A Indústria Da Pesca Ilegal, Não Declarada E Não Regulamentada (inn) E Os Deslocamentos Forçados Transnacionais
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A Indústria Da Pesca Ilegal, Não Declarada E Não Regulamentada (inn) E Os Deslocamentos Forçados Transnacionais - Alessandra Hasegawa Sandini
Alessandra Hasegawa Sandini
A INDÚSTRIA DA PESCA ILEGAL, NÃO
DECLARADA E NÃO REGULAMENTADA (INN) E
OS DESLOCAMENTOS FORÇADOS
TRANSNACIONAIS
VULNERABILIDADES E COOPERAÇÃO NO
ATLÂNTICO SUL OCIDENTAL
A INDÚSTRIA DA PESCA ILEGAL,
NÃO DECLARADA E NÃO
REGULAMENTADA (INN) E OS
DESLOCAMENTOS FORÇADOS
TRANSNACIONAIS
VULNERABILIDADES E COOPERAÇÃO
NO ATLÂNTICO SUL OCIDENTAL
Alessandra Hasegawa Sandini
1
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 AS MIGRAÇÕES HUMANAS NA ATUAL CRISE
GLOBAL HUMANITÁRIA E O TRÁFICO DE PESSOAS
NO ÂMBITO DO TRABALHO ESCRAVO................33
1.1 Os dilemas da migração no mundo
moderno...............................................................34
1.2 As interfaces entre as migrações econômicas
forçadas, tráfico de pessoas e escravos: a
exploração da vulnerabilidade humana...............66
1.3 O quadro normativo internacional e
interamericano relativo à mobilidade humana: o
direito
de
migrar
como
direito
humano................................................................95
2 A INDÚSTRIA DA PESCA E O ABUSO DA
VULNERABILIDADE DE MIGRANTES FORÇADOS
NAS
ÁGUAS
DO
ATLÂNTICO
SUL
OCIDENTAL......................................................121
2.1 A indústria da pesca ilegal, não declarada e não
regulamentada(INN)...........................................124
2
2.2 O envolvimento da indústria pesqueira em
crimes transnacionais relacionados ao tráfico de
pessoas e escravos: a exploração da mão de obra
migrante............................................................ 159
2.3 A incidência da indústria da pesca INN no
Atlântico Sul Ocidental.......................................189
3 OS APARATOS JURÍDICOS E AS POSSIBILIDADES
DE ATUAÇÃO DOS ESTADOS SOBRE A PESCA
INN......................................................................237
3.1 A Pesca Ilegal, Não Declarada e Não
regulamentada
no
âmbito
jurídico:
vulnerabilidades e aplicação...............................240
3.2 Execução penal nos crimes de pesca INN:
lacunas relacionadas à jurisdição.......................279
3.3 Migrar como um direito humano: diminuição
dos
déficits
normativos
jurídicos-
humanitários......................................................300
4 CONCLUSÃO....................................................320
5 REFERÊNCIAS................................................333
3
INTRODUÇÃO
O tema da migração sempre se mostrou
instigante e presente na vida da pesquisadora.
Descendente de japonês e italiano, desde sua
primeira formação a migração e miscigenações
culturais estiveram próximas no seu cotidiano. As
histórias contadas por seus avós a respeito da
chegada ao Brasil, as dificuldades enfrentadas para
conquistar solo fértil e fixar raízes no país e, em
alguns
momentos,
a
própria
xenofobia,
sensibilizaram o olhar da autora para o tema da
migração.
Os deslocamentos internos Sul-Sul da
escritora também fazem parte da construção de sua
identidade, tendo a própria vivenciado os efeitos da
atual mobilidade. Nascida no interior do estado do
Paraná, passando sua infância e adolescência em
Santa Catarina e desenvolvendo seus estudos no
Rio Grande do Sul, a pesquisadora é alvo dos
deslocamentos internos ocasionados por busca de
4
melhores condições de trabalho de seus pais e
desenvolvimento pessoal a partir dos estudos.
Além disso, durante a escrita deste trabalho, a
autora
foi
considerada
uma
estudante
internacional ao deslocar-se de sua residência
habitual no Brasil com a finalidade de aprimorar sua
pesquisa na Universidad Nacional del Litoral (UNL),
na Argentina, e Universidad de Cádiz (UCA),
Espanha.
Ao chegar no extremo sul, na cidade Rio
Grande - RS, uma cidade portuária, lugar propício
para o encontro de diferentes sotaques, culturas,
religiões e nacionalidades, o desejo de estudar a
mobilidade humana aumentou. A Universidade
Federal do Rio Grande-FURG, universidade que
acolheu a pesquisadora desde sua graduação no
início de 2017, despertou a curiosidade em
compreender mais sobre esse mundo e deixar-se
apaixonar por ele. Como não se sentir curiosa para
seguir com a pesquisa no tema das migrações
5
diante de tamanhas descobertas. O mestrado em
Direito e Justiça Social e as discussões feitas ao
longo da pós-graduação, posta com a paixão e
sensibilidade da autora, mostraram-se como um
aliado na curiosidade em seguir pesquisando.
A escrita da autora é desenvolvida a partir
de uma ótica conceitual humanitária, a qual
defende o direito de migrar como um direito
humano. Essa visão é permitida, dentre outros
motivos, graças ao aparato jurídico normativo da
região da qual a escritora pertence, a América do
Sul. Desse modo, será relatado por meio de
legislações dessa região que o direito de migrar
como um direito humano é promissor, sobretudo
no Sul da América do Sul, a fim de demonstrar que
tal pensamento é possível.
A atual crise humanitária enfrentada por
diversas regiões do globo ultrapassa as fronteiras
dos Estados e mostra-se como uma problemática
mundial. Isso ocorre devido à interconexão tanto
6
de suas causas como de suas consequências, de
modo que não há como pensar em estratégias de
desenvolvimento com justiça social sem englobar o
tema da mobilidade humana.
Inúmeros são os fatores que levam
pessoas do mundo todo a se deslocarem de
maneira forçada do seu país de origem em busca de
melhores condições de vida. São considerados
deslocados forçados aqueles que por motivo de
conflitos armados, violência generalizada, violações
de direitos humanos, de catástrofes ambientais
provocadas pela natureza ou pelo ser humano, ou
para evitar tais situações, se veem obrigados a
saírem do seu local habitual de residência (OIM,
2020)
Este trabalho, ocupa especial atenção ao
migrante forçado por motivos de ordem
econômica. Este migrante ou grupo de migrantes,
cruzam as fronteiras internacionais, ou dentro do
próprio país, motivados principalmente em busca
7
de oportunidades econômicas. Ressalta-se que,
uma vez negado o acesso justo à economia,
também são restritos outros direitos como
alimentação adequada, residência segura, água,
educação e dentre outros direitos humanos
essenciais, além de restringir a entrada a
determinados
locais
devido
sua
condição
econômica vulnerável, resultando no cerceamento
de sua liberdade. Ademais se difere do migrante
laboral por que não possui somente o objetivo de
buscar um trabalho, como também melhores
oportunidades de vida (OIM, 2020)
Nessa perspectiva, esse migrante de
ordem econômica se aproxima do migrante
vulnerável justamente por que não pode ou não
consegue gozar de maneira plena seus direitos e
correm risco de sofrerem graves violações de
direitos humanos e abusos, tanto no seu país de
origem, como no país de destino. Em alguns casos,
esse migrante econômico desesperado por
8
mudança de vida, pode ser um migrante objeto do
tráfico de escravos e de pessoas para fins laborais,
é dentro deste cenário que este trabalho se
desenvolve.
O quadro legal do tráfico de pessoas está
contido no Protocolo Adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de
Palermo, o qual entrou em vigor em 2003. Seu
objetivo é proporcionar aparato jurídico para
prevenir, punir, identificar e proteger as vítimas do
tráfico de pessoas, bem como promover a
integração entre Estados a fim de erradicar a
problemática.
No artigo 3º do Protocolo pode-se
encontrar a definição do que é tráfico de pessoas.
Desse modo, para que seja caracterizado tráfico de
pessoas é necessário que exista a ação de recrutar,
9
transportar, transferir, alojar ou acolher a pessoa,
sob circunstâncias de ameaça, uso de força ou outra
forma de coação "ao rapto, à fraude, ao engano, ao
abuso de autoridade ou à situação de
vulnerabilidade ou da entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra, para fins de exploração".
Os meios exploratórios podem ser para fins de
prostituição forçada ou outros meios de exploração
sexual, o trabalho ou o serviço forçado, escravidão
ou trabalho análogo a escravidão, servidão ou
remoção de órgãos. Dentre as categorias de tráfico
de pessoas, este trabalho volta os olhares
principalmente ao tráfico de pessoas para a
exploração laboral.
Já o tráfico de escravos está regulado na
Convenção das Nações Unidas Relativa à
Escravatura de 7 de dezembro de 1953. O art. 1º,
parágrafo 2º da Convenção, define que tráfico de
10
escravos é desenvolvido por meio da captura,
aquisição ou cessão de um indivíduo com o
propósito de escravizá-lo, vendê-lo ou trocá-lo e de
forma geral, todo ato de comércio ou transporte de
escravos. Já a situação de escravidão é, conforme o
parágrafo 1º, "o estado ou condição de um
indivíduo sobre o qual se exercem, total ou
parcialmente, os atributos do direito de
propriedade".
Inseridos dentro do contexto da divisão
global da riqueza, da indústria e do trabalho, a alta
vulnerabilidade do migrante econômico forçado é
para o mercado da pesca ilegal ambiente propício
ao desenvolvimento de práticas de violações de
direitos humanos. Assim, os migrantes vulneráveis
que anseiam por dias melhores, caem nas redes da
indústria pesqueira que podem levá-los ao tráfico
de pessoas e escravos, sobretudo para exploração
laboral, sendo que, algumas vezes, nem os próprios
migrantes são capazes de visualizar tal situação.
11
Este é o personagem central objeto de
estudo dessa pesquisa, o migrante forçado por
motivos de ordem econômica, que, em busca de
melhores condições de vida, encontra-se vulnerável
e suscetível a cair em falsas promessas de trabalho
digno na indústria da pesca INN. Esse migrante é
criminalizado, as leis de migração cada vez mais
restritas e rigorosas, vêm se aproximando das leis
penais na medida que cria o personagem do
migrante como inimigo do Estado. Por isso, esse
migrante além de buscar meios irregulares e
perigosos para adentrar em outro território, ainda
encontra dificuldades para ingressar no mercado de
trabalho regular, espaço oportuno para os grupos
criminosos transnacionais de tráfico de pessoas e
escravos no mar.
Nesse quadro, A Convenção das Nações
Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM), também
conhecida como Convenção de Montego Bay,
possui forte importância, pois existe uma interface
12
entre os deslocamentos forçados, o tráfico de
escravos e o tráfico de pessoas relacionado à
indústria da pesca (ilegal) em alto mar. Em seu
art.99º prevê a proibição do transporte de escravos
ao expressar que os Estados são obrigados a tomar
"medidas eficazes para impedir e punir o transporte
de escravos em navios autorizados a arvorar a sua
bandeira e para impedir que, com esse fim, se use
ilegalmente a sua bandeira". Ademais, todo escravo
que se refugiou em um navio será considerado livre.
Importante destacar que a indústria da
pesca é hoje fonte de renda e alimentação para
milhares de pessoas, sendo indispensável. Por isso,
este trabalho não possui como objetivo manchar a
reputação da indústria pesqueira ou reduzi-la, o
foco principal são as violações de direitos humanos
que
podem
ocorrer
em
determinadas
embarcações. Nesse sentido, conforme relatório
sobre o estado da pesca e da aquicultura no mundo
elaborado pela Organização das Nações Unidas
13
para Alimentação e Agricultura (FAO) 2022, no ano
de 2020 a produção de pesca e aquicultura atingiu
um recorde de 214 milhões de toneladas, das quais
178 são de animais marinhos e 36 de alga, grande
parte devido a produção na região da Ásia. O
comércio internacional de pesca e aquicultura
gerou certa de U$$ 151 bilhões no mesmo ano,
abaixo do recorde de US$ 165 bilhões em 2018,
devido a uma contração da demanda impulsionada
pelo COVID-19, seguida de um leve aumento em
2021.
O número total de embarcações de pesca
em 2020 foi estimado em 4,1 milhões. A Ásia ainda
possui a maior frota pesqueira, com cerca de dois
terços do total global. O relatório também informou
dados a respeito da rede do trabalho envolvido.
Estima-se que 58,5 milhões de pessoas estavam
relacionadas com a indústria da pesca no primeiro
setor. Em 2020, 84% de todos os pescadores e
aquicultores estavam na Ásia. As mulheres, de
14
modo geral, representavam 21% das pessoas
envolvidas no setor primário, possuíam tendência a
empregos sazonais e representavam apenas 15%
dos trabalhadores em tempo integral. Importante
destacar que nos Estados industrializados o
recrutamento de trabalhadores na indústria da
pesca cai drasticamente, em contrapartida
aumentou em Estados menos desenvolvidos. O
aparato jurídico que protege esses trabalhadores é
o que se mostra preocupante.
Nesse contexto, compreende-se que
determinadas
vulnerabilidades
tornam
as
embarcações pesqueiras e alguns pescadores
suscetíveis de se envolverem no crime organizado
transnacional. Este tipo de atividade criminosa é
dinâmica e flexível, mas algumas formas de crime
são mais do que outras, como é o caso do tráfico de
pessoas, especialmente para exploração laboral no
mar. Isso ocorre devido às peculiaridades do espaço
em que se desenvolvem e da indústria a que se
15
conectam, o modus operandi, as rotas de tráfico e
os fluxos dessa modalidade de delinquência, os
quais dificultam a atuação estatal e os esforços de
aplicação da lei.
Conforme o documento "Transnational
organized crime in the fishing industry focus on:
trafficking in persons smuggling of migrants illicit
drugs trafficking" lançado pelo Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em
2011, a diminuição dos estoques de peixes está
relacionada a uma série de violações que
contribuem para a manutenção da pesca INN. Essa
diminuição forçou os exploradores da indústria
pesqueira a adentrar cada vez mais longe em alto
mar ou levarem mais tempo para encher o navio
com peixes. Mais dias no mar reflete no aumento
do valor da mão de obra, o que é compensado com
a mão de obra barata do migrante. O trabalhador
migrante é o mais suscetível a cair no tráfico de
pessoas e escravos. Por outro viés, menos peixe o
16
torna mais valioso, o que significa um grande
atrativo para os grupos organizados transnacionais.
Adentrar mais longe em alto mar também
é sinônimo de dificuldade em monitoramento
dessas embarcações, bem como problemas de
jurisdição e competência para processar e julgar
esses crimes quando são pegos. Desse modo,
compreende-se que o mar é um espaço distante do
aparato jurídico dos Estados e propício à prática de
crimes relacionados ao tráfico de pessoas e
escravos.
Dentro de um contexto global, o tráfico de
pessoas que envolve migrantes econômicos para
exploração laboral na indústria da pesca é um crime
que atinge em diferentes níveis várias regiões do
globo. O Oceano Pacífico é a localidade mais
recorrente, nas regiões da China, Japão e Tailândia,
as vítimas do tráfico de pessoas para fins de
trabalho forçado variam de acordo com a forma de
exploração e também quanto ao tipo de trabalho
17
realizado. Todavia, o que motivou a presente
pesquisa é que esses crimes vêm crescendo
também na região do Atlântico Sul Ocidental.
Foram encontradas evidências que demonstram
que o tráfico de migrantes na indústria da pesca é
recorrente nesta região, que é muito rica em
recursos pesqueiras, e compreende as costas do
Brasil, da Argentina e do Uruguai.
Nesses países, em especial Argentina e
Uruguai, existe uma concentração de mão de obra
escrava africana, utilizada por navios chineses que
possuem como destino o Porto de Montevidéu, o
que demonstra a transnacionalidade e mobilidade
do crime. Um relatório realizado pela revista Nature
em 2022, revelou que tanto para o abuso de
trabalho, quanto para a pesca INN, foram
encontradas áreas de alto risco para transbordo, ou
locais com alta concentração de transbordos de
risco, na costa da Argentina. Também foram
identificados maiores riscos de abuso de mão de
18
obra e arrastões conduzidos principalmente por
navios de bandeira chinesa usando o porto de
Yantai, China (21% das viagens de arrastões) e
Dalian, China (14%), e navios de bandeira uruguaia
usando Montevidéu, Uruguai (1%) (Selig, et al,
2022).
Diversas
embarcações
de
pesca
estrangeiras têm estado na Zona Econômica
Exclusiva (ZEE) do Uruguai. Em 2020 houve 0,7
mortos e 1,22 vítimas da escravidão no mar feridas
desembarcadas
por
mês
originários
de
embarcações estrangeiras, de um total de 300
chegadas anuais de navios cargueiros e pesqueiros