Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A fascinação weberiana
A fascinação weberiana
A fascinação weberiana
E-book450 páginas6 horas

A fascinação weberiana

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Passados cem anos de sua morte, a obra e a personalidade de Max Weber não perderam nada de seu fascínio. Sérgio da Mata oferece ao leitor uma densa introdução a temas e questões fundamentais de um dos pais fundadores da moderna ciência social. Seu profundo conhecimento das ciências alemãs da época de Weber – Direito, Economia, História, Filosofia – lhe permite apresentar, com extraordinária clareza, os problemas metodológicos e as conexões concretas da multifacetada obra de Weber, bem como o lugar que ela ocupou nas constelações intelectuais de seu tempo. O ponto de partida deste livro é a convincente tese sobre a importância central da Escola Histórica alemã de economia política para a trajetória intelectual de Weber e a formação de sua sociologia histórica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de ago. de 2022
ISBN9786556230481
A fascinação weberiana

Leia mais títulos de Sérgio Da Mata

Relacionado a A fascinação weberiana

Títulos nesta série (4)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

História Social para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de A fascinação weberiana

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A fascinação weberiana - Sérgio da Mata

    A fascinação weberiana

    Em março de 1913, chegava a Heidelberg um correspondente do diário francês Le Figaro. Seu objetivo: realizar uma entrevista com Max Weber. Protestante, tido na França como um expert em assuntos germânicos, Gaston Riou não deve ter tido maior dificuldade para entabular um animado diálogo com o mito de Heidelberg. Interessado em conhecer melhor as novas correntes religiosas na Alemanha, Riou chegara a ele por indicação de Ernst Troeltsch. Em uma carta a Lukács escrita pouco depois, Weber disse ter tido ótima impressão do jovem jornalista estrangeiro.

    Essa entrevista jamais veio a público. Em obra aparecida durante a primeira guerra mundial, Riou deixou-nos uma única frase sobre seu ilustre entrevistado, certamente expressão daquele encontro ocorrido três anos antes, às margens do Neckar: L’esprit le plus vivant que j’aie vu (Riou, 1916:4).[ 1 ]

    Com esta pequena história, uma história de sedução, já estamos a falar nosso tema: a fascinação weberiana. Tal expressão, ao que parece, foi cunhada na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré (1985). A fascinação denota um tipo de encantamento intelectual, uma sedução, uma paixão sem a qual é impossível explicar por que tantas pessoas ainda se interessam por Weber e sua obra, da América ao Japão. Ao mesmo tempo, e é o que demonstra o caráter ambivalente do fenômeno, a fascinação frequentemente leva a uma obliteração daquilo que deveria ser o bem mais caro do intelectual: sua autonomia. Da fascinação ao sacrifício do intelecto, a distância muitas vezes é curta.

    Ninguém ignora, porém, que de nada vale a excelência de uma obra sem a existência de mediadores dispostos a mobilizar recursos capazes de garantir a construção e a manutenção do estatuto de clássico de um determinado autor. Ideias sem ancoragem institucional — de grupos de devotos a instituições de ensino ou editoras — estão condenadas a desmancharem no ar. No que diz respeito a Weber, a primeira pessoa a ter clareza disso, por motivos um tanto óbvios, foi sua esposa Marianne. A mesa de trabalho de Max Weber é agora o meu altar, escreveu ela em suas memórias. Com efeito, não é despropositada a caracterização que dela fez Golo Mann, ao chamá-la vicária de Max Weber sobre a terra (apud Hanke, 2006:30-31). Muitos dos jovens que acompanharam a última fase da vida acadêmica de Weber caíram vítimas do mesmo encantamento. Carl Schmitt, Karl Löwith, Helmuth Plessner, Max Horkheimer e Elli Husserl estavam entre os que se acotovelavam para assistir às suas derradeiras preleções em Munique. Assim descreveu Karl Loewenstein o sentimento que o invadiu após ouvir um entusiasmado Weber discorrer sobre sua sociologia da música: foi um momento de virada em minha vida, neste momento eu me rendi a ele, eu tinha me tornado seu vassalo (Loewenstein, 1966:29). Johannes Winckelmann, cuja importância no processo de preparação e edição de Economia e Sociedade é conhecida, rememora suas impressões após assistir à conferência Ciência como vocação: Este foi meu primeiro e, para mim, decisivo contato com Max Weber: eu estava fascinado (apud Lepsius, 2006:24). Mesmo entre seus colegas de universidade, Weber produzia extraordinária impressão. Heinrich Rickert (1926:225) afirmou que as pessoas viam nele "uma espécie de demônio, um Übermensch que se era obrigado a admirar, mas também a temer. Friedrich Meinecke (1927:244) chega a afirmar que Weber tinha sido o único de sua geração a merecer a qualificação de autor genial. Eberhard Gothein (1931:149) anota em 1908, após um encontro com Weber: ele coloca todos os que estão em Heidelberg no bolso".

    A fascinação intelectual, uma forma de culto, de ? Dois anos antes da morte de Weber, em um livro que não chegou a causar sensação, Edgar Zilsel apostava na verdade desta homologia: Parte substancial de nossos literatos, isto é, de nosso público escritor e leitor de livros, satisfaz suas necessidades religiosas exclusivamente na forma do culto ao gênio (Zilsel, 1990:53-54). É de se suspeitar que o próprio Max Weber tenha contribuído de forma consciente para que dele se começasse a falar, relativamente cedo, como o mito de Heidelberg. Essa aura religiosa (que para ele se manifestava em grupos como o que gravitava em torno do poeta Stefan George) não estava inteiramente ausente de seu próprio círculo de admiradores, jovens de talento que acorriam às disputadas journées em sua bela casa às margens do Neckar, e nas quais ele brilhava, soberano, como o astro principal. Tempos depois, em uma Alemanha às vésperas da derrota na guerra, dividido entre sua preocupação com os destinos na nação e os estudos sobre o judaísmo antigo, sua linguagem assumiria um tom verdadeiramente salvífico (Otto, 2002:59-61). Assim descreve Karl Löwith seu estado de espírito depois de presenciar a famosa conferência de 1917: As palavras de Weber eram como uma salvação (Löwith, 1994:17). Devemos a Loewenstein o registro de um importante momento de Ciência como vocação em seu formato original, e que foi deixado de lado no texto que veio a público dois anos depois. Como um novo Isaías, Weber dirige estas palavras à juventude: Tudo depende da compreensão desta pequena passagem de Tucídides; meu destino e o destino do mundo dependem de que a interpretação correta seja encontrada. Somente aquele que pode sentir isso é um cientista por vocação (apud Loewenstein, 1966:34).

    ***

    Mas nosso tema é menos a fascinação por Weber que uma fascinação de Weber. Para tanto, ocorreu-nos trabalhar com um cenário alternativo: Weber morre em 1909 e não em 1920. Tivesse sido esse o caso, seu nome provavelmente passaria à história das ciências humanas na condição de economista político e historiador, dificilmente na de sociólogo.[ 2 ]

    Há mesmo razões suficientes para afirmar que sua última grande obra não é uma sociologia, mas uma história universal. Para um estudioso do calibre de Wilhelm Hennis, "a ‘sociologia’ de Weber não pode ser deduzida da Ética econômica das religiões mundiais".[ 3 ] De fato, a noção de história universal presente nessa última série de grandes publicações de Weber não difere substancialmente da que atravessa o grande ensaio Relações agrárias na Antiguidade. É a esse último estudo de 1909, assim como à Ética protestante, que a Ética econômica das religiões mundiais pode e deve ser comparada do ponto de vista da sua metodologia, e não, como pretendeu Friedrich Tenbruck, com Economia e sociedade.[ 4 ]

    Isso nos conduz ao problema, a ser retomado adiante, das distinções entre história e sociologia para a geração de eruditos alemães que viveu a virada para o século XX. Weber só se dedicou erraticamente a esse problema. Atribuir uma dimensão compreensiva à sociologia podia ser uma novidade para essa disciplina no alvorecer do novo século. Não para a história. Weber estava demasiadamente familiarizado com os escritos de Dilthey e Simmel para ignorar o fato de que a ciência histórica passara a se conceber como disciplina compreensiva desde a década de 1880. A distinção entre as duas disciplinas, proposta por Weber na primeira seção de Economia e sociedade, está longe de ser satisfatória.

    Perguntar-se a esse respeito é importante menos por uma questão de identidade disciplinar que pelo fato de que essa questão pode nos ajudar a localizar melhor o "sociological turn" do nosso autor. Os primórdios da sociologia de Weber estão mais claramente representados ali onde não se os costuma procurar, em suas importantes investigações sobre o mundo do trabalho e das estruturas agrárias. As raízes da sociologia weberiana se concentram em um conjunto específico de textos: em uma ponta, sua meticulosa análise dos levantamentos feitos em 1891 para a Associação para a política social sobre as condições dos trabalhadores rurais a leste do Elba (Weber, 1892); na outra, dois trabalhos dados a público em 1909: a Psicofísica do trabalho industrial (Weber, 2009) e seu esboço de sociologia da imprensa (Weber, 2002).

    Longe de perseguir as origens da sociologia weberiana, trata-se de fugir da sua sombra. Na maioria dos casos, o Weber da primeira fase, quando chega a ser estudado, o é em função do Weber da segunda fase — já claramente devotado aos estudos sociológicos. O que legitima e dá importância ao estudo de sua dissertação de doutorado e de sua livre-docência, via de regra, é a identificação de linhas de força, temas e conceitos que, finalmente, florescerão no Weber tardio. A seguir essa lógica, e ao tomarmos o ano de 1903 como marco (publicação do primeiro ensaio metodológico importante e, presumivelmente, início de redação da Ética protestante), chega-se à inevitável conclusão de que os primeiros vinte anos de sua vida acadêmica (1882-1902) serviram apenas como preparação para os últimos dezessete anos (1903-1920).[ 5 ] Não tiveram substância e importância próprias. Eis aí uma das tentações mais típicas daquilo que Skinner (2000) chamou de mitologia da coerência.

    Se por vezes há interesse pelos anos de aprendizagem de Weber, não costuma passar de um interesse instrumental. E, no entanto, não é trivial a constatação de que todo autor é devedor de ideias, de inclinações e, eventualmente, de descobertas feitas em sua juventude? Qualquer um de nós é capaz de identificar tais continuidades em sua própria vida. Não, não é por essa via que justificaremos a relevância dos estudos e escritos de Weber realizados entre 1882 e 1909. O que buscamos, primordialmente, não foi melhor compreender o Weber-sociólogo. Em se tratando de um homem que cogitou seriamente a possibilidade de abandonar a carreira universitária quando já ocupava uma cátedra em Freiburg,[ 6 ] é rigorosamente legítimo, do ponto de vista do método, estabelecer uma distinção entre as diferentes fases de sua trajetória, as quais não guardam relação de determinação umas em relação às outras.

    Pareceu importante tentar romper com o teleologismo até agora dominante nos Weber Studies no Brasil. Ninguém, ao fim da década de 1910, e Weber por certo, poderia sonhar com sua elevação ao panteão dos grandes eruditos alemães. A previsão de Theodor Mommsen, e que Marianne orgulhosamente faz questão de evocar quando descreve a defesa de tese de seu marido, podia não ter se realizado. Durante algum tempo a possibilidade de um retumbante fiasco foi, aliás, muito mais plausível (Radkau, 2005:253-315).

    De modo que o que nos interessa é o Weber da primeira fase em si mesmo, um Weber que transita entre jurisprudência, economia política e teologia. Mas que delas se aproxima em uma perspectiva que é, sempre e decididamente, histórica. A história é, para Weber, a ciência-base: Grundwissenschaft.[ 7 ]

    Como veremos, o fascínio de Weber pela ciência histórica é bem fácil de constatar no período que vai dos seus estudos universitários em Heidelberg até a terceira versão do ensaio sobre as relações agrárias na Antiguidade, e, decerto, se estende até a derradeira realização intelectual, os artigos publicados no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik sobre a ética econômica das religiões mundiais. Não pretendemos, claro está, abarcar o todo de sua obra, tarefa para a qual duas vidas não seriam suficientes.

    Weber evoluiu de posições relativamente convencionais para uma situação anfíbia, para tomar a expressão de Gilberto Freyre. Vale dizer: de um historicismo avant la lettre até a história cultural, e desta, à sociologia. Queremos apreender esse processo não de forma retrospectiva, mas — é surpreendente que tal princípio seja tantas vezes esquecido na literatura a seu respeito — progressiva. O homem nunca é apenas o que as estruturas fazem dele; ele é também, e sobretudo, a expressão de uma história vivida, ou melhor, de um feixe de histórias. Ao menos enquanto não se demonstrar o contrário, histórias continuarão a se constituir cumulativamente. Para apreendê-las, não convém abrir mão dos inícios. E como nossa tarefa se esgota no ano de 1909 (quando, acreditamos, se consubstancia o "sociological turn" weberiano),[ 8 ] o princípio metodológico óbvio só pode estar na investigação sistemática do que antecede esse marco. Tudo o que se situa posteriormente a ele será, tanto quanto possível, posto entre parêntesis. Ou não será levado em consideração, ou só o será de forma incidental e meramente ilustrativa.[ 9 ]

    Voltemos à nossa hipótese inicial: que retrato faríamos de Weber caso ele tivesse morrido não em 1920, mas onze anos antes, em 1909? Bastaria a Ética protestante e seus estudos sobre a situação dos trabalhadores a leste do Elba para situá-lo entre os pais da sociologia alemã? Não teria cabido, antes, a Tönnies ou Simmel esse papel? Uma passada de olhos pelo programa do primeiro congresso da Sociedade Alemã de Sociologia basta para se perceber que, àquela época — disseram-no, inclusive, dois dos conferencistas presentes, Ernst Troeltsch (1925:11) e Georg Simmel (1999:16) —, a sociologia alemã era menos uma disciplina que uma forma de ver.

    Daí a importância de se reconstruir a trajetória de Weber nos quadros do que chamaríamos de era de ouro do historicismo. Diferentemente de Friedrich Jaeger e Jörn Rüsen (1992), porém, não nos parece que o período da história intelectual alemã que vai de 1882 a 1909 tenha assistido ao início da crise do historicismo (embora a crítica a ele se avolumasse, o que é algo bem diferente). Ao desaparecimento de gigantes como Ranke, Burckhardt, Treitschke, Roscher e Mommsen naqueles anos, não se fez seguir, no sentido forte do termo, uma crise do historicismo. Deu-se, de fato, o oposto. Através dos trabalhos de Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert, o historicismo adquiria autoconsciência teórica, fundamentava-se epistemologicamente. A gênese da obra e da metodologia weberiana é parte indissociável desse processo.

    ***

    Deixemos aos teólogos e aos especialistas em história eclesiástica e religiosa a crítica da Ética protestante; aos juristas, a crítica de sua sociologia do direito; aos orientalistas, o exame minucioso de seus ensaios sobre o hinduísmo e confucionismo. A longa história das tentativas de se refutar Weber — e que tem no historiador Felix Rachfahl (1909) seu impressionante ponto de partida — mereceria um estudo à parte. O que se busca aqui é menos saber se Weber teve razão do que a reconstrução da gênese e desenvolvimento do seu pensamento em relação à história.

    Depois dos trabalhos de Gabriel Cohn, José Guilherme Merquior, Maurício Tragtenberg, Jessé Souza, Katie Argüello, Renarde Freire Nobre, Renan Springer de Freitas, Marcos Seneda, Carlos Eduardo Sell, Antônio Flávio Pierucci, Tamara Grigorowitschs, Astor Diehl, Arilson de Oliveira e René Gertz, os estudos weberianos no Brasil atingiram um ponto em que não mais se concebe uma investigação que se limite a oferecer visões panorâmicas. Não há outro futuro aqui senão o da exploração de novos caminhos: a confrontação com os textos ainda pouco estudados, a reconstrução das constelações intelectuais e disciplinares pelas quais Weber transitou,[ 10 ] a identificação daqueles que estavam por detrás de algumas das inovações a ele atribuídas, a pesquisa documental in loco. Os estudos weberianos estão condenados, se é que têm a pretensão de avançar, a se orientarem não somente por novos problemas, mas também por novas abordagens. E a aceitarem o fato de que, também aqui, (o mote é weberiano) uma realização científica digna desse nome não poderá escapar à marcha inexorável da especialização.

    Em nosso caso, por razões óbvias, estudar o significado da ciência histórica para Weber significou dar um passo decisivo no sentido da historicização da sua obra. Para tanto, não se buscou apenas situar e interpretar seus escritos e sua trajetória no tempo, mas trabalhar em uma zona de confluência entre história intelectual e das ideias. Significou ancorar-nos no sólido trabalho que é a edição crítica das obras de Weber, a Max Weber Gesamtausgabe.[ 11 ] Significou ainda um estudo cuidadoso de sua correspondência, inclusive aquela ainda inédita (sob a guarda do Arquivo Secreto Estatal do Patrimônio Cultural Prussiano). Significou, para usar a linguagem dos historiadores, ampliar o repertório das fontes.

    Depois de empenhar alguns anos no estudo da história intelectual de uma sociedade situada além do círculo cultural das culturas neolatinas, minha sensação é a de que a fórmula o passado é um país distante só deve ser aceita com certo cuidado. É que há gradações. Para o observador latino-americano hodierno, a Alemanha da passagem do século XIX para o século XX é um país ainda mais distante. Para tentar vencer essa distância, fontes textuais não bastam. Pois também ao historiador é dado, a despeito de tudo o que se costuma dizer em sentido contrário, ir além daquilo que Arnold Gehlen denominou experiências de segunda mão.

    Ao exercício da investigação diligente deve se somar a disposição para experimentar e pensar as experiências do pouco (ou muito) que o presente preserva de um mundo passado. Nosso horizonte não se limitou ao que Weber escreveu, mas se estendeu ao mundo em que ele viveu. Conhecer algumas daquelas cidades e ruas pelas quais andou, espaços que nele deixaram suas marcas, mas nos quais também ainda resta algo de seu. Esse exercício de ambientação, se é que podemos denominá-lo assim de forma tão prosaica, só pode ser considerado inútil quando se leva demasiado a sério o postulado do mundo como texto. Existe algo que não pode ser subsumido ao texto, que sempre o ultrapassa — por ser anterior a ele. É o mundo da vida.

    Entro na imponente catedral de Erfurt. Onde teriam se sentado Helene Weber, a velha huguenote, e seu filho mais velho? Seu olhar dirigia-se, como o meu, para a luz de outono que descia dos vitrais? Terá aquele garoto encontrado tempo e interesse para conhecer, nos cinco anos em que viveu em sua cidade natal, a cela onde dormiu Lutero no antigo convento dos agostinianos? Talvez tenham, um e outro, percorrido as mesmas calçadas. Por quais das ruas de Charlottenburg teria ele brincado em seus tempos de adolescente? Muitas delas, na Berlim de hoje, carregam nomes de eminentes historiadores alemães... Em seu semestre de inverno de 1885, cursado em Göttingen, Weber faz uma visita de cortesia a Wilamowitz-Moellendorff. É dezembro, e as calçadas da velha cidade universitária estão cobertas de neve. Voltando para casa pelas ladeiras silenciosas, ele medita sobre as palavras daquele homem que medira forças com Nietzsche e que havia se tornado (nas palavras de Hans Blumenberg) uma superpotência no campo da filologia antiga. Terá sua paixão pela história recebido então o impulso definitivo?

    Já nos cansamos de ouvir que o passado deixa de existir, que o acesso a ele não passa de ficção. Isso contradiz toda experiência. Tal como uma estrela, cujo brilho atesta a própria existência, mas nunca nos dá a imagem do seu presente imediato, o passado pode ser visto. Ele pode ser percorrido, até mesmo tocado.[ 12 ] Como vários pesquisadores antes de mim, tive nas mãos cartas que Weber escreveu de próprio punho. Cartas à mãe, aos irmãos, à esposa, ao seu estimado tio Baumgarten. Em tais momentos produzia-se, de novo, aquela sensação que continua a emprestar ao trabalho do historiador boa parte de seu encanto. Algo que, por assim dizer, emana de uma carta em sua materialidade, mais que pelas palavras que contém — como não dizer que Weber estava ali? Ele pousou suas mãos sobre o papel, dobrou-o cuidadosamente... No que hoje resta de sua biblioteca, em seus grifos e anotações à margem das páginas, com que entusiasmo descubro que seu olhar convergiu para este, não para aquele trecho: cada grifo é um pequeno tesouro, conta-nos uma história.

    Que caminho teria ele preferido percorrer, em Heidelberg, do antigo prédio da Universidade até o sóbrio casarão ainda hoje de pé na Ziegelhäuser Landstrasse? Quantas vezes acompanhou Gundolf, Jaspers e Lukács até a porta? E com que frequência galgava as íngremes ruas acima de sua residência, para se encontrar com Rickert ou com ele passear calmamente pela trilha dos filósofos? Terá segredado a alguém, ao cruzar o Neckar pela Alte Brücke, detalhes da redação recém iniciada de A ética protestante? E com que pesar deve ter dado suas costas àquela paisagem — a paisagem de Heidelberg — para viver seus últimos meses de vida na capital bávara! Graças a Edith Hanke, pude ver de perto alguns dos lugares e caminhos da Munique de Weber. Aqui, a grande sala de conferências em que se acomodava o público de suas preleções. Ali, o local em que proferiu Ciência como vocação, onde antes havia um auditório contíguo a uma cervejaria. Não é improvável, explica-me ela, que muitos tenham assistido a esta conferência com seus copos à mão. Ou os caminhos entre as árvores do Englishgarten, ao longo dos quais, imagino, ele deve ter travado animadas discussões com o mestre Lujo Brentano. A casa em que fechou seus olhos pela última vez.

    Este livro poderia ter sido concluído caso seu autor tivesse empregado textos e nada além de textos, sem a experiência de ter vivido na Alemanha e retornado repetidas vezes àquele país. Seria um outro livro, bem diferente, escrito por alguém que ignora, em toda a sua extensão, a lição de Ranke de que o conhecimento do passado é incompleto sem que haja familiaridade com o presente. Não, il y a beaucoup de hors-texte: coisas e lugares nos contam uma história pelo fato mesmo de continuarem a existir. Cada uma dessas histórias nos fala de Weber, cada uma delas nos ajuda a saber quem era ele e que unidade de sentido pode estar subjacente ao que escreveu.

    Também aqui tentamos apenas seguir seus passos. Pouco antes de lançar-se à escrita da Ética protestante, ele pretendia exercitar o que chamou, em uma carta à sua mãe, de fantasia histórica.[ 13 ] Para esse fim, Weber percorreu sozinho cidades da Itália, da Bélgica e da Holanda. Quando de sua passagem por Roma, sua mulher anotou: Aqui pode ele apartar-se dos sofrimentos do dia a dia e fundir-se ao que há de eterno de todas as épocas; experienciar, pela visão, as grandezas com que se familiarizara apenas por meio do conhecimento, expandir seu ser através da nau da história. Toda antiga pedra na velha cidade fala à sua fantasia histórica e estimula-o poderosamente (Weber, 1989:260).

    ***

    Nossa perspectiva, eventualmente, poderá assumir ares de desmitologização. Quando as evidências apontaram nesse sentido, não nos furtamos a fazê-lo. Se pretendemos fazer jus ao legado de Weber, o objetivo último não poderia ser — como declarou sua primeira biógrafa — o de eternizá-lo. Submeter sua vida e obra a um estudo de história intelectual e das ideias implica também, e inevitavelmente, desencantá-las. O mesmo vale para muito do que ainda hoje se lê a seu respeito. Somente desta forma se contrabalança o efeito daquela fascinação de que falávamos há pouco.

    Como Simmel, Weber achava que a atitude do homem que crê, desde que creia verdadeiramente, implica um sacrifício do intelecto. Há muito de verdade nisso. Virada ao avesso, essa consideração nos oferece uma chave analítica importante: nossa pesquisa procurou apartar-se, tanto quanto possível, desta tentação demasiado humana, a da aceitação inconteste de tudo aquilo que sai da pena de um autor clássico. Precisamente nesse ponto a história intelectual e das ideias se separam do mythmaking. O que se deve perseguir é o conhecimento renovado (pois também aqui é lícito falar em descobertas) e a interpretação criadora de um autor, não a preservação a todo custo de uma imagem. Mas nem por isso deixaremos de reconhecer tudo o que há de inovador naquilo que Weber viu antes de qualquer outro, dentro do recorte temporal observado neste livro. Antes de qualquer outro, Weber percebeu a importância decisiva, histórica, da transvaloração do trabalho (Beruf) operada pela ética religiosa do puritanismo.

    Tudo isso nos conduzirá, vez por outra, à personalidade e à história pessoal de Max Weber, posto que indissociáveis do que escreveu. Não acreditamos em palavras de ordem vazias como a da morte do autor. Dissociar vida e obra significaria, para nós, render-nos a uma ilusão holística (Mata, 2011c:89-103). Tivessem as ciências humanas se resguardado minimamente desta ilusão, não haveria necessidade de sublinhar o fato de que para o surgimento e desenrolar de controvérsias científicas — em que Weber tantas vezes se envolveu — as amizades e inimizades, os motivos pessoais e sentimentos frequentemente significam mais que as diferenças de opinião objetivas (Brocke, 1971:154). Weber esteve, em mais de uma ocasião, marcado por incertezas pessoais de toda ordem, inclusive em relação à sua verdadeira vocação. Suas relações com Sombart, Schmoller, Troeltsch e Simmel não estão isentas de ambiguidades. Sua silenciosa apropriação do conceito de tipo ideal elaborado por Jellinek, suas idas e vindas em relação à psicologia e à própria sociologia, sugerem uma imagem mais complexa e nuançada do que a que até agora prevaleceu. Quem lê com cuidado sua correspondência defronta-se com os intestinos do mundo acadêmico alemão de princípios do século XX, um mundo que não apenas para os judeus, como dizia ele em 1917, mas para qualquer um, exigia um estômago forte. Lasciate ogni speranza era então o mote de todo homo academicus capaz de preservar a lucidez intelectual e moral em (e até mesmo a despeito de) seu trabalho.

    A fim de reconstruir as constelações intelectuais do passado, nada mais natural que os historiadores sejam chamados a dar sua contribuição. Se cientistas sociais como Tenbruck, Schluchter, Hennis, Lepenies, Burger e Rossi ressaltaram a importância da ciência histórica na trajetória de Weber, historiadores como Mommsen, Lehmann, Ringer, Ghosh, Deininger, Nippel e Hübinger mostraram a que ponto a perspectiva historiográfica pode contribuir para uma melhor compreensão da sociologia weberiana. Tem-se estudado, cada vez mais, a importância da história para Weber. Algo que só se pode fazer, por motivos óbvios, historicamente.

    Os mais atentos hão de perceber que parte do livro que têm em mãos não é constituído de material inteiramente inédito, tendo já aparecido em uma ou outra publicação. Gostaríamos, porém, de ressaltar que nenhum dos capítulos a seguir passou incólume pela prova do tempo, tendo se beneficiado das críticas de colegas e, não menos importante, de um conhecimento cada vez menos fragmentário a respeito dos temas neles abordados. O que antes apareceu sob a forma de artigo foi reformulado e bastante ampliado.

    Esperamos ainda não infringir nenhuma norma grave ao abrir mão, nesta introdução, da tradicional síntese prévia de cada capítulo. É que ao autor não apraz redigir resumos.

    ***

    Devo à minha ex-professora na Universidade Federal de Minas Gerais, Lucília de Almeida Neves Delgado, a chance de, em 1987, confrontar-me pela primeira vez com a leitura de Weber. Em uma empolgada turma de graduandos em história, então dominados por convicções mais ou menos marxistas, ela nos colocou a tarefa de ler A ética protestante e o espírito do capitalismo de ponta a ponta. O velho exemplar, adquirido ao preço de 850 cruzados, permanece em minha estante. Lucília está enredada na história dos efeitos que este livro produziu em mim, e seria imperdoável caso não houvesse espaço para ela nesta introdução. Quando, uma década depois, segui para meu doutorado na Alemanha, tinha como agenda secreta aprofundar-me no estudo da obra de Weber. Sem o saber, Lucília suscitara a abertura de um novo campo de interesses. Não resta dúvida: um professor pode, com suas escolhas, mudar o rumo de uma vida.

    Mas a meio caminho entre os interesses e a sua objetivação em um produto do pensamento e da pesquisa, existem as instituições. Sem o apoio proporcionado por várias delas, a parte mais substancial da investigação, realizada em bibliotecas e arquivos de Erfurt, Frankfurt an der Oder, Heidelberg, Munique e Berlim, jamais teria sido possível. É muito mais que uma formalidade, portanto, o meu agradecimento ao CNPq (bolsa de pesquisa no biênio 2008-2010), ao convênio CAPES-DAAD (bolsa que garantiu minha passagem como pesquisador-visitante no Instituto Max Weber da Universidade de Erfurt em setembro-outubro de 2008), à Fundação Alexander von Humboldt (pela bolsa que permitiu-me passar seis meses na Alemanha, entre setembro de 2009 e fevereiro de 2010), e à FAPEMIG, cuja bolsa do Programa Pesquisador Mineiro tornou possível a aquisição da maior parte dos volumes da Max Weber Gesamtausgabe pela biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto.

    Estevão de Rezende Martins, Hans-Jürgen Prien, Wolfgang Schieder, Marcos Caldas e Cláudia Chaves tornaram possível, através de seus pareceres, a obtenção da generosa bolsa da Fundação Humboldt. Com a rapidez e a competência de sempre, meu amigo Sérgio Barreira Krieger fez a tradução do projeto de pesquisa para o alemão.

    Na Academia de Ciências da Baviera, em Munique, contei em mais de uma ocasião com a ajuda e a simpatia de Edith Hanke e Ursula Bube. Além de me franquear amplo acesso ao acervo da Max-Weber Forschungsstelle, que contém os exemplares remanescentes da outrora grande biblioteca pessoal de Weber, Edith guiou-me pelos vários endereços de Weber naquela cidade. Grande conhecedora da sociologia weberiana da religião, Ursula iluminou-me com inúmeras sugestões. Friedrich Wilhelm Graf, o maior especialista em Troeltsch da atualidade, recebeu-me com vivo interesse e enviou-me cópias de seus estudos sobre outras figuras importantes do círculo intelectual de Weber. Em Heidelberg, Sybille Osswald-Bargende viabilizou meu acesso a exemplares de obras das bibliotecas da cidade que contêm anotações e grifos de Weber. Quando escrevia sua excelente dissertação de mestrado sobre a recepção do pensamento histórico alemão nos Annales, Sabrina Magalhães Rocha chamou-me a atenção para um surpreendente artigo de Maurice Halbwachs sobre Weber no primeiro número dessa revista.

    Dentre as pessoas que têm a sua cota de responsabilidade pelas páginas que seguem, gostaria também de mencionar Ulrich Eumann (Colônia); Hans Kippenberg, Ursula Birtel-Koltes, Doreen Hochberg e Bettina Holstein (Erfurt); Thomas Gerhards (Düsseldorf); Barbara Picht e Ewa Dabrowska (Frankfurt an der Oder). Na Universidade Federal de Ouro Preto, agradeço especialmente aos meus colegas do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade: Mateus Pereira, Helena Mollo, Valdei Araujo, Fernando Nicolazzi e Luiz Estevam Fernandes; assim como aos bolsistas de iniciação científica Amanda, André, Carolina, Luna e Lorena. Sempre encontrei estímulo no ambiente de pluralismo teórico e abertura para o debate que é a marca registrada dos encontros e simpósios do NEHM. Com os colegas Fábio Faversani e Adriano Cerqueira divido, desde há muito, um vivo interesse por Weber. O intenso intercâmbio intelectual com Virgínia de Castro Buarque reforçou em mim a convicção de que sem levar em consideração as articulações profundas entre história do pensamento histórico e história das ideias teológicas, a obra de Max Weber não pode ser apreendida em toda a sua complexidade e riqueza.

    Minhas pesquisas se beneficiaram, e não pouco, do diálogo que mantive com cientistas sociais como Renarde Freire Nobre, Renan Springer de Freitas, Rainer Schmidt e, em especial, Leopoldo Waizbort. Graças a Fábio Wanderley Reis, Vera Cabana Andrade, Marcílio Marques Moreira e Arno Wehling, obtive indicações valiosas sobre a história da recepção de Weber no Brasil. Giulle Vieira da Mata, Fábio Joly e Arthur Alfaix Assis tiveram o desprendimento de ler versões prévias de alguns capítulos e fazer-me importantes sugestões.

    Meu agradecimento final se dirige, particularmente, a cinco pessoas.

    Mais que por seu enorme domínio a respeito da história social e intelectual daquela Alemanha em que Weber viveu, ou por sua situação estratégica na edição crítica das obras de Weber, Gangolf Hübinger e Rita Aldenhoff-Hübinger colocaram-me em contato com obras, com acervos documentais e com uma rede de pesquisadores que, de outra forma, eu não teria conhecido. Receio ter de admitir que raras vezes experimentei, em nosso próprio país, a mesma generosidade. Se este livro vier a acrescentar algo que seja aos estudos weberianos, Gangolf e Rita hão de ter muito a ver com isso.

    Todos nós, que vivemos parte substancial de nossas vidas da e para a escrita, alimentamos a expectativa de, por meio dela, chegar a um grande número de pessoas. Surpreende, em vista da elevadíssima taxa de fracasso, que ainda nos deixemos seduzir por esse ideal. Mas não é aí que se esconde o verdadeiro dilema, pelo menos da forma como o vejo. É que por uma lei implacável do trabalho intelectual, tal objetivo, o de chegar às pessoas, só pode ser perseguido ao preço de sucessivos afastamentos justamente

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1