, na França, os comediantes ainda não podiam ser enterrados no campo santo.

    No ano de 774 d.c. os pontífices cristãos a fulminaram com o rigor de suas leis, no que foram imitados por muitos soberanos. A depravação nos costumes, que de Roma se ramificava por toda a parte, fez desaparecer a dança por largo tempo. A dança não sobreviveu senão nas danças macabras, danças da morte e contra a morte, numa época de temor à fome, da guerra e da peste. Na época da peste negra, 1349, multiplicaram-se os fenômenos de transe e possessão, com as danças convulsivas.

    Nesse entremeio, pouco a pouco, desenvolveram-se as danças profanas: as caroles dos camponeses, que se desdobraram nas farândolas evocadas por Breughel e depois Rubens, e as basses danses dos nobres, sufocados em pesadas vestimentas de luxo.

    O corpo no contexto medieval era percebido pela experiência, era experimentado e mantinha relações com todo o universo de significados da Idade Média. Se o corpo continha tudo, era morada do cosmos, era também o veículo de comunicação com Deus e, ao mesmo tempo, continha em si mesmo o sagrado e o profano. Incontido, era o corpo do transbordamento, da abundância, das formas opulentas, da alegria desregrada e carnavalesca. Um corpo que não conhecia ditames alimentares, nem mesmo de contenção ou forma física, bem diferente do modelo corporal que será instaurado no processo de modernidade.

    Na idade média, nas danças populares, encontramos os mesmos motivos das danças primitivas. O cristianismo conseguiu atenuar, mas não apagar completamente o sentido pagão dessas danças. Tem-se a inquisição sempre onipotente e a submissão de imperadores e reis ao papa.

    O processo de cristianização da Europa ocidental, sobretudo a partir da Reforma Gregoriana no século IX, com seu esforço de enquadramento dos fiéis e combate à heresia, implicou na sistemática negação do paganismo. Uma vez que, na antiguidade e entre as culturas pagãs, a dança sempre esteve estreitamente relacionada ao culto às divindades – como forma mística de comunicação com o divino e quase sempre um privilégio sacerdotal – a dança ritual foi excluída da liturgia cristã a fim de evitar confusões e a heresia.

    Para Couto (2013), as parcas informações e testemunhos sobre a dança religiosa nesse período são, em sua maioria, as veementes condenações e proibições da dança dentro das igrejas, o que se pode verificar em decretos e homilias papais, decisões de concílios e constituições sinodais.

    O mais antigo desses interditos data do século V e se encontra nas atas do concílio de Vannes, de 465. São consideráveis também o decretal do papa Zacarias em 774 contra "os movimentos indecentes da dança ou carola", a condenação dos choreae nas igrejas, cemitérios e nas procissões, que se encontra nas constituições sinodais do bispo de Paris, no final do século XII, e a proibição que consta no decreto de 1209 do concílio de Avignon (Atos, V), em que "durante a vigília dos santos, não deve haver nas igrejas espetáculos de dança ou de carolas".

    Há referências desta condenação no tratado de Claude-François Ménestrier (1682) sobre os balés, quando este trata das ordenanças da Igreja contra as danças e segundo o qual (...) Odon evêque de Paris en ses Constitutions Synodales, commande expressément aux prétres de son diocese d’en abolir l’usage, et d’en empécher la pratique dans les églises, dans les cemitieres e aux processions publiques. (Tradução: Odon, Bispo de Paris em suas Constituições Sinodais, ordena expressamente aos padres de sua diocese que abolissem seu uso e impedissem sua prática em igrejas, cemitérios e procissões públicas).

    A reiteração dessas proibições em documentos normativos importantes da Igreja e sua durabilidade no tempo – a dança no interior da igreja será condenada mesmo após o concílio de Trento, em 1562 – mostra-se, contudo, uma evidência da persistência destas práticas, o que se pode constatar em não poucos casos de chorea ou carolas conduzidas por leigos e por padres em diversas localidades da França, Espanha e Portugal, por exemplo.

    Chorea e carola são termos equivalentes que indicam uma dança que se conduz em roda, aberta ou fechada, e que supõe o contato, o toque entre os participantes, pois estes se seguravam pelas mãos ou pelos antebraços.

    Negada a sua possibilidade mística e religiosa, a dança passa a assumir exclusivamente o caráter de representação e de sociabilidade, sendo tomada como matéria para espetáculos e divertimentos. Assim, a dança percorreu outro caminho, perdeu o sentido religioso e passou a ser dança de comemorações festivas, simplesmente. Apareceram as danças camponesas e todo o tipo de dança para festejar os eventos comemorativos do ser humano, como casamento, colheita, ganhos, etc, mas o sentido já era outro. Manteve-se, porém, o comunal e o participante, não havia ainda espectadores.

    Constatou-se a presença notável de celebrações cênicas nos altares, como representações religiosas e em sua maioria autos de Páscoa e Natal, porém no que concerne à dança, esta definitivamente não foi integrada à liturgia católica e não o será mesmo na modernidade.

    O historiador da dança Paul Bourcier (2001) chama a atenção ao fato de que é interessante perceber que, sendo o corpo um recurso obrigatório da dança, aceitá-la como ritual sagrado ou como prática integrada à liturgia cristã, significaria dar vazão a poderes pouco controláveis e a sensações moralmente reprováveis provocadas pelos movimentos do corpo, que ameaçam tanto aquele que executa, quanto aquele que contempla a dança.

    Obviamente, o fato de a dança não ser religiosa ou litúrgica não significa que ela não seja regida, controlada e determinada por princípios teológicos e pelos valores religiosos e morais católicos que, afinal, condicionavam a cultura e a sociedade cristã medieval e moderna em suas várias dimensões. É no sentido de um processo de dessacralização da dança que pode-se afirmar que formas teatrais (de representação) vieram substituir práticas rituais (místicas), o que se torna ainda mais evidente a partir do século XV.

    Quando se dança, há um certo apagamento da consciência individual e surge, assim, a presença de um elo que une todos aqueles que dela participam. Embora aparentemente opostos, o sentimento de fusão coletiva e o êxtase individual são indissoluvelmente ligados e tiveram ambos uma grande importância em toda a história humana. Ao aprender a fazer movimentos ritmados, o homem teria sentido emoções e criado laços afetivos de solidariedade com os outros participantes. Desta forma os agrupamentos teriam aumentado, assim como o domínio territorial e a proteção mútua.

    A própria palavra carnaval provém de carrus navalis, o barco a remo que levava o primeiro bailarino e chefe do coro do dithyrambus; é a comemoração da fertilidade do deus Dionísio, sua morte e sua ressurreição. Na era cristã, com transição dos costumes pagãos, o carnaval que precede os 40 dias da quaresma, e passa a significar "carne vale, isto é, adeus à carne", em vista da aproximação da quaresma que exige rigorosa abstinência. Ao passarem esses tipos de danças de cunho religioso do domínio dos sacerdotes para o domínio do povo, elas transformaram-se em manifestações populares.

    É interessante notar que, durante vários séculos, a dança era apanágio do sexo masculino, e só muito mais tarde as mulheres passaram a participar ativamente das danças folclóricas.

    A Bergamo de Botta cabe a proeza de ser o restaurador da dança, fazendo-a qual fênix reviver de suas próprias cinzas. Foi numa esplêndida festa por ele organizada em homenagem ao casamento de Galeas, Duque de Milão, com Isabel de Aragão, que a dança reergueu-se do esquecimento em que estava mergulhado. Nesta festa cujo elemento principal era a dança, tão estrondoso sucesso produziu a sua magnificência e bom gosto que repercutindo em toda a Itália, despertou o gosto pela dança buscando todos imitar Bergamo de Botta.

    A dança propaga-se por toda a Europa e especialmente na França onde sob a proteção de Catharina de Medicis, Francisco II, Carlo IX e Henrique III, torna-se o bailado o prazer mais predileto da corte e dos salões.

    A partir do século XII, presencia-se um processo de crescente metrificação da dança enquanto exercício e divertimento da nobreza no ambiente dos salões palacianos. Essa metrificação diz respeito, sobretudo, à estruturação das formas (movimentos do corpo, gestos, figuras espaciais) em estreita relação com uma métrica musical, que, por sua vez, também se estruturava a partir do desenvolvimento da métrica, da polifonia e do contrapontismo.

    Assim, perseguindo a beleza e a harmonia das formas, a dança passa por uma sistematização que intenciona refinar e equilibrar formalmente os movimentos e figuras, adequando-os e limitando-os à métrica da música e da poesia, elementos essenciais sobre os quais a dança era composta. São exemplos destas danças, conforme Couto (2013), o trotto e o saltarelo, danças em tempo vivo e movimentos saltados, e danças em tempo moderado, como a ductia, a nota e a estampie.

    Já no fim do século XIII e início do XIV, sobretudo na França, Itália e Espanha, começam a aparecer gêneros de dança que se apresentam mais teatrais, isto é, que através de figurinos, aparatos cênicos e movimentos característicos buscam representar e evocar algo. É o caso do momo e da mascarada – formas de dança caracterizadas pelo disfarce, pelo uso de máscaras – e da mourisca, muito em voga no século XIV, em que os participantes vestiam-se como mouros, faziam movimentos que lembravam as danças árabes e evocavam o combate entre mouros e cristãos nas cruzadas.

    No mundo Renascentista em vias de secularização, com os valores mundanos da vida e do corpo sendo novamente exaltados, as artes que estavam até então a serviço da Igreja, tornaram-se símbolo de riqueza e poder. Temos como exemplo no século XV, na Itália, o ballet, que nasceu do cerimonial da corte e dos divertimentos da aristocracia.

    A metrificação e a formalização também nos informa esse momento importante em que a dança começa a ser fator que permite marcar, pelo refinamento de gestos e movimentos, a distinção social. É no contexto da Renascença, no Quattrocento italiano, quando se inicia a formação de uma sociedade e de uma etiqueta cortesã, que a dança metrificada se transforma verdadeiramente em uma dança erudita – propriedade e símbolo de uma camada social que busca definir sua superioridade hierárquica pelo refinamento intelectual e estético-artístico (baseado nos cânones da cultura antiga clássica) e pela elegância e distinção do comportamento e do gestual.

    Juntamente com o conhecimento de grego e latim, as aptidões para a música, as artes militares e a ginástica eram algumas das formas que a elite se diferenciava do restante da sociedade. A dança ocorria como parte dos eventos oficiais do Estado e podia ser realizada tanto ao ar livre perante membros da corte, como diante de milhares de pessoas dos mais diversos níveis da sociedade.

    O reinado de Francisco I (1515-1547) da França veio a ser considerado como o primeiro no qual "uma verdadeira vida de corte organiza-se pela primeira vez". Nesse período que a corte alcança nova importância na vida francesa e torna-se o local onde novos estilos e contatos sociais se realizam. Embora ainda nômade, característica de todo período medieval, a corte de Francisco I aumenta significantemente de tamanho e suas maneiras se tornam mais polidas.

    No século XVI, Catarina de Médicis vai para a França casar-se com o duque de Órleans, Henrique II, leva um grupo de artistas, músicos, dançarinos e o coreógrafo da corte de Florença, Baldassari de Belgiojoso que transformou o balé de corte em peça teatral. Após tornar-se rainha da França, incentivou que fosse criado o super-espetáculo em 1581. Gastou-se uma fortuna, o qual foi chamado de Balé Cômico da Rainha e este foi considerado o primeiro verdadeiro balé. Este espetáculo foi coreografado pelo grande mestre de dança, o italiano Balthasar de Beaujoyeux.

    Balé cômico da Rainha.

    O sucesso desse espetáculo promoveu um grande desenvolvimento da dança, e a popularizou na maioria das cortes europeias, considerado já como Balé de Corte, um baile organizado em torno de uma ação dramática. Este evento também promoveu o mestre de dança, o qual logo começou a aprimorar as danças palacianas, tornando-as danças metrificadas, transformando os passos simples em proezas e virtuoses, com passos rápidos e poses em forma de esculturas, os quais foram adicionados ao vocabulário do dançarino.

    Conforme Amaral (2009), neste mesmo período, as mudanças ficaram mais evidentes e logo ocorreram as divisões baseadas na classe social. Os aristocratas deixaram de dançar as danças dos pobres. O crescimento de elaboradas regras de etiquetas palacianas e os ideais de amor cortesão fizeram com que a nobreza sentisse que as danças rudes e vigorosas dos camponeses eram inconvenientes, grosseiras e vulgares, para serem dançadas por eles.

    As danças de corte passam a ser cada vez mais formais e codificadas em seus movimentos, de maneira a diferenciar tanto quanto possível a conduta da nobreza no ambiente dos bailes da conduta do vulgo em suas danças desregradas.

    Enquanto a "dança alta das camadas populares mostra-se menos codificada – há mais espaço à improvisação, levanta-se e bate-se mais os pés no chão, os gestos e movimentos são mais impetuosos e o andamento é mais rápido –, a dança baixa" (basse dance) cortesã se conduz mais arrastada e com passos baixos pré-determinados e encadeados, numa estrita observância do ritmo e da cadência musical (mais lenta e solene).

    Estabelece-se, como aponta Couto (2013), uma clara diferenciação entre nobreza e vulgo a partir da dança:

    contrapondo aquela camada social praticante da dança honesta, regrada e erudita àqueles que praticariam, na verdade, a sua corruptela desonesta, desregrada e vulgar.

    Havia um intercâmbio muito relevante entre França e Itália nos anos 1500: muitos artistas italianos foram para a França sendo que alguns conseguiram participar das comitivas reais da época, muitos deles, como instrumentistas e maîtres de danse (mestres de dança). Estes eram coreógrafos de danças para um pequeno número de casais a serem executadas em um baile da corte, em um casamento ou em uma ocasião oficial do estado. Esses profissionais também eram os responsáveis pela composição das novas coreografias a serem executadas por cortesãos.

    Além de maîtres de danse e músicos italianos, alguns gêneros de dança da Itália foram importados pela França como a pavane (uma das principais danças dessa época), o passe meze e a gaillarde. A gaillarde também era conhecida como Romanesca ou Romaine.

    Desde meados do século XV, já se organizavam as apresentações de espetáculos e, a partir de então, a dança começou a tornar-se popular. Eram realizadas festas magníficas nas quais a música, a dança e o drama estavam presentes em um só espetáculo ambicioso. Assim, vieram as adaptações das danças dos camponeses, ao modo de vida dos aristocratas, surgindo os famosos movimentos de dança como o minueto, a galharda, a pavana, a volta, etc. Porém, fora da corte, o povo simples continuava as suas próprias danças, as quais se tornaram danças nacionais, folclóricas e étnicas, como o gopak, as czardas húngaras, o bourrée de Auvergne, dentre outras.

    A dança era uma forte presença nas celebrações de grandes eventos na corte francesa e foi o principal recurso usado para os entretenimentos dos visitantes dessa corte. Segundo Nunes (2015), representações inglesas, embaixadores poloneses e representantes italianos maravilhavam-se com os espetáculos coreográficos produzidos com o intuito de impressioná-los e com a extrema habilidade apresentada pelos dançarinos franceses.

    Além da dança, muitos outros fatores relacionados aos rituais dos eventos de Estado funcionavam como demonstração de poder entre o monarca, seus súditos e seus visitantes. As roupas e joias usadas, os presentes oferecidos aos convidados, o local escolhido para a reunião e as formas de tratamento utilizadas, juntamente com as danças executadas, mostravam diferenças sutis da posição hierárquica dos participantes.

    Numa sociedade como a de corte, em que o ser estava condicionado ao parecer ser, ou seja, em que o status social necessitava ser exercitado, exibido e constantemente reafirmado, a dança configurava-se como um importante artifício na produção da persona e da dignidade cortesã, na medida em que modelava um comportamento, um gestual e uma movimentação corporal próprios de uma categoria social. Assim como o letramento, a rica vestimenta, o domínio das artes da caça, da montaria, das armas, da conversação e da própria etiqueta, dominar a arte da dança fazia-se extremamente necessário à distinção social de qualquer cortesão.

    Torna-se muito importante, portanto, compreender quais são os valores constitutivos desse ethos nobiliárquico cortesão no início da modernidade e em que medida a dança se coloca simultaneamente como reflexo e como produtora do mesmo. Publicado em Veneza em 1528, o livro "O Cortesão", do italiano Baldassare Castiglione, ao narrar as conversações que se desenrolam no palácio do Duque de Urbino em 1506, configura-se como um manual de conduta que estabelece as regras e os preceitos que definiriam o perfeito homem de corte. Testemunho precioso dessa nova concepção de nobreza, muito mais ligada à notabilidade das ações e virtudes que à própria pureza do sangue, o livro destaca a importância da formação intelectual, do cultivo da virtude e da elegância de conduta e convívio como distinções que definiriam a nobreza do cortesão.

    O italiano Castiglione não se debruça sobre a arte da dança em si, nem tece longas análises a esse respeito, porém cita situações e faz comentários que indicam a importância da postura e do gestual elegante e codificado para a discrição nobiliárquica. Segundo Castiglione, "todas as ações, os gestos, as maneiras e os movimentos do cortesão deveriam ser executados de maneira graciosa, graça esta que é obtida pelo exercício do corpo, ao que se pode incluir o exercício da dança".

    Livro "O Cortesão" (1528), do italiano Baldassare Castiglione.

    Tendo conhecido um sucesso imediato e duradouro, não somente na Itália, mas em praticamente todas as cortes europeias até o século XVIII, o livro "O Cortesão" foi um dos principais sistematizadores e difusores desse espírito e etiqueta de corte.

    Durante os séculos XVI e XVII, a corte francesa atravessou um período de constante reformulação. Foi no reinado de Francisco I que a corte passou por um crescimento importante de tamanho e adquiriu maior polidez no trato entre cortesãos mesmo mantendo certo grau de informalidade. A etiqueta da corte começou seu desenvolvimento sob o reinado de Henrique III e alcançou seu ápice durante a regência de Luís XIV.

    A chegada do século XVI traz mudanças relativas no vestuário francês. Os homens renunciam os trajes de guerra, os cavaleiros se transfiguram em cavalheiros e os reis lutam outra guerra: a da magnificência, da ostentação. De senhores feudais passam para aristocratas da corte.

    A corte francesa estava em constante mutação. Ocorreram as primeiras mudanças impostas por Francisco I, a relação mais reservada de Henrique III, a transição do feudal para o modelo de corte com Henrique IV até chegarmos no absolutismo de Luís XIV. Mcgowan (2008) aponta que muitos dos reis franceses tiveram uma forte ligação com as artes ou, mais especificamente, com a dança como Francisco I, Henrique III e Luís XIV. Francisco I julgava necessário manter membros da corte ocupados e entretidos com danças, caças e outras atividades como forma de distrair a atenção deles e impedir a ação dos mesmos em conspirações contra os interesses da coroa. O rei Henrique III era apaixonado por dança, sempre cercado de maîtres de danse, com os quais estava frequentemente aprendendo novos passos.

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