Masculinidades: trabalho, alcoolismo, corpos e representações
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Masculinidades - Maria Izilda Santos de Matos
Maria Izilda Santos de Matos
Masculinidades:
trabalho, alcoolismo, corpos e representações
São Paulo
e-Manuscrito
2024
Ficha1Ficha2Sumário
APRESENTAÇÃO
PARTE I - Masculinidades: corpos, alcoolismo e trabalho
1 - Masculinidades: sensibilidades e subjetividades
A perspectiva de gênero e a emergência dos estudos das masculinidades
Masculinidades e subjetividades
2- Alcoolismo: agentes e campanhas
O palco
Agente transformador
Uma cruzada: as campanhas antialcoólicas
3 - Alcoolismo e trabalho: família e eugenia
O ópio do proletário: álcool, trabalho e masculinidade
Pelo soerguimento da raça, ordem e progresso: eugenia e alcoolismo
Mulher, alcoolismo e luta antialcoólica
4 - Alcoolismo: perfis, espaços e criminalidade
O cordeiro, o tigre e o porco: perfis alcoólatras e masculinidade
O operário, o engenheiro e o tenor: trajetórias masculinas
Inimigos da tranquilidade: álcool e crime
O espaço do perigo: o botequim
PARTE II - Masculinidades: representações na publicidade e nas canções
5 - Corpos e representações: cabelo, barba e bigode
Corpo: uma experiência histórica
O corpo: análises e controles
Corpos masculinos: representações na publicidade
Curar e prevenir
Cabelo, barba e bigode
6 – Sentimentos, afetos e emoções nas canções: paixão e ingratidão
Lá no bar onde eu vivo
(Lupicínio Rodrigues)
Representações e sentimentos: masculino e feminino
O ébrio apaixonado e a ingrata criatura: trajetórias e perfis masculinos e femininos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Só com açúcar e com afeto podemos construir histórias outras e incluir na história os outros, embora eles possam significar amarguras e desafeto. Uma história sem vítimas e sem vilões, uma história de pessoas que sofrem e gozam o poder sempre que as condições históricas, sociais e individuais se mostram propícias ou abrem possibilidades. Histórias de pessoas que buscam em cada mesa um ombro amigo.
Durval Albuquerque (2000)
APRESENTAÇÃO
Estes escritos explicitam uma antiga sedução: a da pesquisa, que me permite o exercício-desafio de visitar e desvendar o passado, de rever imagens e enraizamentos impostos, bem como recuperar outras falas, dar visibilidade a homens e mulheres em tempos passados.
A atividade de docente na PUC/SP e a orientação de várias pesquisas de pós-graduação me colocam uma série de questionamentos, abrindo possibilidades para a recuperação de experiências de outros protagonistas históricos, o que gosto de denominar outras histórias
. A emergência dos estudos de gênero e de novos movimentos feministas ampliou as tensões-discussões em torno da dita crise da masculinidade
e colocou novos desafios, como o de rastrear no passado as representações de gênero, em particular, as das masculinidades.
Este livro, Masculinidades: trabalho, alcoolismo, corpos e representações
, sistematiza as investigações de projetos de pesquisa desenvolvidos que contaram com o apoio do CNPq: Delineando corpos: as representações do masculino e do feminino no discurso médico-sanitarista (São Paulo 1890-1930)
, Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações
e Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade
.
O percurso deste trabalho foi pontilhado de estímulos e apoios, em várias oportunidades, frações da pesquisa foram apresentadas, recebendo valorosas sugestões, aqui incorporadas. Muito se aprende no processo de realização de um trabalho como este. Agradeço a Mirtes de Moraes e Marcos Antonio de Oliveira, pelo auxílio na coleta do material e pelo diálogo. Gostaria de deixar o registro das contribuições e estímulos recebidos de Lená Medeiro de Menezes, Peter Beattie, Stanley Brandes, James Green, Durval Albuquerque, Margareth Rago, Etelvina Trindade, Raquel Soihet, Vera Puga, Roseli Boschilia, Joana Pedro, Pedro Vilarinho Castelo Branco, entre outros. Lembrando que esta obra não seria possível sem a estimulante convivência dos meus orientandos que tanto me instigam e mantêm vivo meu entusiasmo (Andréa Borelli, Antonio Otaviano Vieira, Iara Beleli, Bruna Beserra Pereira, Enesio Marinho da Silva, Elaine Rosa de Souza, Francisca Ilnar de Sousa, Idalina Maria Almeida de Freitas, Mardonio Silva e Guedes, Marilene Rodrigues Quintino, Noélia Alves de Sousa, Pietra Mello Munin, Rosana Schwartz, Raimunda Gomes da Silva, Redson dos Santos Silva, Sandra Colucci, Tania Soares da Silva, Valdeci Borges, Vanessa Spinosa).
Esta obra aborda a construção das masculinidades priorizando uma perspectiva histórica e focalizando a primeira metade do século XX. Destacam-se questões como alcoolismo, trabalho, representações, corpos, subjetividades, sensibilidades e emoções. O texto encontra-se organizado em duas unidades. A primeira inicia apresentando discussões sobre os estudos de gênero, masculinidade hegemônica, sensibilidades e subjetividades, recuperando a produção sobre essas temáticas na historiografia e nas Ciências Humanas e Sociais. Na sequência, analisa-se a questão do alcoolismo
, dialogando com uma ampla documentação médico-higienista-sanitarista-eugenista. Os discursos referentes às campanhas antialcoolismo foram empreendidos por várias instituições, dirigiam-se aos homens, em particular, os populares, construindo uma trama de relações entre trabalho-família-violência-crime, que reforçavam e difundiam padrões hegemônicos de masculinidade e no contraponto do não-dever-ser
masculino – o alcoólatra.
Partindo dos pressupostos de que a construção dos gêneros varia histórica, cultural e socialmente e de que os discursos e as práticas não se constituem numa produção isolada, mas, através de aprendizagem, denotam integração numa cultura e são representativos da internalização das regras resultantes de acordos sociais
, observa-se como esses discursos e práticas utilizam-se de recursos persuasivos e normativos que condicionam condutas, comportamentos possíveis e/ou disponíveis, desempenhando pressões por mudanças no processo de subjetivação dos padrões hegemônicos das masculinidades.
Na segunda unidade, os questionamentos priorizam as representações dos corpos e sensibilidades masculinos presentes nos reclames de medicamentos, higiene e de cuidados de si
. Seguidas da análise da produção musical sobre a temática do alcoolismo, destacando-se as canções de Vicente Celestino e Lupicínio Rodrigues, lembrando que as composições são uma das poucas instâncias em que aos homens se permitem falar sobre seus afetos, sentimentos e emoções.
PARTE I - Masculinidades: corpos, alcoolismo e trabalho
Esta unidade tem como principal desafio discutir a construção da masculinidade hegemônica. Para tanto, investiga-se a questão do alcoolismo
dialogando com uma ampla documentação médico-higienista-sanitarista-eugenista, que reforçava e difundia padrões e códigos de masculinidade, no contraponto do não-dever-ser
masculino – o alcoólatra.
1 - Masculinidades: sensibilidades e subjetividades
Neste primeiro momento, as reflexões focalizam os estudos sobre as masculinidades, sensibilidades e subjetividades. Iniciando por uma retomada da produção nas Ciências Humanas e Sociais, são discutidas questões como a masculinidade hegemônica, a reinvenção das masculinidades e os debates sobre subjetividades, incluindo as discussões sobre sensibilidades masculinas, suas dores, amores, angústias, entre outros sentimentos.
A perspectiva de gênero e a emergência dos estudos das masculinidades
As contribuições dos estudos de gênero às análises contemporâneas são inquestionáveis, pois, além de tirarem as mulheres e os homens da invisibilidade, colocam novas questões-reflexões metodológicas com o questionamento das universalidades e das naturalizações que possibilitam o foco sobre as diferenças e as perspectivas relacionais. Essas abordagens apontam para a necessidade de discutir novas categorias/perspectivas analíticas aceitando a sua instabilidade, reconhecendo a subjetividade crítica do investigador.
Apesar da ampla produção nos estudos de gênero e de suas instigantes contribuições, ainda são poucas as investigações sobre as masculinidades, carecendo de novas pesquisas que questionem os parâmetros extra-históricos e universalizantes. A emergência das masculinidades como tema-questão, entre outros fatores, vincula-se aos desdobramentos dos estudos de gênero e às alterações das pautas feministas que pontuam novas estratégias de combate à dominação masculina na busca pela equidade e por relações mais justas entre homens e mulheres. Essas questões contemporâneas ampliaram o interesse pela temática e possibilitaram o surgimento de tendências que discutem a construção social e histórica das masculinidades, das paternidades, dos arranjos familiares e observam a denominada crise da masculinidade
.
Esses estudos denunciam os poderes e abusos por parte dos homens e o ultraje pela subordinação e exploração histórica das mulheres. Como contraponto, apontam-se os aspectos problemáticos, fardos e conflitos vivenciados pelos homens, criando a noção de crise da masculinidade
; almejando flexibilidades de papéis, alterações nas dinâmicas de poderes e reinvenção das masculinidades
.¹ Outras pesquisas evidenciam os processos de construção de normas/códigos e hegemonias que suportam a superioridade do homem branco ocidental, interrogando sobre a naturalidade da heterossexualidade, vendo as masculinidades dentro de suas especificidades e observando numa perspectiva interseccional a diversidade social, cultural, histórica, étnica e geracional.
Dessa forma, torna-se cada vez mais necessário superar a dicotomia, ainda presente, entre a vitimização
e a visão de uma onipotência
masculina vinculada à denúncia dos seus poderes e abusos; crescendo a necessidade de estudos críticos dos estereótipos masculinos associados à força, poder, agressividade, violência, decisão, capacidade de domínio e iniciativa que possibilitem um enfoque analítico sobre as construções das masculinidades, a manutenção das hegemonias e todas as tramas de poder que permeiam as relações de gênero.²
A produção historiográfica e a das Ciências Humanas tenderam a conceitualizar o sujeito social e histórico como neutro e universal. Essa universalização impõe dificuldades na observação das masculinidades, que variam de contexto para contexto, sendo, portanto, múltiplas, apesar das permanências e hegemonias. Assim, sobrevém a preocupação em desfazer noções abstratas de homem
enquanto identidade única, a-histórica e essencialista, para pensar as masculinidades como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações, rastreando-a como múltipla, mutante e diferenciada no plano das configurações de práticas, prescrições, códigos, representações e subjetivações, campos de disputa e transformações minados de tensas relações de poder.
Ao pesquisador cabe a tarefa de desconstruir e desnaturalizar as diferenças, procurando desvendar o estabelecimento das hegemonias, discutindo as questões de subordinação/dominação; adotando uma perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, lembrando que gênero não se refere unicamente a homens e mulheres e que as associações homem-masculino e mulher-feminino não são óbvias, devendo-se considerar as percepções sobre masculino e feminino como dependentes e constitutivas das relações culturais, procurando não essencializar posturas, modos de ser e viver e sentimentos de ambos os gêneros.³ Espera-se que os estudos sobre a construção da masculinidade desestabilizem ainda mais as certezas e ampliem as críticas sobre a noção de natureza humana, que o universal masculino (homem branco, heterossexual, ocidental, classe média)