Gangorra: uma imagem intrigante do fracasso
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Sobre este e-book
Haveria uma função para esse indesejável intruso? Haveria uma intenção da vida nos fracassos que transformam em cinzas sonhos tão docemente acariciados?
Verdade é que na dança da vida, no balanço da gangorra, ora se inspira, ora se expira; ora se nasce, ora se morre; ora se ganha, ora se perde; quando se ganha também se perde; quando se perde também se ganha. Assim as agulhas do destino vão tecendo nossos retalhos: sucessos e derrotas, ilusões e fracassos, matéria com que é tramado o patchwork da existência. Há sempre mais, muito mais a se viver por trás da cara feia de um fracasso. O que eu faço com o meu fracasso pode fazer a diferença? Pode o fracasso ser também um sucesso?
Este livro traz um diálogo crítico e honesto sobre o que é e o que parece querer o fracasso.
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Gangorra - Elizabeth de Miranda Sandoval
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2017 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
À minha mãe em seu vestido amarelo numa tarde de verão...
APRESENTAÇÃO
Qualquer passo à frente, por pequeno que seja, na trilha da tomada de consciência, cria o mundo.¹
Nas voltas que a vida dá chegamos aqui: um livro. Um livro que lida com um tema indesejado, proscrito, oposto às falácias confortadoras de esperança, felicidade, brilho e sucesso. Fracasso é assunto que se evita a todo o custo. Muitos me questionaram, por que fracasso? Por que não fala de outra coisa? Mas não dava. Precisava entender porque frustrações andam passo a passo com ingênuos sonhos de felicidade eterna, amores perfeitos, famílias sem problemas, carreiras apoteóticas, reconhecimento pelos mais genuínos propósitos de bem.
Tendo sido uma aluna que gostava de colecionar notas 10, parecia-me que tudo isso seria fácil. Era só estudar, fazer direitinho o que era pedido e o reconhecimento, o almejado 10, viria. Mas não é assim. A vida parece precisar por abaixo ilusões que mantêm a personalidade presa a idealizações. Livrá-la do penoso fardo de manter, à custa da alma, aquilo que foi coletivamente sonhado para nós. E mais das vezes essa idealização é passada de mãos em mãos, e nós a acolhemos como sendo nossas próprias. Elas chegam até nós por meio da cultura em que estamos inseridos, das tradições familiares, do mito que orienta nosso tempo, entre outros. Essa idealização nos cega, ela não revela os anseios daquela alma, as forças daquela natureza individual, as delicadas fragilidades daquele ser. E a vida anseia pela revelação de quem se é. Precisa da cor única de cada ser, da contribuição indispensável de toda a diferença, da atitude que se tem diante da dor de cada fracasso, da delícia de cada realização. Decidi finalmente não desistir de mim e escrever sobre o famigerado fracasso.
A vida me parece desafiadoramente mágica, assustadoramente frágil. Digna de ser saboreada. Rememoro momentos quando, ainda menina, em meio a brincadeiras de casinha, pula- corda, amarelinha, conversas infantis timidamente perscrutavam o futuro. Perguntávamos o que queríamos ser quando fossemos ‘gente grande’. Minha resposta estava sempre pronta, na ponta da língua: – Quero ser mãe! Entre deboches e risadas, amigas tentavam me persuadir contestando que deveria querer algo mais..., melhor..., aeromoça, por exemplo, mas não tinha jeito. Replicava resoluta: – quero ser mãe, só mãe. E os filhos vieram um a um, Orlando, Roberta e Diego. Amores da minha vida. Molas propulsoras deste humilde ser em direção à vida que se dobra e se desdobra. Com eles aprendo mais que ensino, me enterneço e me magoo, sou rainha e serva, visito o paraíso e mergulho nas profundezas do desconhecido, passo de sucesso a fracasso vezes sem fim. Volto sempre àquela tarde infantil e sorrio maliciosamente, era isso mesmo! Delicio-me nas andanças, nas novas trilhas que juntos desbravamos, na gangorra do amor perene que até mesmo quando nos separa nos une. Realização. Outros amores, outras realizações vestem de alegria meu passo, plantam flores em meu jardim, flores eternas, flores que morrem ao findar cada estação. Observo-me ora cá, ora lá.
Comecei a escrever sobre o tema fracasso por volta de 2008 quando numa mesa redonda durante o Congresso Internacional de Psicologia Analítica versei sobre O Fracasso e a Criação
. Mais tarde apresentei a monografia Às Voltas com o Fracasso para obtenção do título de analista junguiana conferido pelo Instituto Junguiano do Paraná - IJPR/AJB. Esse trabalho é base para este livro. Enquanto me aprofundava nessas reflexões a vida me fazia vivenciar na carne o que tentava intelectualmente especular.
Verdade é que, no meio do caminho, mais uma vez senti o gosto amargo do fracasso. Caíram por terra esforços titânicos para manter a família romanticamente unida, isenta de conflitos, como se eu pudesse, e como se possível fosse. A fragilidade de um amor transformou em cinzas um belo sonho dourado. E mais uma vez perdi o que pensava ser meu chão. O tão almejado 10 não veio. Tornei-me plúmbea peregrina em busca de sua alma. Em que esquina da vida haveria me perdido dela?
Atenta às reverberações das frustrações vivenciadas percebi que elas atualizavam outros fracassos, fracassos de outros tantos, fracassos aparentemente ínfimos, fracassos ainda mais arrasadores me enclausurei com memórias, livros, mestres, pensadores, poetas, artífices da arte da psicoterapia, gente, gente simples que caminha anônima nas ruas, ecos ancestrais da história humana. No compartilhamento amoroso de vivências das dores dos fracassos trazidos por pacientes no sigilo do consultório a alma torna fértil o solo, vivifica e sacraliza a experiência humana. Falas, ideias, histórias, sons, odores, memórias, risos, lágrimas me remeteram à importância e à inevitabilidade dos fracassos. Tudo (e todos, cada qual à sua maneira) tornou-se uma entidade com quem, sentada em minha gangorra imaginária, um diálogo honesto e crítico sobre o quê é, e o que quer esse fracasso.
É como se o fracasso, ele próprio, quisesse ser desenredado do aspecto definitivamente lúgubre que a ele atribuímos. O fracasso parece ter ânsia por mostrar para que vem! E sempre tem um propósito. Tudo na psique tem uma finalidade. Qual seria a dele?
Emocionante, este tema me emociona sempre. O fracasso nos deu muito trabalho também, à vida e a mim. Fugia sempre, me tirava do rumo que queria seguir e mostrava outra face, apontava para outra perspectiva, revelava algo nele e ao mesmo tempo algo em mim.
Verdade é que lenta e resolutamente a vida foi, paradoxalmente, me parecendo a cada passo mais mágica, mais colorida, mais belamente intrigante, mais gostosa de ser vivida. Há sempre mais, muito mais a se viver por trás da cara feia de um fracasso.
Essas reflexões são um alinhavo imaginativo do trabalho de: Carl Gustav Jung, James Hillman, Edward F. Edinger, Edward C.Whitmont, Gustavo Barcellos, James Blake, Lopez- Pedraza, Shakespeare, Rainier Maria Rilke, entre outros, a quem profundamente agradeço. Agradeço a você, que mesmo sem perceber sentou-se comigo, naquela gangorra, e com seu saber e carinho contribuiu para que este livro se tornasse uma realidade. Reverencio de maneira especial Renata Cunha Wenth, Elizabeth Cristina Bürgel e Eduardo Maldonado.
E. S.
PREFÁCIO I
Erros, fracassos, falhas, deslizes, perdas, disfunções, malogros, descaminhos, desilusões, derrotas, bancarrotas, falências, quedas, colapsos, traições, descalabros, desajustes, faltas, naufrágios, decepções, e a lista vai longe. Há toda uma linguagem para chamar e imaginar o que não funciona. Deparamo-nos constantemente com ela. Pois não é essa a composição básica do dia a dia de nossos consultórios?
Somos feitos da matéria dos fracassos. E nossos fracassos não nos exoneram, não desistem de nós. São como nossos complexos, permanecendo conosco além do que gostaríamos, formando um lixo que, sem a possibilidade do descarte, devemos reciclar. Os fracassos são como o lixo, inconvenientes. Não sabemos o que fazer com eles, onde os colocar, como os aceitar. Então inventamos a ideia de que o fracasso é importante para nosso crescimento ou nosso desenvolvimento, de que o fracasso é importante para se ganhar algo mais lá na frente, a ideia de que precisamos ganhar sempre. Inventamos que eles são a correção da rota rumo à vitória e ao sucesso, maneiras de se aprender lições de vida que nos deixarão mais aptos a chegar aonde queremos. O fracasso gera o sucesso.
Falando sério, fracassar é perder. E ficar na perda é ficar na alma. Senão, mascaramos contrafobicamente o fracasso, sua dor e seu trabalho. Perceber os fracassos é perceber os poderes imaginais que nos alcançam por meio deles. Esta última frase quer dizer que os fracassos revelam fantasias, e fantasias mostram a alma mais profunda. Os fracassos são, portanto, importantes neles mesmos — não como um caminho para outra coisa —, porque neles encontramos necessidades e verdades que a razão pura desconhece. Neles, a consciência psicológica emerge. Isso é o mais difícil.
O fracasso é um tema tão desagradável, é tão incômodo (como também são incômodos os sonhos, não?), que no mais das vezes preferimos os mal-entendidos, as fofocas, as distorções, as inversões, as hipocrisias, as mentiras: quem é que gosta de falar em sobras, restos, entulhos, malogros, frustrações? Só na terapia damos essa chance aos fracassos, e olhe lá!
Somos feitos da matéria dos fracassos. Talvez, para nós, tudo tenha começado com Freud, que primeiro descobriu essa verdade para a psicologia com os lapsos linguísticos, os famosos slips of the tongue, o ato falho
. O ato falho é um fracasso na comunicação que abre a fala da alma. Com Freud começou uma apreciação da arte de fracassar. Em nosso campo, essa apreciação passa por Jung (os experimentos de associação), por Rafael López-Pedraza (a ansiedade cultural), e vem até a tese de James Hillman de que a análise terapêutica vincula-se ao fracasso (ou seja, à fraqueza, à deficiência, ao insucesso, à falta), e a ideia do fracasso como um fator psíquico fundamental, pois com ele podemos escapar do unilateralismo de vitórias, conquistas e crescimento constantes. O curso errante
da alma foi extensivamente discutido por Hillman, em seu magistral Re-vendo a psicologia. A alma é o cavaleiro errante, que erra na vida e na terra. Talvez não tenhamos aprendido o bastante.
Cada ideia, cada fantasia, e cada sentimento e ação que temos no mundo define seu próprio sucesso e seu próprio fracasso. Do ponto de vista da alma, essas noções variam. Tudo depende de como imaginamos as coisas, pois, como disse Bachelard, se a imaginação funciona, tudo funciona. Na alquimia, por exemplo, que é o modelo da psicologia junguiana mais profunda, tudo nasce do fracasso: putrefactio é a primeira operação. Esse é o princípio da obra, princípio como começo e como fundamento, quando algo entra em falência. Para a alquimia, tudo começa no fracasso: nigredo. É uma sábia lição, tirada evidentemente da observação da natureza e de como ela se transforma. A obra não começa enquanto algo não fracassa, não se desconstrói. O fracasso já é a obra.
A alma conhece o fracasso intimamente. Como disse Montaigne, a alma é proveitosamente servida pelo erro. Os erros estão a serviço da alma, não o contrário. Ela erra, e não precisa ser corrigida. É ela que nos corrige com seus erros e fracassos. Corrigir não é melhorar. Na vida psicológica, ganhar não é tudo.
Minha amiga Elizabeth Sandoval teve a coragem de enfrentar esse tema em uma reflexão que deu origem a sua brilhante monografia com a qual obteve o título de analista pela Associação Junguiana do Brasil. O modo como ela aborda e elabora o tema, com sua peculiar pegada mitológica, encanta e aprofunda ao mesmo tempo. Vejam:
Mestre das fechaduras, o fracasso fecha e abre portas. Ele é chave que destranca o cárcere de Dioniso e liberta sentimentos exilados. Quando a porta se abre, ele se vai e deixa seu rastro. Ficam as histórias que serão