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Reflexos
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E-book457 páginas7 horas

Reflexos

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Sobre este e-book

Uma vila no Norte da Escandinávia é assolada por uma misteriosa doença psíquica que causa o desaparecimento do verdadeiro reflexo dos doentes e inflige uma vaga de suicídios sem precedentes. Niklas, um jornalista local, inicia uma reportagem sobre o assunto, até também ser internado no hospital psiquiátrico com centenas de outros habitantes da vila. A reportagem e os diálogos entre os pacientes tornam-se sombrios e profundos, transportando o leitor para complexas reflexões metafísicas sobre o ser, a vida, a fé, as possibilidades e a morte – a derradeira e mais autêntica das possibilidades do Homem, como Heidegger escreveu. E, quando a esperança entre os pacientes se começa a extinguir, eis que surge uma criança que afirma conhecer a causa da doença e que a explicação lhes será dada no final de uma viagem aos confins da Escandinávia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de abr. de 2023
ISBN9791222088068
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    Reflexos - Nuno Berberan

    Capítulo 1

    Os sinos da igreja ecoavam pelos campos gélidos de Mariedal, lembrando aos homens e mulheres de Yttersund a finitude da existência humana, algo que muitos pareciam ignorar ou fingir esquecer nos tempos modernos que corriam. Os muitos presentes que se encontravam naquela manhã de janeiro permaneciam em silêncio junto à entrada da igreja. Corpos imóveis, mãos descaídas à frente da cintura, prestando uma última homenagem a Karl Lund, que em breve seria enterrado numa campa junto à igreja de Mariedal. Havia faces sem expressão, com os olhos molhados e saudosos, que seguiam instintivamente o ritual sagrado de que não se recordavam ter aprendido, mas ainda assim, inexplicavelmente, sabiam como posicionar cada membro do corpo e que palavras proferir perante as circunstâncias. Mas talvez fosse este um dos conhecimentos a priori que filósofos tanto têm discutido; talvez o ritual e a rotina do último adeus a uma vida se situem algures nas profundezas da alma, independentemente da crença ou da fé, e assim expliquem o facto de o Homem ser o único ser vivo que, para o bem e para o mal, tem consciência da sua finitude. E é a consciência desta finitude, a consciência de que existe um fim pendurado algures no caminho, que faz homens e mulheres andarem de relógio.

    Através daquela parede de silêncio, e por baixo do céu azul daquela tarde fria e soalheira de janeiro, o caixão deixava a igreja e avançava pelo inverno adentro em direção ao destino final, para o pó da terra de onde veio, como foi escrito num dia longínquo, levado sob os ombros de quatro estranhos cujo ofício lúgubre era levar a morte às costas, no sentido literal e figurado. O caixão ia balanceando ao ritmo dos pés decididos que se enterravam na neve deixada pela noite anterior, ziguezagueando pelo jardim das tabuletas até à lápide resguardada pelos braços de um salgueiro despido, junto ao qual Karl Lund descansaria para a eternidade.

    Alguns metros mais atrás, em passos lentos e cuidadosos sobre o manto branco, seguia o padre, segurando o livro mais lido de sempre – ainda que isso não o fizesse mais verdadeiro do que os livros que ainda não chegaram a ser escritos. Por detrás dos óculos com haste negra corroída pelos anos, aqueles dois olhos viam o mundo de acordo com as fábulas inexplicáveis e surreais escritas num tempo em que a fé era o racional e o conhecimento do mundo cabia na palma da mão. E era assim que Anders-Peter aceitava o dia-a-dia, motivado por servir algo que transcendia o Universo, e ainda assim era olvidado e ignorado pela maioria da população de Yttersund, que desde os anos setenta pouco era dada a espiritualidades. Contudo, aquele homem de quase sessenta anos acreditava piedosamente e inquestionavelmente, e certamente com um certo conformismo que nunca havia confessado, que naquelas páginas estava estampado o sentido da vida, toda a ética e a moral e, acima de tudo, a motivação que o fazia acordar todas as manhãs com um sentido de dever. E foi a pensar na missa da tarde que se aproximou em passos solenes daquela caixa de madeira que em breve se iria unir com o tal pó da terra, e predicou as derradeiras palavras da cerimónia, as últimas palavras que aquele corpo escutaria.

    Enquanto os quatro homens desciam lentamente o caixão à cova previamente escavada, Anders-Peter aguardava pelos presentes que iam chegando em passos comedidos, os mais idosos aparando o corpo nos mais novos, os mais novos secando as lágrimas nos mais velhos. Homens, mulheres e crianças vinham vestidos de preto dos pés à cabeça, pois assim mandava a tradição criada no tempo dos Romanos; e séculos mais tarde haveria alguém de atribuir o azul à tristeza, talvez apenas para afirmar que, para choque de muitos, morte e tristeza não andavam necessariamente de mãos dadas. Mas esse não foi o caso entre os presentes na igreja de Mariedal em Yttersund, com os rostos desfigurados pela tristeza e os olhos postos na terra que em breve engoliria para sempre o corpo do jovem Karl. No meio desses rostos, encontrava-se Anna, irmã do falecido, envolta numa aura melancólica e saudosa. Instintivamente, Anna retirou o gorro que lhe cobria os longos cabelos claros e ondulados, e do bolso do casaco escuro puxou um papel dobrado que continha um curto discurso de despedida que preparara para a ocasião. Os restantes presentes tiraram os gorros e capuchos que lhes cobriam as cabeças baixas e viraram o rosto com expectativa para os olhos azuis e determinados de Anna. Quando Karl jazia na campa, os quatro homens colocaram-se do lado direito de Anders-Peter, que teria a última palavra após o discurso de Anna. Os braços da rapariga tremiam, não de nervosismo nem de frio, mas do peso das recordações embutido naquele pedaço de papel que tinha entre mãos. Atirou um olhar para a manhã que crescia dentro de si e que em breve ocuparia o espaço de centenas de outras manhãs invernosas de que se recordava. Olhou em diagonal para o texto que escrevera, de modo a certificar-se de que as palavras não a tinham abandonado, e inspirando uma última vez como que para ganhar força, iniciou o derradeiro discurso:

    Karl. O tempo suspendeu-se num ápice sem nos avisar. Dou comigo na casa dos nossos pais ou no rinque de hóquei a ver-te jogar. Este tempo parado e nostálgico como o dia em que partiste para a tua última viagem. Tão triste como os milhares de recordações que tenho de ti. E sem falar ou escrever, conto para mim própria as histórias que me contaste sobre as tuas aventuras com a tua equipa de hóquei pelo Norte fora, ou os segredos íntimos que me confessaste quando éramos adolescentes. E depois as dúvidas sobre o que te querias tornar, as tuas possibilidades de ser e a ansiedade que delas geminava. E os desesperos insignificantes nas noites em que desejávamos simplesmente desaparecer do mundo sem deixar rasto apenas porque sim. Mas inibo-me de contar seja o que for sobre ti, não porque tenha esgotado todas as tuas recordações, mas porque hoje doem-me as palavras quando te penso. E diante de mim, Karl, vejo aquele velho de cabelos compridos que caminhava pela nossa rua acima e abaixo com a sua gabardine desbotada e que perguntava invariavelmente pelas horas. Oiço-me a mim própria a gritar exaltada o teu nome durante os teus jogos de hóquei. Vejo a senhora do café onde costumavas comprar o teu almoço aos fins-de-semana e que te queria convencer a conheceres a filha dela. E tantas outras fotografias paradas no tempo onde cada rosto se tornou mais triste. Vejo-te nos sítios onde não estás, nos sítios melancólicos sem ti. Como o teu lugar vazio no carro dos nossos pais. Ou o banco de jardim chinês em Nysjön onde chorei no teu ombro quando me separei do meu primeiro namorado. Ou na rua que percorríamos juntos até chegarmos à escola. A rua onde ainda escuto o barulho dos teus passos. Nos nossos sítios, o tempo parou para sempre. Ali ficou um pouco de ti. Irei sentir a tua falta, Karl. Este domingo não vale a pena esperar por ti no nosso café favorito. Hoje não há ninguém à minha frente para ouvir os meus desabafos ou para me fazer rir como só tu sabias. Hoje as lembranças de todos os momentos juntos não são mais do que um instante que não sabe para onde se dirigir. Mas os dias desta vida continuam sem ti e é para eles que caminho sem o meu braço direito junto a mim. E por muitas alegrias que haja nesta jornada, estará sempre a tristeza de te recordar. As tuas imagens passam por mim a mil à hora e abandonam-me sem sequer as poder sentir. Tudo passa por mim e tudo me deixa, menos as tuas recordações. Essas levo-as comigo até ser a minha hora de partir deste mundo. Em cada manhã, haverá um instante dos dias da nossa infância. Em cada tarde, haverá os instantes da nossa adolescência. Em cada noite, os instantes da nossa vida «a sério» como costumavas dizer. Hoje basta olhar dentro de mim para te ver e para ter a esperança de te ver de novo, estejas onde estiveres. Nunca te esquecerei, Karl. Até um dia.

    Anna dobrou o papel com a funérea despedida e reservou-se ao silêncio; nada mais havia a dizer quando o mundo acabava de perder todo o sentido, se é que alguma vez o teve. Nenhum dos presentes ousou quebrar o silêncio ensurdecedor, apenas interrompido pelo soluçar dos corações mais frágeis que haviam ficado mais devastados com o discurso de Anna, e pelo som abafado das lágrimas que caíam na neve rija, correndo de seguida até ao caixão. Anna baixou a cabeça, deu um passo atrás e juntou-se aos demais. Quem a visse surpreender-se-ia com a rigidez do seu rosto, que não revelava qualquer sinal de perturbação com aquelas palavras, como se não tivesse escutado as suas próprias frases e as reações que gerara. Talvez a morte de Karl tivesse assassinado todos os possíveis sentimentos e expressões de Anna, como se a partir daquela manhã tudo o resto se tivesse tornado insignificante perante o corpo dele, que jazia ali diante da irmã pela derradeira vez. Anders-Peter tomou então a palavra, aclarando a garganta, e, alinhando as palavras com que havia decidido finalizar o ritual fúnebre, proclamou numa voz decidida:

    Por mais escuro que o futuro pareça neste momento, lembro-vos de que o Senhor nunca vos abandonará. Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos.

    Em cada pausa dos versículos da carta aos Coríntios, os presentes acenavam instintivamente com a cabeça; não porque estivessem necessariamente a escutar, mas porque no fundo desejavam deixar para trás aquele quadro triste e prosseguir com as suas vidas. E como se Anders-Peter tivesse adivinhado o que ia nos olhos melancólicos e cansados que fitavam algo que já não estava ali, apressou o seu discurso e concluiu a cerimónia com o indispensável Que o Senhor vos abençoe e vos proteja. Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.

    O ritual terminou então para alívio de todas as almas presentes. Abraços, palavras de conforto, despedidas prolongadas, lágrimas e expressões conformadas com o desfecho daquela manhã que marcava o fim de um capítulo de várias vidas; a partir dali virava-se uma página e continuava-se a história. A maioria dos presentes haveria de ir para o minnestunden, outros regressariam aos seus lares, mas, fosse qual fosse o seu destino, o que restava do dia seria dedicado a retirar do baú das memórias quadros detalhados da vida do defunto, a recuperar episódios turvos com a ajuda de outros, a reviver situações caricatas e memoráveis, enfim, a reconstruir o que já não existia e o que poderia ter existido. Haveria ainda tempo para trocar palavras com aquele primo distante que vivia na outra ponta do país, para enterrar o machado de guerra com algum familiar devido a algo que provavelmente não teria a menor importância, para ler um ou outro texto escrito por uma mão cansada na noite anterior, aquecer o corpo com uma chávena de café e uma fatia de bolo feita com a receita de uma qualquer avó, ou de tentar adivinhar macabramente e secretamente quem seria o próximo familiar a perecer, já que naquele dia a morte estava na memória fresca de todos os presentes, relembrando os mais esquecidos da finitude da vida. Vida só há uma, esta e mais nenhuma, haveria alguém de dizer; Aproveita enquanto és jovem, diria um avô ao neto; A vida passa num instante, concluiria alguém após se aperceber da implacabilidade do tempo; A vida não é justa, diria aquele familiar que haveria efetuado uma rápida contabilidade das situações justas e injustas. Dezenas de conclusões existenciais sobre a vida e a passagem do tempo seriam proferidas naquela manhã, umas com um maior grau de veracidade e complexidade, outras fracamente justificadas por argumentos pouco sólidos. Perante a morte, haverá de existir sempre uma seriedade lânguida e uma tendência curiosa para se filosofar sobre a vida, o mundo e um Deus. É uma constante desde o princípio do tempo, esta metamorfose dos cemitérios e igrejas em autênticas ágoras onde se deduz sempre o mesmo acerca da vida, do mundo e de Deus, nunca ninguém se lembrando que aquelas conclusões já foram concluídas anteriormente e serão concluídas também posteriormente, por vezes mais aperfeiçoadas, por vezes menos polidas.

    Anna foi a última a deixar a igreja juntamente com os pais. Retirou-se já passava das quatro horas, deixando para trás a igreja e caminhando silenciosamente em passos decididos de volta à sua bicicleta que a transportaria até casa. Enquanto descia daquela amostra de colina onde se erguia a moderna igreja de Mariedal, lançou um último olhar para o salgueiro despido que dominava a paisagem branca. O vento do Norte ia varrendo as campas e levava consigo as últimas lágrimas e lamentos da manhã. Os sinos que marcavam o fim do ritual cristão ressoaram pelo vale coberto de neve, atravessando o bosque de Härskogen e morrendo no gélido lago Mjörn onde residia Anna. Regressaria em breve a casa, porém sabia que dificilmente encontraria conforto para lidar com a inconformidade da morte, com o final abrupto dos futuros planos que sabia que nunca iriam ser.

    Os dez graus negativos entranharam-se no seu corpo esguio, atravessando-lhe a pele e chegando à alma já de si gelada com a melancolia da situação. Aproximou-se da sua bicicleta, descongelou com um spray o cadeado e enquanto se sentava no selim e ajeitava o capacete na cabeça, atravessou-lhe no corpo a desesperante necessidade de alguém lhe segurar as mãos, não para lhe emprestar o conforto que não admitia precisar, mas para a guiar até um local onde as suas próprias memórias não existissem, um local fora do tempo e do espaço, fora do absurdo que a vida parecia ser naquele momento. Começou a pedalar decidida, atravessando a parede gelada que não parecia ter fim. O ar seco e frio que lhe fustigava a face pálida lembrava-a da sua existência, de que estava viva, ao contrário do seu irmão que havia desistido de viver. Enquanto deslizava pela ciclovia que circundava o bosque Härskogen, tentava compreender a lucidez do seu irmão, ou talvez a ausência dela para ser mais exata. Sobretudo a racionalidade no julgamento de que a vida não valia a pena ou na certeza incerta de que a morte seria não um fim em si, mas um meio para atingir um fim, fosse ele qual fosse. Talvez fosse esse o conforto que vinha de mãos dadas com a morte, pelo menos para os crentes, mas esse não era o seu caso nem o do seu irmão. O conforto não era mais do que o camuflar da morte, porém a dor, essa, seria eterna. Parou de pedalar e deteve-se junto à pequena represa de onde partia uma vasta planície que terminava na muralha de bétulas despidas. Lembrou-se dos tempos em que estudava na universidade e das tardes infinitas de verão em que se sentava sob uma toalha na relva e via o seu irmão jogar brännboll com os amigos. Quem diria que as tardes de outrora, por mais longe que se encontrassem, lhe trariam uma alegria deferida? Noutra vida, pensou. E sorriu. Sorriu com a memória feliz que acabara de a assaltar e à qual se iria agarrar até chegar a casa.

    Entretanto, Anders-Peter recolheu à igreja, apagou os vestígios do ritual fúnebre da manhã e dirigiu-se à sacristia. Despiu a batina, arrumou as bíblias e evangelhos no velho móvel em carvalho e sentou-se exausto no pequeno cadeirão vermelho manchado com nódoas de café. Aquele cansaço tinha uma razão de ser, não tivesse sido num espaço de duas semanas o quarto funeral de alguém que tinha decidido antecipar a morte, algo nunca antes visto por aquelas bandas, nem mesmo nos idos tempos de guerra e fome. Anders-Peter encostou a cabeça ao sofá e fechou ligeiramente os olhos durante uns instantes. Entre as várias imagens que lhe surgiam na mente, retinha-se sobretudo a derradeira imagem dos quatro desafiadores dos planos divinos. Nunca nos trinta e cinco anos em que exerceu a profissão de padre tinha assistido a tal vaga de pecados contra o quinto mandamento. Seria o desejo de morrer ou o medo de viver? Seria que o valor da própria vida havia desvalorizado aos olhos das últimas gerações? Ou talvez fosse a morte que não atemorizava como em tempos idos? Ou talvez a escuridão espiritual em que tantos caminhavam ou a ausência de algo maior do que os prazeres terráqueos? O que é certo é que nunca antes havia questionado as leis gerais e imutáveis do Universo estabelecidas desde o início dos tempos da Criação. Pensou que se todos os eventos deste mundo são pré-concebidos pelo Criador, bem como o propósito de cada existência, e se todos seguirem as leis gerais e imutáveis do Universo e a ordem divina do Universo, então porque havia a sensação de o suicídio ser o único evento que perturbava esta ordem? Anders-Peter não conseguia ver o desistir da vida senão como uma injúria contra o divino e contra a sociedade, como uma ameaça à existência. Em cada um dos quatro funerais, Anders-Peter misturou-se discretamente com amigos e familiares para tentar compreender os argumentos dos falecidos, ainda que previamente e inconscientemente não aceitasse qualquer resultado que proviesse da lógica para desistir da vida. Apesar da diferença de idades entre os quatro e do método escolhido para colocar fim à vida, os sintomas comuns que haviam tido eram a melancolia e a apatia que havia caído sobre eles de um dia para o outro, crescendo e intensificando-se nos dias seguintes e culminando com o ato final. Por muito mais que pensasse e se questionasse, Anders-Peter sabia que não iria chegar a qualquer conclusão sensata e racional naquele fim de manhã e talvez nunca chegasse, porém, o facto de o comissário da polícia de Yttersund lhe ter telefonado para discutir o assunto confidencialmente, logo após o término do funeral de Karl, dava-lhe uma pequena esperança de em breve ter uma luz sobre o assunto. Lançou um olhar através da janela circular no seu lado esquerdo, e os seus olhos detiveram-se no cativante céu estrelado que madrugava como era habitual nesta altura do ano. Ergueu-se e decidiu dar o seu passeio habitual em redor da igreja para lavar a manhã da mente.

    Capítulo 2

    Pela larga janela do escritório da redação do jornal regional em Nygatan no centro de Yttersund, esgueiravam-se os primeiros tímidos raios de sol daquela manhã de inverno, apesar de o relógio colocado acima das fotografias dos colaboradores já marcar dez horas em ponto. Sempre que lançava um olhar ao relógio e debaixo dele avistava as fotografias dos seus colegas jornalistas, Niklas interrogava-se se a colocação dele teria algum significado, questionando a relação entre a sua posição e a das fotografias dos seus colegas. Pensou que talvez quem tivesse colocado o relógio quisesse transmitir que o tempo estava acima de cada um, como se este objeto inventado para medir a duração da existência humana e colocar as memórias em ordem tivesse no fundo algum significado, alguma motivação. Perguntava para si próprio qual o interesse em ter uma ordem irreversível nos quadros pintados por cada um durante a vida se em qualquer momento eles surgem na mente, sem qualquer pré-aviso, sem qualquer lógica. Talvez na memória não haja tempo, respondia Niklas a si próprio, apenas uma coleção desarrumada de ideias. Nunca ninguém lhe havia dado uma explicação convincente para o facto de existirem instantes que são eternidades, e eternidades que são instantes. Como aquele instante, por exemplo, em que pensava como iria escrever a limpo o artigo que tinha no papel amarrotado e borrado de café à sua frente. E quando um fio de pensamento se começou por fim a desenrolar foi interrompido por um colega:

    Tomamos um café? perguntou Simon com um tom esperançoso, uma frase que era tanto um misto de interrogação como afirmação, e sobretudo uma prova da ambiguidade da utilização da linguagem.

    Niklas aceitou o convite sem resistência, não porque estivesse propriamente fatigado com as tarefas laborais, mas porque aquele era um daqueles dias em que a vontade de procrastinar se sobrepunha a qualquer tarefa; vá-se lá saber porquê esta facilidade do Homem em colocar as ações do presente no futuro, às vezes nem isso, como se sabe, enterra as tarefas num canto escuro da memória e aí as deixa para a eternidade. E este era um desses dias.

    Os jornalistas deslocaram-se em passo vagaroso pelo longo corredor envidraçado que era uma imensa janela para as salas de reuniões onde se observavam as interações silenciosas entre indivíduos, vozes que apenas se revelavam através dos movimentos dos seus corpos, separados do mundo por um vidro, dando a sensação de estarem a observar um aquário. Chegaram ao moderno lounge onde estavam as máquinas de café, e uma pequena pentry onde os empregados da redação almoçavam, petiscavam qualquer coisa, ou apenas se sentavam para passar o tempo ou para não deixar que ele passasse. Simon retirou duas chávenas da prateleira e entregou uma a Niklas enquanto carregava no botão para dispensar café. O ruído irritante da máquina propagava-se pela manhã de janeiro que se ia dando a conhecer e entranhava nos pensamentos de ambos que ainda pairavam sobre a monotonia das tarefas laborais.

    Ontem estive num funeral, começou por anunciar Simon o assunto sombrio, esperando uma reação de surpresa de Niklas antes de prosseguir.

    Algum familiar?

    Era como se fosse – foi um dos meus companheiros da equipa de hóquei. Morte por suicídio há coisa de duas semanas. Os olhos de Simon rodaram para baixo e para a direita, como se se esforçasse por invocar as memórias que tinha do seu colega de equipa de nome Karl. Niklas escutava atentamente enquanto levava a quente chávena de café aos lábios.

    A vida é feita de contradições, conjeturou Simon, corrigindo-se de seguida para clarificar a sua hipótese com mais convicção. Ou talvez as contradições se digladiem nas profundezas da alma dos Homens. Nunca registei inclinações suicidas em Karl, antes pelo contrário, sempre me convenci de que ele teria razões adicionais para viver que nós próprios, pois ele era um dos melhores jogadores da equipa e aparentemente tinha um futuro promissor à sua frente pela quantidade de telefonemas que recebia de equipas estrangeiras.

    Presumo que esse Karl de que falas seja o Karl Lund? O Henrik da secção de desporto escreveu há cerca de uns meses um artigo sobre ele, o novo prodígio do hóquei da nossa cidade.

    Esse mesmo. Até certo dia ter sido persuadido de não poder escapar à espiral de dúvidas e questões sobre as suas escolhas perante a fatalidade da vida. A partir daí, cada dia tornou-se um fardo de questões existenciais. Nem eram necessárias palavras para lhe ler o que lhe ia na cabeça, via-se no olhar, no patinar, no manusear do taco, como se, no instante antes de cada gesto, que antes era automático, veloz e decidido, se começasse a interrogar o porquê desse mesmo gesto.

    A dúvida, por não se deixar ver, tortura mais do que a dor.

    Ainda assim, a dúvida é passageira, dando depois lugar à negação, como foi o caso.

    O que aconteceu depois com ele?

    Foi como te disse, depois de tanto duvidar sobre o que se havia tornado, começou a negar-se constantemente, até que um dia nos comunicou que queria abandonar o hóquei no final da época. É o que dá refletir demasiado, por isso não é de admirar que se diga que pensar é a negação da vida.

    Depende da perspetiva do pensador; se deixarmos outros pensarem por nós então aí sim, caímos de nós mesmos para o mundo, para os outros e ausentamo-nos de nós próprios.

    Eu refiro-me que pensar demais nunca foi saudável, é como se imergíssemos em nós mesmos e destruíssemos as relações com os outros e com o mundo.

    A questão é quem destrói quem? O eu ou os outros?

    Karl destruiu-se a ele próprio, era evidente que transbordava de dúvida e tristeza.

    A melancolia faz parte da vida, por isso é que apenas os otimistas cometem suicídio, ou melhor os otimistas que deixam de o ser, ao depararem-se com a brutalidade da existência.

    Simon faz uma pausa para apaziguar a saudade na voz e não deixar transbordar qualquer réstia de tristeza diante dos olhos de Niklas. Qualquer um que entrasse naquele instante poderia ver no ar os tons de cinzento que a conversa deixava a pairar. Simon sentou-se num sofá, bebeu um gole de café e continuou com frases meio feitas, sem continuação:

    Certezas sobre a causa para o derradeiro ato não existem, pelo menos quanto saiba. Dos treinos, primeiro ausentou-se mentalmente e depois fisicamente, pois na última semana em que viveu não treinou connosco. A equipa fez os possíveis para o resgatar, mas sem sucesso. Lembro-me de que um dia, após ter saído da redação, fui até à casa junto ao lago onde ele vivia com a irmã e bati-lhe à porta. Três vezes. Esperei e esperei até escutar alguns passos pesados vindos do interior até à porta. O andar dele. Estacou do outro lado da porta e ali ficou a ouvir a minha lengalenga desesperada: não desistas, coragem, força, se precisares de falar estou aqui, tu deves imaginar; mas nem a porta se abriu nem a boca dele me respondeu. No treino do dia seguinte o treinador comunicou-nos o desfecho trágico.

    Niklas ficou pensativo, como se necessitasse de tempo para imaginar e sentir a tragédia acabada de lhe ser revelada. A curiosidade mórbida pela morte dos outros, tão própria do ser humano, ainda para mais para um jornalista como ele, avivou-lhe a vontade de se inteirar sobre o assunto. Como erroneamente se poderia imaginar, a razão não se limitava ao facto de o tema ser mais interessante do que as parcas notícias do quotidiano previsível e cinzento de Yttersund, como as habituais desordens às sextas e sábados à noite junto dos bares, as invasões de alces ao território urbano, os despistes de camiões carregados de troncos ou de salmão, o crime passional, entre outros, mas porque aquela morte era uma das constituintes da tendência crescente de suicídios na região. A verdade é que, perante a ausência de pormenores e causas dos mesmos no jornal, incapazes de satisfazer a devoradora curiosidade jornalística, Niklas tinha-se adiantado e pesquisado noutras fontes detalhes sobre aquelas mortes voluntárias.

    Um dos casos pertencia a um homem de avançada idade que vivia num lar e que de um dia para o outro decidiu deixar de comer e de beber, e de tomar os remédios, até que acabou por perecer. «Greve de fome acaba em tragédia» havia sido o título da notícia num outro jornal da região, uma tautologia que passou certamente despercebida à esmagadora maioria dos leitores, atraídos pelo conteúdo drástico e mórbido que prometia o rótulo da notícia. Ainda na mesma semana, haviam sido escritas duas outras notícias de suicídios, estes utilizando métodos mais populares tantas vezes demonstrados nas aglomerações urbanas, como um salto para uma linha de comboio e um salto de um viaduto. Curioso o facto, pensou Niklas na altura, de a vida poder apenas começar de uma singela maneira, e de poder terminar numa multitude de desfechos; uns mais graves, outros mais suaves, a maioria por força das circunstâncias naturais que estão fora do alcance do Homem e uma minoria voluntariamente, como se verificava com cada vez maior frequência na região de Yttersund.

    Alheio às gotas de conversas de fundo dos outros colegas que lhe chegavam aos ouvidos, Niklas prestava atenção às imagens que desfilavam dentro si e tentava adivinhar os segredos e as últimas memórias que os recentes suicidas haviam levado consigo para a eternidade, esforçando-se nomeadamente por descortinar uma explicação plausível, ainda que macabra, para o suicídio de Karl. À sua frente, sentado no sofá, Simon parecia adivinhar o que ia na mente de Niklas que fitava o interior da chávena de café vazia.

    Caso estejas interessado no caso de Karl e nos outros três casos de suicídio, sugiro que fales com o padre da igreja de Mariedal. Pelo que ele ontem me contou, foi ele mesmo que celebrou os funerais destes casos.

    Obrigado, telefonarei hoje mesmo.

    Por curiosidade, fiquei a saber que o funeral é a cerimónia religiosa mais popular do Norte, mais ainda do que o batizado ou o casamento, prova de que apenas reparamos nos vivos quando já não o são.

    Pudessem os mortos ter uma última vontade e deixá-los-iam descansar no caixão sem olhares sobre eles. Toda a vida rodeados por outros, pelo menos na derradeira hora poder-se-iam dar ao luxo de ter silêncio.

    E quem sabe a vontade dos mortos se nem durante a vida forem claros quanto às suas intenções?

    O meu avô, antes de falecer no hospital, pegou num pedaço de jornal e escreveu uma última vontade. Como ateu convicto que era o velhote, pediu que nem uma coroa ou segundo fosse gasta em cerimónias fúnebres, por isso foi cremado sem despedidas, sem ninguém que olhasse para ele, a não ser o cremador, pois claro. Nem filhos, nem netos, nem sobrinhos, nem irmãs, nem ninguém.

    Compreendo a perspetiva do teu avô. Se apenas um par de olhos nos vê nascer, para morrer um par de olhos também chega.

    Niklas acenou com a cabeça, pensativo, e depois foi ao cerne do que lhe ia em mente:

    Voltando aos suicídios, eu penso que esta questão daria uma reportagem que poderia despertar interesse, sobretudo se considerarmos que é o quarto suicídio nos últimos dez dias na região. Qual é a tua opinião?

    Foste tu mesmo que falaste sobre a última vontade dos mortos ser a paz e o silêncio. O que diria o teu avô por exemplo?

    Esta reportagem irá ser sobre as causas da morte. Na verdade, ninguém quer saber sobre mortos, a não ser os arqueólogos e historiadores, está claro.

    O que diz a Jenny sobre o assunto? questionou Simon com interesse enquanto se erguia do sofá, algo entorpecido.

    Ainda não falei com ela, mas vou fazê-lo o quanto antes, disse Niklas, levantando-se decidido do sofá. Obrigado pelo café e pela história.

    E foi com a cabeça pesada de ideias que Niklas avançou pelo corredor até ao gabinete de Jenny, a chefe da redação do jornal. A porta de vidro do gabinete marcada de manchas de dedadas de cima a baixo. O vidro refletia o seu corpo e a ansiedade que lhe crescia na alma para partilhar a ideia de escrever uma reportagem sobre um assunto mórbido. Fechou o punho da mão direita e bateu duas vezes na porta entreaberta.

    Entra, entra, pediu Jenny, sem olhar sequer para a porta para depois lançar um olhar rápido para identificar o visitante. Dá-me dois minutos para terminar de escrever este parágrafo.

    Niklas puxou de uma cadeira para acalmar a sua impaciência. Dois minutos pareciam uma eternidade. Aqueles dois minutos eram uma manhã. Enquanto aguardava, via o seu entusiasmo ser resfriado pelos ventos de pessimismo que sopravam não sabia de onde, e por instantes colocou a hipótese de a ideia não contar com a aprovação da chefe, ou de o artigo não ser suficientemente interessante para os leitores do jornal, habituados a fechar os olhos aos problemas da alma, a afogar os pensamentos e opiniões de todos os assuntos que fogem ao politicamente correto, às regras da sociedade escritas e não escritas, ao que estava escrito num livro religioso ou outra fonte de inspiração moral. Entretanto, cessou o barulho que vinha dos dedos lentos de Jenny contra o teclado. Sentiu o olhar dela a desfazer-lhe os pensamentos que voavam livremente na mente.

    Agora sim… O que te traz aqui, Niklas?

    Uma ideia de reportagem.

    Pois claro, conta-me então.

    Quero escrever sobre os últimos suicídios em Yttersund. Quero inteirar-me sobre o que levou aquelas quatro pessoas a desistir de viver, explicar o desenvolvimento das motivações e revelá-las aos leitores.

    Jenny ajeitou os óculos e ficou em silêncio. Olhou fixamente para Niklas como se quisesse adivinhar o que lhe ia na mente. Depois, retirou uma caneta de cima da secretária e recostou-se na cadeira, brincando com a caneta entre os dedos da mão esquerda enquanto olhava para o teto sem cor, tentando rabiscar nele uma série lógica de imagens. Niklas, sentado, assistia ao pó que flutuava pelo escritório que era revelado pela luz pálida do sol, deitando por vezes um olhar para Jenny de quem esperava uma resposta. As palavras não se fizeram esperar:

    Porque queres tu escrever sobre a morte enquanto podes escrever sobre a vida? Quem quer ler sobre mortos para além dos historiadores ou arqueólogos?

    Acabei de escutar uma resposta semelhante do Simon.

    O suicídio é um tema mórbido e delicado que se afasta das nossas linhas editoriais.

    Bem sei, mas penso que está na altura de pararmos de fingir que a morte não existe e passarmos a falar dela abertamente. Não podemos continuar a negar que a morte não é real e que não pode surgir em qualquer momento, nem podemos negar que o suicídio não é uma possibilidade que todos temos e assim também ele real.

    Sabes tão bem como eu que os desvios aos temas da normalidade tanto podem despertar curiosidade como aversão. O Homem por natureza estima o conforto da regularidade. Aborto, homossexualidade, imigração, integração, racismo, suicídio e outros demais temas estão num patamar a que todos chegam, mas que ninguém se atreve a tocar. Além disso, Niklas, estamos em Yttersund e não numa metrópole como a capital com a diversidade de personalidades, preferências e mentes que lhe é característica. Quem é que na nossa vila irá ler um texto sobre tais temas?

    As exceções tornam-se rotinas, e as rotinas retornam a exceções. Como as modas. E o suicídio pouco a pouco transforma-se numa rotina, os factos da última semana não mentem.

    Jenny olhou para Niklas e endireitou-se na cadeira. Depois, levantou-se e dirigiu-se à janela de braços cruzados, como se procurasse algo lá fora, não sabendo bem o quê. Os seus braços demasiado pequenos para a altura que tinha davam-lhe um certo ar de Tiranossauro Rex, como ela própria fazia questão de mencionar em momentos de boa disposição. Passados uns instantes, ou uma eternidade como Niklas sentia enquanto aguardava, Jenny retomou o raciocínio:

    Onde queres chegar com a reportagem?

    Descortinar a lógica do suicídio, que a meu ver tem uma particularidade anormal em Yttersund.

    A morte tem uma lógica, o suicídio não, pelo menos a meu ver. A vida talvez o terá, mas isso é outra discussão… Fez uma pausa para encontrar uma frase que pudesse terminar o debate e prosseguiu: Sabes que duas palavras são homónimas, ou, nalguns casos, homógrafas em várias línguas europeias?

    Niklas abanou a cabeça e atirou um silencioso e arrastada não.

    Presente e presente. Para nos lembrarmos de que o momento presente é uma dádiva, e que devemos ficar gratos com a vida e aproveitá-la, independentemente do sentido que lhe quiserem dar ou tirar.

    Niklas ficou em silêncio a digerir a frase que soava a um desbotado lugar-comum, até encontrar uma argumentação à altura.

    Mas se a vida é um presente, então esta pertence ao presenteado que pode fazer o que lhe aprouver com ela, incluindo rejeitá-la através do suicídio.

    Jenny suspirou. Deu uma volta sob os seus próprios pés e voltou-se a sentar na cadeira, olhando para Niklas, que havia cravado os olhos no seu rosto e esperava com ansiedade um momento oportuno para ripostar. Por trás dos olhos azuis que fixavam Niklas, havia resquícios de algo triste e longínquo, que se escondiam ou se revelavam conforme as expressões que lhe surgiam na face; ou conforme os amanheceres, ou conforme o tempo que fazia dentro daquele corpo virado para ele.

    "Niklas… eu receio que o conteúdo desta reportagem seja um peso difícil de carregar dada a tua curta

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