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O Senhor das Pedras
O Senhor das Pedras
O Senhor das Pedras
E-book699 páginas6 horas

O Senhor das Pedras

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Sobre este e-book

Na iminência da ressurreição de Ur, o senhor das pedras, a entidade que observa os humanos, pessoas de diversas partes do mundo se aventuram em casos sobrenaturais, mistérios históricos e conspirações que, ligados, giram todos ao redor da construção da nova torre de Babel, aquela que derrubaria os céus, acabando com a humanidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mai. de 2024
ISBN9786583009074
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    O Senhor das Pedras - Jonathan Rock

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    Para Marcel Ehcie a noite estava bela, fria e silenciosa, porém sabia que toda aquela beleza lúgubre só trazia o agouro da barbaridade prestes a acontecer.

    Ele andava fora das estradas da cidade de Nihil, nas colinas gélidas. Simplesmente tinha resolvido procurar o caminho mais curto para a escola, mesmo que fosse mais desconfortável e difícil de se caminhar, mesmo sem saber o motivo, pois agia por uma estranha vontade inconsciente. Já passara da meia noite, mas nem pensava que a escola para onde ia devia estar fechada, já que a única coisa que vinha à sua mente era chegar ao seu destino.

    Estava com uma vontade estranha que o fizera parar de pensar, não sabia de onde ela teria vindo e nem mesmo queria saber. Toda essa vontade contradizia o estado em que ele estava, pois seu corpo estava à beira da queda; o frio fazia a superfície da sua pele arder, seus músculos se contraíam da dor causada de andar tanto em superfícies tão ruins, sua respiração ofegava como nunca antes, sentia-se como se houvesse uma coceira no fundo da mente que não conseguia alcançar. O corpo pedia para cair e nunca mais acordar.

    Sua mente estava um caos, já não tinha mais uma memória homogênea, fagulhas de pequenas lembranças tomavam formas e desapareciam antes de serem lidas. A última coisa que lembrava desse tormento era de estar em casa tentando consertar uma prateleira de livros quebrada, até entrar em choque por algum motivo desconhecido e agora estar na caminhada.

    Chegou na escola onde uma vez estudara, mas que naquele momento era onde trabalhava, era quase um pequeno castelo de pedra com apenas a biblioteca feita de madeira. Tal lugar pareceria amaldiçoado aos olhos de alguém, pois carregava consigo algum tipo de neblina invisível, uma tristeza que assolava toda e qualquer pessoa que entrasse lá. Essa sensação o fazia pensar que só existiria igual em lugares carregados por milhares de almas penadas, onde dor e desespero foram as únicas coisas sentidas por elas em vida. Porém, ele sabia que o que causava toda essa atmosfera era a monotonia do lugar, algo que se repetia numa rotina tediosa demais para quem procura algo a mais e que perturbaria tal pessoa de forma até mais terrível que qualquer assombração.

    Estranhou o portão aberto àquela hora da madrugada, mas logo percebeu que as luzes do edifício de madeira estavam ligadas. Supôs que alguém com as chaves do portão estava na biblioteca. Perguntou-se se o seu objetivo lá era se encontrar com essa pessoa, pois até ali nunca nem tinha pensado em qual seria seu objetivo.

    Entrando na biblioteca, o cheiro dos livros conseguiu tranquilizá-lo. Sentado em uma cadeira estava o bibliotecário do turno da tarde, olhava diretamente para o nada, enquanto parecia lutar para manter a calma. Ignorava Marcel como se toda a perturbação que demonstrava viesse de algo que acontecera havia pouco tempo, mas tinha terminado pouco antes da chegada do visitante. Marcel percebeu estar carregando o martelo que usava para pregar as prateleiras de sua casa, nem mesmo se dera ao trabalho de soltá-lo, mas agora seria útil. Ignorou o bibliotecário por ele também o estar ignorando ou nem soubesse de sua chegada, virou-se para a cômoda que parecia estar lá havia muito tempo, mesmo que se lembrasse de nunca a ter percebido. Martelou a tranca, ouvindo o bibliotecário se assustar a cada batida, porém não fazendo nada, porque provavelmente o que estava pensando era mais importante que qualquer coisa. Jogou o martelo no chão e tirou lentamente o objeto de dentro da gaveta, analisando atentamente. Era um livro feito de finas placas de pedra ásperas. A capa era um completo cinza, com as palavras Dominus Lapides escritas em baixo relevo e o símbolo:

    3

    — Marcel, solta isso. — O bibliotecário só pareceu percebê-lo assim que pegou o livro.

    Marcel tentou falar algo, perguntar o motivo de estar atrás do livro, algo que nem mesmo ele sabia, mas sua boca não se abria, como se falar não fosse necessário. Calado, virou-se para correr, mas o bibliotecário o derrubou no chão, pisando no seu peito e puxando o item. O ladrão, sendo sufocado e gastando todas as suas forças para manter o livro em suas mãos, chutou a barriga do bibliotecário, jogando-o para longe e o fazendo cair na mesa atrás dele.

    — Você não pode pegar esse livro! — gritou o bibliotecário, avançando de novo contra Marcel, mas dessa vez não tocou no livro, ele segurou o rapaz pelo ombro e começou a socá-lo com toda a sua força, fazendo o ladrão perceber que, mesmo com dores e impactos, não soltava um único grunhido. — Você não pode! — Outro soco. — Você não pode! — Outro soco. — Você não pode!

    A dor e o cansaço que Marcel sentiu o fizeram soltar o livro. O bibliotecário pegou o objeto pesado e se distanciou assustado, ofegando e tremendo, mas ainda feliz por não ter perdido o item; depois se virou por alguns segundos, pensando em onde pediria ajuda, mas logo Marcel conseguiu forças para ignorar a dor, pegou o martelo no chão e atingiu uma única e forte vez a cabeça do inimigo, fazendo o sangue derramar. O atingido soltou o livro, gritando de dor e cambaleando. Desesperado, o ladrão deu outra martelada, fazendo o bibliotecário cair no chão e, ainda em seu desespero por vencer a batalha, continuou martelando com toda a sua força e velocidade a cabeça do velho, manchando todo o chão de vermelho.

    Só parou de bater muito tempo depois de perceber que a vítima já estava morta. Levantou-se, assustado e desesperado, tentando aceitar que aquilo fosse real, não conseguia acreditar que fora capaz de tirar a vida de alguém. Tentou chorar, tentou gritar de angústia com toda a sua força, mas sua face permanecia congelada na expressão de vazio que o fazia sentir mais ódio por não poder nem demonstrar o seu arrependimento. Ainda tentava sem sucesso entender o motivo de estar lá e ter feito aquilo.

    Soltou o martelo, pegou o livro manchado de sangue e foi embora. Correu tanto pelas colinas gramadas que por muitas vezes caiu, rolou nas descidas e, coberto de sujeira e arranhões, se levantou, continuando com toda a velocidade e desespero que encontrava. Não queria de jeito nenhum ser encontrado, odiava ter se tornado um criminoso, mesmo imaginando que deveria se entregar, não conseguia parar a fuga. Ao chegar em casa, trancou a porta desastrado, jogou o livro na mesa e foi até sua cama, sentando-se e chorando de arrependimento. Após horas e com os olhos secos, já sem lagrimas, olhou para a frente, onde viu o grande espelho oval. Percebeu que sobre seus olhos era possível ver reflexos de chamas brancas flamejando. A chama se apagou e ele voltou a ter controle do seu corpo, lembrando-se da ordem que recebera.

    4

    A cidade de Nihil era uma província considerada sem importância em Roltiam, no nordeste da ilha, formada ao redor de uma estação de trem que ligava o arquipélago inteiro. O lugar tinha uma economia rural, com baixa densidade populacional e muitos fazendeiros, que normalmente também tinham como segunda profissão o artesanato de comidas, a segunda fonte de subsistência da cidade. Roltiam, em específico, era um pequeno país, um dos três que formavam o arquipélago no norte do oceano pacífico, chamado de arquipélago roltiano.

    No cemitério da cidade acontecia o enterro de um homem assassinado brutalmente há pouco tempo. Não havia familiares, apenas as outras pessoas que trabalhavam com ele na antiga escola. Todos ficaram calados durante o evento inteiro e, ao terminar, todos demonstravam estar apressados para ir embora, saindo o mais rápido possível. O padre foi embora ao perceber que já tinha acabado, enquanto as pessoas se dissipavam, deixando apenas o rapaz, que parecia ser o único realmente triste.

    Marcel Ehcie carregava sobre os ombros uma culpa que criava os seus lamentos noturnos, ele sentia, mesmo que soubesse que algo ou alguém tinha o seu corpo sob controle naquele momento, que era sua culpa a morte de Edgar. Eles se conheciam, pois ambos eram bibliotecários na escola, turnos os separavam, mas havia coleguismo. Marcel sabia que tentara o tempo todo se soltar daquele controle, mas pensava que poderia ter tentado mais e conseguido. Ou se não conseguisse, pelo menos deveria se entregar ao invés de deixar que um cientista forense inocente levasse a culpa por algo que não fez.

    O que tinha acontecido é que, durante as investigações do assassinato, haviam encontrado o martelo usado, mas enquanto levavam para Quilliam, a capital de Roltiam, para analisarem e tirarem as digitais, o cientista forense do caso o jogara no rio, impedindo as análises da pista. O homem fora preso por ser considerado cúmplice, mesmo ele tendo insistido que alguma força desconhecida o obrigara a fazer aquilo.

    Logo Marcel percebeu que ao fim do enterro tinha restado mais uma pessoa ali, no canto, esperando ao lado de um carro caro. Um homem de terno bem cortado e postura inexpressiva, que tinha a má reputação, por todo o país, de ser um rico empresário da cidade grande que, na verdade, mandava em toda a agiotagem e tráfico. Ao tentar ir embora para evitá-lo, Marcel foi parado.

    — Senhor Ehcie — disse o empresário Howard Luna, com uma voz mais serena do que parecia possível, assim que Marcel passou perto dele —, eu soube que você é o novo bibliotecário.

    — Eu sou há muito tempo, só vou ter que pegar os dois turnos agora.

    — Suponho que este lugar te deixe desconfortável para conversar. — O Senhor Luna parecia piscar em intervalos exatamente iguais, além de não se mover um único centímetro, mantendo a postura perfeita. — O senhor está disponível para uma entrevista de emprego?

    Sentaram-se em uma lanchonete do centro de Nihil.

    — Peça o que quiser — disse o Senhor Luna.

    — E você? — perguntou Marcel, olhando cabisbaixo para as crianças brincando na rua.

    — Não tenho interesse na culinária artesanal desse local.

    — Tudo bem. Também não estou com fome. — Viu que uma criança se machucara na calçada e as outras a estavam ajudando a se levantar. O empresário começou:

    — Há uma biblioteca perto de Nihil, no meio da floresta, uma biblioteca tão antiga que quase ninguém sabe da existência dela. Edgar Augustos tinha permissão de entrar lá, em um momento ele passou a enviar para mim escrituras importantes, que o velho que cuida do lugar o deixava pegar.

    — Você quer que eu faça o mesmo?

    — Já tentei mandar funcionários próximos a mim, só que o lugar onde fica essa biblioteca é uma área onde passam muitos indígenas, e o druida, o velho que manda no lugar, é bem estranho e desconfiado, então alguém que queira tomar as escrituras dele para lucrar com isso não consegue. O melhor jeito dele não desconfiar que tem algo por trás é se chegar uma pessoa da cidade mais próxima, que encontrou a biblioteca da floresta por acaso e quer saber mais pela pura curiosidade inocente de um amante de livros. Então o mais recomendável é você chegar lá como quem não quer nada, como fazia o Edgar.

    — E o que você tanto quer com essas escrituras a ponto de pagar caro por elas?

    — João fez uma profecia enorme sobre o fim dos tempos, com acontecimentos mágicos e monstros demoníacos surgindo no mundo para causar a discórdia. Ele estava errado. A humanidade criará a própria ruína. Finalmente o mundo vai ficar em paz. As forças destrutivas criadas pelos humanos vão acabar com eles mesmos. São elas que eu estudo através dessas escrituras…

    — Marcelzinho, que bom encontrar você! — exclamou uma pessoa que sempre seguia Marcel, sentando-se na mesa junto aos dois. O seu nome era Noah Ixion, uma pessoa com um alto grau de albinismo, que era ressaltado por só se vestir do mais impecável branco. O único contraste eram seus olhos de um violeta brilhante. — Quem é o seu novo amigo?

    — Noah, não é hora para brincadeiras — disse Marcel, olhando para baixo para segurar a raiva que sentia, pensava que finalmente tinha se livrado daquela praga por pelo menos um dia. Quando olhou de novo, Noah estava movendo as mãos na frente do rosto do Senhor Luna como se fosse uma atração.

    — Olha, Marcel, ele não move os olhos! — Noah parou, encarou bem de perto os olhos azul-escuros de Howard Luna e fez algumas caretas, tentando fazer o rosto dele tomar alguma expressão. — O que você é? Um alienígena? Achei que só aparecessem nos Estados Unidos.

    — Desculpe-me — disse Howard—, mas estou em uma reunião de negócios, então peço que, se quiser brincar com o meu sócio, que faça em outro momento. — Pela primeira vez, Howard mostrou alguma uma expressão: de dúvida. — Devo chamá-lo de senhor ou senhorita?

    — Ah, não, por que todos tem que começar com essas perguntas? Acabei de te conhecer e você já acha que tem intimidade para uma pergunta constrangedora dessas? Sou o que eu quiser, sabia? Se eu for um helicóptero de combate, o que você tem a ver? A partir de agora, meu pronome de tratamento vai ser Vossa Alteza, e se você não se referir assim a mim, vou te cancelar, tá?

    — Vamos conversar lá fora. — Marcel se levantou e puxou o braço de Noah. — Daqui a pouco eu volto sem ele — disse ele, porque, pelo menos naquele momento, Noah estava vestido com roupas masculinas.

    — Espera, eu gostei do seu amigo! — Noah tentava resistir ao ser puxado para fora. — Talvez ele seja um vampiro, imagina como deve ser emocionante namorar um vampiro!

    Assim que passaram pela porta, Marcel jogou Noah no chão, passando pelos dois degraus da entrada da lanchonete.

    — Mais cuidado, sou carga frágil, nunca ouviu falar que quebrou, pagou?!

    — Você não sabe me deixar em paz por um único segundo?

    — Temos um assassino de bibliotecários à solta, você precisa do seu anjo da guarda. — Batia as mãos na calça branca para tirar a poeira.

    — Vou falar pela milésima vez. Deixe-me em paz.

    — Já que insiste.

    Assim que Marcel se virou para entrar de novo na lanchonete, Noah o seguiu, fazendo Marcel o empurrar de novo; dessa vez ele desviou.

    — Você não me ouviu?

    — Prometo que não vou me aproximar de você hoje, é só que deu vontade de tomar um milkshake…

    — Sem milkshake! — Em seguida, Marcel bateu a porta da lanchonete, ao que os funcionários não reclamaram, por estarem igualmente ansiosos para expulsar aquela pessoa. Voltou para a mesa. — Não adianta bater cabeça para descobrir o sexo biológico dele, só vai na onda do que ele estiver se sentindo no dia, senão vai ter um chilique e é pior para todo mundo… — Parou ao notar que Howard Luna estava ocupado com uma ligação.

    — Desculpe-me por não poder continuar nossa entrevista, tenho uma emergência para resolver. — Já ia embora, mas parou. — Você conhece Agatha Devon? É uma funcionária minha que mora nesta cidade, você pode continuar tratando com ela sobre a proposta de emprego. Ela também sabe que foi você que cometeu o assassinato.

    Aquela manhã estava amena, como todas as manhãs na pacata cidade de Nihil. O lugar sempre se mantinha do mesmo jeito, uma brisa fresca, a grama pálida cobrindo todas as colinas e as poucas construções, às vezes uma cerca ou um muro de pedra com o objetivo de separar um curral ou uma plantação das estradas. Marcel estava passando por uma estrada, na qual de um lado havia um pomar de árvores frutíferas.

    — Marcel! — chamou uma mulher colhendo maçãs em uma árvore.

    — Senhora Curie, parece que as suas árvores não estão mais dando tantas maçãs.

    — Essa é a primavera mais fria da história. Pega uma para eu ver se ainda tenho jeito com essas frutas. — Ela jogou uma maçã por cima do baixo muro de pedra, ele pegou e provou.

    — Ainda prefiro as suas sidras.

    — Vou te dar uma garrafa quando terminar essa safra, pelas aulas que você estava dando para o meu filho.

    — Prefiro um envelhecido.

    — Pedir demais é feio!

    — Tudo bem, preciso ir, Senhora Curie, tchau.

    — Tchau.

    Voltou a andar pela estreita estrada por alguns minutos, até perceber que estava longe da casa da fabricante de sidra; jogou a maçã na plantação ao lado, enquanto cuspia o pedaço que mordera; andava com muito pouco apetite e não tinha afeição por maçãs.

    Já na casa de Agatha Devon, tocou a campainha e a viu sair apressada dizendo:

    — Vamos dar uma volta para conversar, não quero atrapalhar minha mãe.

    — Claro.

    Apesar de estar lá por pedido de Howard Marcel, tinha a conhecido quando estudava na escola de Nihil, porém não falava mais com ela, isso o deixava sem jeito para trocarem experiências.

    Enquanto andavam, Agatha puxou assunto:

    — Com o que você está trabalhando? — Parecia ter medo de que falar de uma vez no hipnotizador pudesse levá-los aos muitos assuntos do passado que tinham deixado de lado.

    — Sou bibliotecário na escola de Nihil.

    — Ouvi falar que ele tinha morrido.

    — Turnos diferentes, agora vou pegar os dois.

    — Entendi, é bom? Trabalhar com essas coisas… chatas?

    — Não faço nada além de catalogar cada vez que alguém pega ou devolve um livro e arrumar todos eles nas prateleiras. Resumindo, é muito chato.

    — E você não prefere encontrar algum trabalho menos chato, ou sei lá, fazer uma faculdade? Tipo, você é jovem.

    — Não acho que seja, por mais que pareça, então prefiro continuar aqui, na terra onde nada acontece, passando a vida fazendo nada. Tive sorte em terem me arranjado esse emprego quando terminei a escola, porque senão estaria sem fazer nada na casa dos meus pais.

    — Entendi… então… acho que não tem o que eu possa fazer. — Ficou olhando um pouco para o céu, tentando pensar no que falar. — Estou morando em Quilliam, sabia? Só vim visitar a minha mãe. Realmente, lá é muito agitado, eu me acostumei, mas de vez em quando é melhor tirar férias. Lá não tem as mesmas paisagens daqui e nem toda essa cantoria de pássaros. Gosto daqui…

    — Você pode parar com o papo furado? — Marcel reclamou. — Se fosse para perder tempo com futilidades eu estaria sozinho, só estou falando com você porque tenho um assunto a tratar.

    — Nossa, você continua chatão, hein?! Quando eu tô aqui em Nihil, só quero passar o tempo sem fazer nada, mas aí meu chefe me ligou avisando pra resolver esse problema, então vamos lá, né. Você só vai ter que ficar levando as escrituras que conseguir na biblioteca e ele vai te pagando conforme a importância delas, não tem perigo de você se envolver em nada criminoso e pode continuar sua vida normal. Normalmente o chefe me manda viajar por toda a Roltiam para resolver as coisas dele, então você nem vai precisar sair da cidade, eu mesma levo as coisas para ele…

    — Eu sei disso, o que me preocupa é outra questão. Seu chefe disse que vocês dois sabem que o assassinato do Edgar, que ainda está em investigação, foi cometido por mim. Tenho quase certeza de que o seu chefe deve ter arranjado um jeito de me encobrir para me manter nesse tal emprego. Mas saber que você, que é da mesma cidade, está ciente, me causa medo das pessoas aqui acabarem sabendo.

    — O Howard não encobriu nada, cara, a merda que você fez foi encoberta naturalmente.

    — Como assim?

    — Você não deve ter percebido, mas meu chefe percebeu. Você não é o único com isso de alguém controlou meu corpo para fazer algo errado, na real isso tá acontecendo em Nihil já faz tempo, mas ninguém percebe, porque ou não descobrem, ou descobrem e ficam achando que a pessoa fez por algum motivo específico. Quer dizer, é claro que você foi o primeiro que chegou ao ponto de algo tão grande quanto matar outra pessoa, mas sabe o que isso significa?

    — Tem alguém em Nihil que está ordenando as pessoas a fazerem coisas, mas por quê?

    — Eu sei lá — reclamou Agatha —, meu chefe e o pessoal dele tão tentando investigar isso. Deve ser muito louco ter alguém aqui que controla outras para cometer crimes, mas não adianta ficar perguntando para mim, eu não tô nem aí, só faço os trabalhos que o chefe manda.

    — Entendi, mas, pelo que você sabe, se eu fui o primeiro a assassinar, quais crimes normalmente os outros são ordenados a fazer?

    — É tudo tentativa de assassinato, você só foi o primeiro que conseguiu. Por exemplo… — Enquanto andavam, Agatha apontou para uma casa, à beira da estrada, onde havia uma ambulância. — Aquela é a senhora Aldous, ela sempre tá na cadeira de balanço na varanda. Pelo que eu soube logo que acordei, ela tá desde bem cedo em choque, por isso os socorristas tão lá. É de vez em nunca que esses problemas acontecem, mas acho que foi o que rolou essa noite. Ela recebeu a ordem para matar, mas tá passando mal, porque tá tentando, mas é velha e fraca demais pra sequer sair da cadeira, quem dirá ir andando atrás de alguém.

    — Agora que você falou, faz sentido — disse —, quando aconteceu comigo, minha mente e meu corpo ficaram horríveis, uma pessoa que já seja velha e fraca o suficiente para aguentar, talvez só fique passando mal até morrer. — Marcel notou que, além das pessoas da ambulância tentando conter o choque que a velha estava tendo, também havia o neto dela lá, um jovem que tinha estudado junto com ele, então não perdeu tempo em se aproximar da varanda para questionar. — Dante, o que está acontecendo com a sua avó?

    — Ah, oi, Marcel. Ela parece estar tendo um ataque de pânico ou algo assim, por causa dos problemas dela. Tipo, ela já estava com Alzheimer e demência, só que nunca foram tão graves a ponto de serem preocupantes, mas hoje… parece que teve um ataque tão horrível que não tá conseguindo falar, nem se mexer, fica só se debatendo na cadeira.

    — Por que não levam ela para o hospital? — Marcel disse ao olhar as pessoas tentando acalmar a velha.

    — Ela não quer sair; como eu disse, tá muito mal, nem consegue explicar o que tá passando.

    — Espero que uma casa de repouso resolva…

    — Ei, você é amigo da Agatha agora? — Dante perguntou, vendo que a moça estava ao longe na trilha, enquanto só o Marcel se aproximara. — É que ela tem tantos problemas com a minha família que minha avó pode ficar mais estressada…

    — Eu não ligo — Marcel falou, se aproximando da cadeira de rodas.

    — Você pode não se aproximar muito? — perguntou um enfermeiro.

    — Não. — Marcel se agachou para conseguir ver melhor as expressões da velha, seus olhos se reviravam para todos os lados. — Ela disse alguma coisa entendível?

    — Basicamente sobre ter se esquecido de algo, o choque deve estar afetando muito o Alzheimer, agora tem como você se distanciar um pouco? — Dante reclamou.

    — Claro, me desculpe, eu só estava preocupado, mas agora tenho que voltar pro meu trabalho.

    Desceu da varanda e saiu com Agatha pela trilha, em seguida continuou falando:

    — Foi algo sobrenatural mesmo, o jeito que ela tá não gera dúvidas, acho que vai acabar piorando até morrer.

    — Você pode ter mais consideração na hora de falar dela?

    — Como eu falo de quem morre não muda nada. E você, o Dante falou que você é cheia de problemas com a família dele, lembro-me muito bem de quando éramos novos.

    — É diferente — reclamou Agatha, já assumindo a frente na trilha em que caminhavam —, quando estávamos no ensino médio, eu e meu namorado, na época, víamos o Dante e ficávamos zoando, porque ele era super perturbado e tal. A gente praticava bullying e estávamos errados por isso, a gente era novo; desculpa por isso, mas é diferente de você, adulto, ver a avó do cara à beira da morte e ser grosso desse jeito, não estar nem aí.

    — Tenho mais o que fazer do que me preocupar com isso.

    — Tipo ficar sozinho, sem fazer nada?

    — Tipo cuidar da minha vida.

    — Marcel, tenho uma dúvida, você está preocupado com algo ter feito você cometer um assassinato. O que realmente te preocupa, uma pessoa ter morrido ou a sua integridade ter sido manchada?

    — Os dois.

    — Que mentira. Me diz uma coisa, já posso voltar pra minha casa ou você ainda tem algo a resolver com meu chefe? Porque eu deveria estar de férias.

    — Tem mais uma coisa.

    — O quê?

    — Você disse para conversarmos enquanto dávamos uma volta pelas trilhas de Nihil só para não atrapalhar sua mãe. Mas, pelo que sei, sua mãe está no trabalho a essa hora.

    — Tá bom, tenho que admitir, tinha outra pessoa na minha casa que eu não queria que você visse…

    — Não — interrompeu Marcel —, você disse pra gente dar uma volta, mas guiou a caminhada inteira em linha reta em direção à costa. — Marcel continuou seguindo na mesma direção, firme, como se a desafiasse. — Achei que você queria me levar direto pra casa da senhora Aldous, mas é mentira, estamos continuando na mesma direção, não é?

    — Você que tá andando reto, quase correndo, eu só tô te acompanhando…

    — Estou seguindo na direção que você estava tentando me levar, porque eu sei o que é. — Finalmente chegou à costa, saindo da trilha e parando um pouco no gramado anterior aos penhascos que davam no mar. — Você queria me trazer para cá desde o começo, não é?

    — E por que eu iria querer te trazer para cá?

    — Você tá dizendo que quer voltar pra casa, mas suas ações dizem o contrário. — Marcel suspirou para explicar. — Com certeza você não sabia disso, mas antes do domínio sair do meu corpo, eu me olhei no espelho. Vi uns reflexos de chamas brancas nos meus olhos naquela hora, num sol desses é difícil notar, mas não tinha nenhuma luz dessas nos olhos da Senhora Aldous e tem nos seus até agora.

    — Mas eu… — Agatha tentava falar, mas uma dificuldade ofegante a deixara completamente calada, evidenciando que não sabia por que, naquele momento, estava se aproximando dele.

    — Isso, parece que a gente encontrou alguém que está sob controle… — disse Marcel já segurando no braço dela. — Eu não vou deixar você me matar, então vamos ver o que seu chefe vai achar de…

    O empurrão que Agatha deu nele o jogou ao chão com tanta força que mal conseguiu acreditar que ela era tão forte. Ao se levantar, foi pego pelos pulsos e empurrado em direção à beira, demonstrando algo que não esperava, que junto ao controle havia um ganho de força física grande o suficiente para fazer aquela mulher vencê-lo em força.

    — Que merda, Agatha, você estava falando agora a pouco, está me ouvindo? — Ele olhou para trás e viu que estava a poucos metros do penhasco que levava para o mar; se caísse todos aqueles metros não haveria como sobreviver. Mesmo quando tentava se soltar dela ou caía no chão, ela conseguia segurá-lo e voltar a empurrar, numa luta que ele não tinha chances de vencer. — Eu sei que você está me ouvindo, já que você sabe mais que eu, você deveria saber algo sobre como resistir… — Não adiantou, dessa vez, caiu já numa beira tão inclinada que teve que se segurar na grama para não rolar em direção à queda. Assim que Agatha se abaixou para terminar de jogá-lo, foi interrompida.

    — Com licença. — Fora dito por alguém que cutucou o ombro de Agatha por trás, fazendo Marcel perceber ser Noah Ixion, que devia tê-los seguido. — Olha, eu recomendo a vocês não ficarem de pegação aqui, sei que a paisagem é muito linda, mas é perigoso. As pessoas costumam não prestar muita atenção, principalmente quando chegam na segunda fase da pegação.

    Ignorando Noah, de repente Agatha empurrou Marcel, que gritou assim que as mãos dela se soltaram das dele, mas, instantaneamente, Noah conseguiu, sem esforço, segurá-lo e puxá-lo de volta, jogando-o ao chão numa área firme.

    — Nossa, o que ele fez para te deixar tão brava? — A Noah (estava com roupas femininas) falou para Agatha como se fossem amigas. — Agora fiquei curiosa sobre isso, tipo, para você querer matá-lo, o que ele fez? Te traiu com o seu cachorro?

    De repente, Agatha tentou segurar Noah para empurrá-la, mas, surpreendentemente, no instante seguinte era Noah que segurava os pulsos de Agatha, pois era ainda mais forte que ela, não parecia fazer nem o mínimo esforço.

    — Mais cuidado, as pessoas não costumam tocar em mim. Sou eu que toco nas pessoas. — Soltou os pulsos da Agatha. — Mas acho que sei o que houve, você deve ter ficado com ciúmes do Marcel comigo. Mas não se preocupe, ele nunca quis nada comigo, o que me fez me jogar nos braços de outra pessoa: a gótica rabuda dos sonhos de qualquer pessoa. Ei, por que você não fala nada? — Beliscou a bochecha de Agatha.

    Agatha tentou de novo segurar Noah para empurrá-la do penhasco, porém, mais uma vez, assim que Marcel se deu conta, Noah já estava segurando forte os pulsos dela.

    — É, parece que você não tem jeito, quando rola traição não tem como resolver no diálogo. — Com um empurrão, Noah jogou Agatha de cima do penhasco. — Nossa, caiu que nem bosta.

    — Não! — gritou Marcel correndo para o penhasco, chegando a tempo de ver Agatha muitos metros abaixo, colidindo com as pedras erguidas acima do mar e depois o sangue sendo levado pelas águas. Ofegou, tentando assimilar o que tinha acontecido e olhou devagar para Noah, com toda a raiva que poderia sentir naquele momento. — Você a matou…

    — Ela não quis colaborar. — Noah fingia estar olhando as unhas, o que era impossível, por estar usando luvas de seda.

    — Ela estava sendo controlada… não tinha culpa… não queria fazer aquilo!

    — Ah, me desculpe, eu devia ter deixado você morrer. — Noah fingiu que se importava. — Acabei pensando que ela fosse a assassina de bibliotecários.

    Era por isso que todos da cidade odiavam Noah Ixion.

    Noah, em seu pleno tédio, talhava um lápis que encontrara na casa de Marcel com um lindo canivete banhado em paládio. Logo a lâmina se soltou da madeira e acertou o seu dedo. Tirou as luvas o mais rápido possível e chupou o corte. Esfregou devagar as luvas de couro branco no rosto, sentia o cheiro hipnotizante do seu sangue, era diferente do das outras pessoas, era um aroma perfeito que não encontrava em nenhum outro lugar. Olhou para o grande espelho oval na parede ao longe, vendo no seu reflexo que sua pele lisa e branca como leite estava manchada de sangue das luvas. Tirou um lenço branco do bolso do terno e limpou cada sinal de vermelho. Logo levantou o lenço pela ponta na frente da lâmpada. O sangue parecia brilhar enquanto se dispersava, cobrindo o puro branco de forma hipnotizante aos seus olhos. Aquela cor o deixava angustiado, isso o fazia apreciá-la sempre que via, pois poucas coisas conseguiam produzir nele sensações ruins.

    Marcel estava sentado em sua grande mesa de madeira talhada, tentando ler; jogava sempre o livro no chão após em média 10 minutos de leitura e corria para as prateleiras para procurar outro. Repetiu o padrão por muito tempo, nada conseguia satisfazê-lo em meio ao seu nervosismo, causado pelo assassinato da moça, que Noah tinha jogado do penhasco.

    Noah se levantou, calado, e foi em direção ao piano de cauda, apertando as teclas uma a uma. Nunca entendera aquelas 88 teclas, até Marcel ensiná-lo a tocar pouco tempo antes.

    — Noah, por favor, me desculpe… me desculpe por ter

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