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Túmulos de Fogo
Túmulos de Fogo
Túmulos de Fogo
E-book371 páginas4 horas

Túmulos de Fogo

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Sobre este e-book

É viciante, mantém você sob tensão o tempo todo e tem um final impactante

O que acontece quando as chamas do passado assolam o presente?
Stacy, uma romancista de prestígio, nunca chegou a imaginar que a sua vida entraria em colapso após as investigações iniciadas para o seu próximo romance.
O forense Alós, por sua vez, acredita que as casualidades não existem, ainda menos quando várias famílias perdem a vida sob o pasto das chamas. Acompanhado por um dos forenses mais prestigiosos da Grande Maçã e um detetive vindo da capital, começam uma investigação complicada na que enfrentam uma mente impiedosa, um ser distorcido que não cessará até culminar a sua grande obra.
Verdades escondidas sob segredos inconfessáveis, entre os cidadãos de um povoado aterrorizado, onde qualquer um pode ser o assassino.
Você se atreve a conhecer o que se esconde atrás das muralhas medievais de Besalú?
Túmulos de Fogo, um romance onde o suspense está servido e onde qualquer detalhe conta.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jun. de 2019
ISBN9781547591237
Túmulos de Fogo

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    Pré-visualização do livro

    Túmulos de Fogo - Aeryn Anders

    «O orgullo daqueles que não

    podem edificar é destruir.»

    ALEJANDRO DUMAS

    (1802-1870) Escritor francês

    «Quem não castiga o mal,

    ordena que se faça.»

    LEONARDO DA VINCI

    (1452-1519) Pintor, escultor e inventor italiano

    «O mundo não está em perigo

    pelas más pessoas, senão que

    por aquelas que permitem

    a maldade.»

    ALBERT EINSTEIN

    (1879-1955) Cientista alemão

    naturalizado estadunidense

    Para você, que sempre

    será a minha fonte de inspiração.

    Amo você.

    Prólogo

    A harmonia das notas do Prelúdio da Raindrop de Chopin que ressoavam através dos fones de ouvido do iPod inundou de paz cada recanto da sua alma. Estava há semanas sem descansar direito, os altibaixos do seu cérebro lhe provocavam uma cegueira cada vez maior, impedindo o pensamento com a clareza habitual.

    Desde a sua chegada àquelas detestáveis ruas, que compunham o povoado de Besalú, sentiu-se um bicho raro. Provavelmente, cada um dos habitantes do medievo, porque não podia considerá-los do século XXI, foram os culpados pela sua instabilidade mental. Os constantes cochichos e assinalamentos de dedos levaram a ocasionar aquele desassossego em seu interno.

    Quis se revelar ao que, com infinita insistência, o seu cérebro sussurrava uma e outra vez, mas não era capaz de deixar pela metade uma obra divina já iniciada, tinha a responsabilidade de culminá-la.

    Inclinou, sem cessar, o pescoço de um lado ao outro para alongá-lo. Aquele movimento rítmico fazia com que se concentrasse e era primordial fazê-lo. Não podia ficar nada fora do seu controle, se deixasse algo descoberto seria o seu fim.

    Desviou a vista para a direita onde descansava o corpo desnudo do seu amante. Não demorou muito para convencê-lo a sair da asfixia do pequeno povoado, com a desculpa de que ansiava passear pelas concorridas ruas de uma grande cidade. Evitou mostrar o prazer produzido quando ele optou por ir a uma pequena casa de verão que dispunha nos arredores de Barcelona.

    Quando de sua chegada, observou o encanto que emanava de cada tábua de madeira que compunha a casa e o arvoredo que a rodeava, concedendo-lhe privacidade. Aproveitou o estado de sonolência do seu amante, provocado por uma intensa sessão de sexo selvagem e álcool misturado com mais substâncias, para passear pelos arredores. Precisava comprovar que estavam sozinhos naquele pitoresco lugar.

    Regressou à construção e comprovou que ele continuava preso nos braços do Morfeu, e aquilo lhe concedeu o tempo que precisava para checar cada rincão da cabana campestre. Não se tratava de uma residência para moradia, sua função mais parecia uma choça de equipamentos, mas o dono destinou uma parte dela para construir uma cozinha, um dormitório e um banheiro. Deduziu que o fez com a intenção de dispor um lugar onde ser infiel à sua esposa.

    Fechou os olhos ao passar a mão pela parede repleta de ferramentas no interior do que supôs era o armazém. A conexão que sentiu com cada uma delas fez com que alcançasse um estado de excitação que nem o próprio dono da casa havia conseguido.

    Com passos curtos se aproximou até o centro do cômodo, percorreu com as polpas dos dedos a superfície irregular de madeira. O primeiro flash chegou de imediato, e se obrigou a conter o gemido prazenteiro que a sua garganta desejava liberar.

    Sobre a mesa jazia tombado desnudo o seu amante. Havia se encarregado do seu traslado desde o quarto até a superfície de madeira. Arrastá-lo até a sala não supôs nenhum esforço, porque sabia com o que se depararia uma vez estivesse no lugar correto.

    Examinou a anatomia com o entusiasmo do que em breve aconteceria. Queria comprovar se as pesquisas sobre o priapismo post mortem eram verdade ou apenas uma lenda urbana. Posicionou a mão aberta no início da perna e começou um ascenso rítmico até alcançar a virilha. Flanqueou primeiro o dedo mindinho para depois acompanhá-lo com os demais até agarrar por completo a pica. O músculo começou a mostrar os primeiros sintomas de vida ante as suas carícias.

    Não havia urgência em regressar a Besalú, podia se conceder todo o tempo necessário para culminar o ato sem pressa, não necessitava precipitar as coisas quando podia saboreá-las uma última vez antes de voltar. Apoiou o pé na barra transversal que dava estabilidade à mesa, tomou impulso até se colocar de costas em cima dele, visto que se encantava com aquela posição em que ambos eram dominados ao mesmo tempo. Segurou seus tornozelos com as mãos para começar uma cavalgada que iniciaria o prelúdio de todo o demais.

    Quando estava de pé no chão, secou o suor da testa causado pelo exercício realizado. Olhou o rosto do seu amante, continuava com as feições relaxadas, e sua aura exibia aquele estado de paz que só os mortos são capazes de revelar.

    Conectou o iPod no alto-falante portátil, a habilidade de Chopin envolveu a sala imediatamente. Concedeu-se um tempo antes de continuar com o corpo do seu amante.

    Perambulou de um lado a outro frente à parede que acolhia as ferramentas as quais, certamente, ele usava tanto no campo quanto para manter a construção em perfeitas condições. Pegou uma serra de tamanho médio antes de regressar junto a ele. Não demorou, seu ímpeto pelo sangue crescia a passos agigantados. Situou a serra em uma das orelhas e ao ritmo de Chopin a cortou. Repetiu o processo com a outra. Passou o dorso da mão pelo rosto para eliminar as gotas de sangue que haviam salpicado no processo de corte.

    Olhou a ferramenta manchada, com ela não podia separar o resto dos membros do tronco,  precisava de algo com mais resistência. Voltou a centrar a atenção na parede que acolhia as ferramentas, uma serra mecânica captou a sua atenção. Ainda que levasse o seu tempo, com ela se poderia rasgar os ossos.  

    Passeou as polpas dos dedos com premeditada parcimônia pelos seus braços, impregnando-os com o sangue que ele derramava até alcançar os lábios, pegou a ponta da língua e a saboreou como o melhor dos manjares. Era a primeira vez que se atrevia a fazer algo assim, até então os seus experimentos não haviam sido tão sumamente esmerados, ainda que em um princípio tenha acreditado que sim. Em geral, não dispunha do tempo nem da solidão que o seu amante havia oferecido com aquela viagem, por isso se contentava com o fogo.

    Analisou a sua obra divina e descobriu que só faltava um detalhe para finalizar. Estudou as maneiras de extrair os olhos das órbitas para deixá-las vazias, só de pensar a sua pele se eriçou.

    —O que está fazendo aqui em vez de estar na cama?

    Saiu do devaneio ao escutá-lo às suas costas. Virou o rosto para observá-lo de longe. Mostrou um sorriso ladino como resposta enquanto encurtava a distância.

    1

    Dois anos atrás

    Joan chegou à cidade depois do meio-dia junto ao seu fiel amigo Neo, um poodle anão branco que resgatou de uma morte certa, justamente nos meses em que acontecia a sua desgraça particular.

    Restavam algo mais de duas horas para que tivesse lugar o seu encontro com Stacy, no aeroporto. Mantinham contato via e-mail desde que ela partiu da cidade para fazer a sua nova turnê, embora isso não a tenha impedido de investigar junto a ele os casos de incêndio que assolaram duas residências da cidade, deixando cinco cadáveres em sua passagem.

    Acessou o pequeno escritório que instalou na residência, ainda que a grande maioria da investigação se encontrasse em segurança no cofre da casa de madeira. Parou frente à lousa e analisou os dados ali anotados.

    Deixou-se convencer pela loucura de Stacy, sabia que não tinha nem pé nem cabeça a linha de investigação que ela havia traçado meses atrás, mas ver o declínio em que a sua vida estava se transformando foi o suficiente para se somar à causa. Dizia que, pelo menos, as horas que dedicasse a alguns casos inexistentes o privariam de pensar na miséria em que a sua existência havia se transformado.

    Centrou a sua atenção no último incêndio ocorrido no mês de junho daquele mesmo ano. Algo nos dados chamou a sua atenção.

    -Devo tê-lo anotado errado -disse em voz alta, enquanto regressava à escrivaninha para encontrar a cópia do arquivo.

    Procurou as horas de ligação para a emergência e ficou surpreso ao descobrir que não havia copiado errado, que os dados eram exatos.

    -Não pode ser -comentou e releu de novo o relatório-. Como nos aconteceu isto?

    Abandonou a casa sem se dar ao trabalho de apagar as luzes, devia informar imediatamente ao detetive Bassa. Era primordial que conhecesse o novo dado descoberto já que, com sorte, poderia pressionar o seu superior para reabrir os casos.

    De caminho à delegacia de Olot, marcou o número da sua companheira de investigação, intuía que àquelas horas o avião sulcaria o céu, mas deduziu que escutaria a mensagem assim que aterrissasse.

    -Stacy, encontrei algo que nos passou despercebido. Acho que sei por onde temos que começar.

    Ativou a luz alta do carro para ter uma melhor visibilidade, aquele tramo da estrada estava às escuras e era comum que atravessasse algum animal selvagem.

    Não o viu chegar, apenas sentiu o golpe que o deslocou da pista direto à grande árvore que o obrigou a manobrar com urgência. A última coisa que escutou antes de desfalecer foi o intenso zumbido do seu carro provocado pela pressão que exercia a sua cabeça sobre o volante.

    2

    Dois anos atrás

    A umidade do porão se percebia ao abrir a porta. Ignorou o cheiro forte que provocavam as manchas de umidade espalhadas ao longo do cômodo. Desceu a escada e fechou a porta atrás de si. A escuridão se desvaneceu quando acionou o interruptor da luz e inundou a sala com uma esbranquiçada iluminação artificial.

    Observou o seu laboratório improvisado, encantava-se por passar as horas naquele lúgubre lugar. Aqueles momentos de criação lhe davam o poder sobre as vítimas quando atuava. Vê-las suplicar era tão prazenteiro que por momentos sentia que alcançava o nirvana.

    Percorreu com as polpas dos dedos o frio metal da mesa situada no meio da sala. Observou à sua passagem a ampla variedade de instrumentos que mais usava; frasco lavador, autoclave, frasco de Wolf, frasco de Erlenmeyer, copos de precipitação, inclusive tocou o aparelho de Kipp e a cuba hidropneumática, o restante estava distribuído pelas estantes situadas nas paredes.

    Pegou o jaleco branco que pendia do gancho da parede esquerda e se dispôs a criar o paralizante nervoso que utilizava. Pensou que não teria que estar no porão, mas as recentes investigações fizeram com que agisse de maneira precipitada. Era isso ou em breve pisariam nos seus calcanhares, coisa que não poderia permitir, pois a sua obra-prima não estava finalizada e precisava de mais tempo para culminá-la.

    Sem pressa mas, sem pausa, criou a substância com a que se dada tão bem. Custou-lhe anos aperfeiçoá-la e isso fez com que se atrasasse a sua colocação em cena, mas no final o conseguiu. Fazia anos que havia planejado a ópera maior e sabia que, uma vez culminada, todo o mundo conheceria a sua obra divina. Trabalhou toda a manhã e parte da tarde com os sentidos em alerta, não desejava que ninguém mais conhecesse o seu segredo. Era a sua criação e até que estivesse finalizada não daria as caras. Fechou a porta do porão com chave, antes de subir ao dormitório. Observou o corpo que, ainda dormindo jazia na cama, antes de se adentrar no closet.

    Com o seu habitual traje preto, desceu a escada até que chegou à garagem. Entrou no Sedan preto e dirigiu pelas ruas de Besalú até o seu destino. A fachada marrom se projetou em seu campo de visão ao fazer a última curva que saía da urbanização. A residência da família, situada na entrada do bosque, era o seu destino. Dentro, certamente encontraria as suas próximas vítimas com os preparativos do jantar de Natal.

    Desceu do veículo paulatinamente, não desejava que o frasco que levava no bolso do casaco se quebrasse, sem ele não poderia executar o seu plano perfeito. A passo pesaroso, devido à camada de neve que escondia a calçada, avançou até alcançar a porta de madeira adornada com uma filigrana artesanal de motivo natalino. Tocou a campainha e esperou que a abrissem.

    A senhora Santaella ampliou um grande sorriso ao ver quem a visitava naquele dia tão familiar.

    -Que alegria em ver você! Feliz Natal! -expressou sem parar de sorrir.

    -Feliz Natal, senhora Santaella! -retrucou com educação.

    -Deixe as formalidades, já nos conhecemos há muitos anos. Venha, entre pois está fazendo muito frio na rua -no patamar, cumprimentou a senhora com dois beijos-. Pensava que você estava fora da cidade.

    -Decidi passar as férias em família.

    A senhora Santaella guiou a visita pela residência até chegar à cozinha, onde uma lareira a lenha esquentava o ambiente.

    -É uma grande notícia, não há nada melhor nestas datas que desfrutá-las com os seus entes queridos.

    -Stacy está em casa? -perguntou.

    -Não. Ligou esta manhã para confirmar que no final das contas não pode adiar a turnê e retornar a tempo.

    -Uma lástima, tenho vontade vê-la -já se levantando da cadeira para ir embora-. Eu a deixo continuar com o jantar.

    -Espere que eu sirva algo para beber. Eduard ficará feliz em ver você.

    Leonor se aproximou da geladeira e tirou o habitual ponche sem álcool que preparava todo Natal. Dispôs três copos na bandeja e os acompanhou com os típicos doces natalinos.

    -Leonor, você pode vir um momento? -escutaram gritar o senhor Santaella desde o outro cômodo da residência.

    -Deslculpe-me, volto em seguida -Leonor se desculpou.

    Esperou alguns instantes antes de pegar o frasco que continha a substância que os deixaria imobilizados. Distribuiu o conteúdo entre os três copos e guardou de novo o recipiente no bolso. Olhou as suas mãos enluvadas e sorriu expectante ante os acontecimentos que teriam lugar em breve.

    A senhora Leonor regressou à cozinha com o seu sorriso perene, recolheu a bandeja e insistiu para que a acompanhasse até a sala. Ao acessar se surpreendeu quando não viu o resto dos habitantes. Cumprimentou o cabeça da família antes de tomar assento frente a eles.

    Brindou com os anfitriões e levou o copo aos lábios, demorou um pouco até que se certificou de que eles haviam ingerido o ponche.

    -Onde está Arian? -perguntou à senhora Santaella.

    Leonor balançou a cabeça com um gesto de negação.

    -Passará as festas com o seu pai. Estariam no povoado, mas Jair teve um problema no trabalho e ligou faz dois dias para comunicar que tampouco viria.

    Quis responder, mas o som do vidro quando se quebra fez com que ampliasse o sorriso, o líquido havia feito efeito. Olhou para os senhores Santaella enquanto se levantava do assento e deixava o copo intacto em cima da mesa.

    -Eduard, meu bem, não posso mexer o braço -disse Leonor, alarmada.

    Seu marido tentou se levantar, ainda que o único que conseguiu foi se espatifar no chão.

    Sem prestar atenção ao socorro que solicitava o casal, ligou a televisão e aumentou o volume para paliar os gritos, embora duvidasse que alguém os escutasse, pois os vizinhos mais próximos estavam fora da cidade. Sem tempo a perder, saiu da casa e voltou com duas latas de gasolina para aspergir tudo em seu caminho.

    - Por que está fazendo isso? Nós consideramos você parte da família. -soluçou Leonor, angustiada.

    Olhou-os com o desprezo e o ódio acumulados ao longo dos anos.

    -A culpa é da sua queridíssima filha. Se não metesse o nariz onde não é chamada, isso não aconteceria.

    -Não entendo, a minha filha aprecia tanto você. O que ela fez para que se comporte assim?

    -Investigar os incêndios que assolaram a cidade, não posso permitir que me capturem antes de terminar a minha obra-prima.

    -Você?! -afirmou Leonor, perplexa.

    Ignorou a mulher e terminou de impregnar a residência com o carburante. No meio da sala, observou o seu labor, não era um trabalho tão esmerado como os demais, no entanto o tempo compelia. Acendeu o isqueiro e o encostou na cortina embebida em combustível do quarto principal; não tardaram em aparecer as primeiras chamas. Repetiu o processo por toda a residência, precisava avivar o fogo para que assolasse a casa em questão de minutos. Certificando-se de que todos os cômodos ardiam, voltou para a sala já coberta pela densa fumaça. Cobriu o nariz e repetiu o mesmo processo. Na entrada da casa, vislumbrou com fascinação como o fogo começava a arrasar com tudo em seu caminho. Era questão de minutos que a língua de fogo alcançasse os dois corpos inertes no meio da sala. Não foi embora até se assegurar de que restavam escassos centímetros para isso.

    Entrou no veículo e se afastou do terreno dos Santaella. Observou pelo espelho retrovisor como a residência era envolvida por uma luz alaranjada e uma fumaceira negra que subia até o céu.

    -Feliz Natal, querida Stacy! -murmurou ao tomar a curva que dava acesso à residência da família e ver quem chegava.

    Sob o jorro de água, despojou-se do cheiro de fumaça e gasolina. Esfregou com veemência cada rincão de sua anatomia antes de fechar a torneira. Demorou um pouco para completar a tarefa de se vestir e estar apresentável para o seu próximo encontro. Era de vital importância que ninguém suspeitasse de nada e isso sabia controlava muito bem. Havia passado toda uma vida aprendendo a empatizar com os vizinhos, assim seria mais que impossível que alguém pudesse apontar com o dedo em sua direção.

    Olhou o reflexo que devolvia o espelho colocado em cima da pia e gostou do que observou. Como todos os dias estava impecável, a sua fachada de habitante ideal não tinha como ser derrubada.

    Chegou ao restaurante mais tarde que o combinado, mas devia atalhar os imprevistos no seu dia a dia para que não fossem um estorvo. Sorriu de maneira superficial para o maître encarregado de receber os clientes. Com o índice indicou a mesa onde esperavam a sua chegada, o homem assentiu e se fez de acompanhante à sua mesa de reunião.

    -Está chegando tarde -mencionou sobre o horário sem se dar ao trabalho de levantar da cadeira.

    Tirou o casaco e se sentou frente a ele.

    -Um imprevisto de última hora, sinto pelo atraso.

    Sua companhia assentiu ante a resposta, conhecia o enorme fardo que suportava, mas também estava cansado de pedir para que relaxasse, de dizer que a vida só concedia um espaço de tempo e era preciso saber como tirar o máximo proveito dela.

    -Ainda que não acredite, desfruto de cada minuto do meu trabalho. Não poderia fazer algo mais gratificante.

    Não soube ler nas entrelinhas a mensagem lançada no ar.

    Entreolharam-se quando os seus telefones começaram a tocar em uníssono, interrompendo assim a celebração da noitada.

    3

    Dois anos atrás

    O caminho arenoso que naquele momento estava coberto por uma camada de neve, dava acesso à residência unifamiliar a que se dirigia. De sua posição, o detetive Bassa visualizou o arvoredo que se projetava frente a ele. Sempre havia se perguntado como era possível que a família Santaella vivesse longe da civilização. Não residiam em uma cidade grande, mas Besalú tinha os seus habitantes. Ainda que a família, desde que se estabeleceram três gerações atrás, tenha residido à entrada do bosque.

    Estacionou o carro alguns poucos metros antes de chegar. Desde aquela posição podia observar detalhadamente a cena antes de entrar no caos que havia no centro da residência.  

    Os policiais perambulavam de um lado para outro à espera de que o corpo de bombeiros terminasse de extinguir o fogo que devastava parte da residência e seus arredores.

    Acompanhado de seu charuto e seu inseparável livreto, saiu do veículo. O charuto, quase acabado, repousava nos lábios do detetive, precisava das mãos livres para anotar as primeiras impressões do suposto caso que o tirou da cama no meio da noite. Mal fazia uma hora que o forense, Jaume Alós, havia ligado para informá-lo, embora o aviso oficial o tivesse recebido da mão de um dos seus inspetores.

    Visualizou a área, o remoto lugar era o cenário ideal para cometer um crime, mas a sua intuição e, acima de tudo, os seus anos de carreira o advertiram de que naquela noite não se encontrava ante um homicídio, mas sim ante uma má ação por parte dos habitantes.

    A residência, escondida em sua grande maioria por árvores, encontrava-se quase calcinada por completo. A fachada principal, enegrecida, permanecia precariamente em pé junto a uma ou outra parede do interior; do resto ficaram somente os pilares com ferros retorcidos.

    Pegou a lanterna no porta-luvas do carro, estava interessado em verificar as marcas de pneus que rodaram pela estrada naquela noite, porque dava por certo que as demais seriam as do veículo do senhor Santaella, uma vez que os demais familiares estavam fora da cidade. Era coisa de pequenos povoados, o fato de alguém estar a par do que fazia cada vizinho.

    Com passos curtos e se alumbrando pelo pequeno feixe de luz, percorreu os mais de dois metros de largura da estrada. Ao finalizar, contabilizou dez desenhos de rodas diferentes. Olhou para frente, onde os veículos estavam estacionados, e registrou um total de oito carros.

    Levantou a mão ao identificar um dos seus inspetores que naquele momento abandonava o lugar da ocorrência.

    -Boa noite, detetive -Salcedo saudou ao chegar à altura do seu superior.

    Bassa percebeu como o seu subordinado olhava com estupor o pequeno livreto que segurava nas mãos. Não deu importância, ele não era amigo das novas tecnologias. Desde o momento em que as instalaram na delegacia, ele se queixou a seus superiores. Era dos que opinavam que a informática atrasava mais que adiantava. Desde os seus inícios, havia resolvido centenas de casos acompanhado apenas por sua capacidade de observação e seu pequeno livreto.

    Iria formular a típica pergunta sobre se o casal Santaella havia recebido visita nas horas prévias ao incêndio, mas um dos veículos captou a sua atenção. Até aquele momento não havia reparado nele; o adesivo vermelho na parte traseira do veículo deixava saber que não pertencia a nenhum veículo oficial.

    -De quem é esse carro? -perguntou, assinalando o pequeno Clio branco.

    Salcedo girou a cabeça para ver o que indicava o seu chefe, e assentiu ao reconhecer o veículo.

    -Da senhorita Aina Llach.

    Bassa arqueou a sobrancelha intrigado, não compreendia por que a irmã de Naira estava na casa dos Santaella quando se supunha que acompanhava a filha do casal em sua nova turnê.

    -O que faz aqui?

    -Veio trazer a senhora Stacy, mas ao chegar verificaram que o incêndio já arrasava a residência; foi ela quem ligou para a emergência.

    -Que estranho -comentou, movendo o charuto com os lábios.

    Salcedo desviou de novo a vista ao seu chefe.

    -O que o senhor acha estranho?

    Não fazia mais de dois dias que o doutor Ripoll havia falado com ele para comunicar que tiraria umas pequenas férias e também para informar que nenhum membro da família estaria na cidade. Bassa se deslocou com aquilo, ao se certificar de que havia mentido.

    -Nada -comentou, sem deixar de observar o carro-. Você falou com ela?

    -Não, e tampouco acho que possamos fazê-lo até dentro de alguns dias -ao ver a curiosidade com que se focava o seu chefe, explicou-. Pelo que declarou a senhorita Llach, a senhora Santaella se lançou do carro antes de que freasse e tentou, sem êxito, entrar na casa. As consequências de sua imprudência foram queimaduras de primeiro grau em metade do corpo e, pelo que disseram os médicos, está em coma. Faz uns cinco minutos que a trasladaram para o hospital.

    Bassa assentiu, a caminho do lugar da ocorrência havia topado com uma ambulância. Naquele momento sabia que a velocidade e as sirenes se deviam a que filha dos Santaella estava dentro e, muito provavelmente, debatendo-se entre a vida e a morte.

    -A senhorita Llach disse algo mais?

    Salcedo tirou seu Smartphone no qual havia anotado a declaração da única testemunha. Deslizou o índice algumas vezes pela tela até encontrar os dados que procurava.

    -Que nenhuma das duas comunicou a sua chegada à cidade; queriam fazer surpresa às suas famílias, embora imagino que a surpresa foram elas que levaram, sobretudo a senhora Santaella.

    A declaração da senhorita Llach parecia bastante coerente para Bassa. O que não tinha coerência alguma era que, supostamente, nenhum membro da família deveria estar na cidade naquela noite, ainda que não tenha dado maior importância, já que conhecia de primeira mão os problemas que existiam na família Ripoll-Santaella.

    -Os bombeiros deram algum parecer?

    Seu subordinado voltou a trebelhar na bugiganga do inferno, como ele o chamava. Demoraria menos para encontrar a informação se utilizasse um livreto de toda a vida e não aquele traste inservível que a toda hora tinha que ser conectado à energia para não ficar sem bateria

    -Até o momento, o relatório oficial não está pronto, mas os primeiros indícios sugerem que nos encontramos frente a um erro humano.

    Bassa tinha a mesma opinião mas, tal e como o protocolo mandava, pediu:

    -Diga aos da perícia que fotografem as marcas de pneus desta área do caminho e as rodas dos veículos estacionados aqui antes de deixá-los sair, e quando

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