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SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1
SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1
SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1
E-book442 páginas6 horas

SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1

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Sobre este e-book

É TEMPO DE AGIR. 

OS SINOS ESTÃO SOANDO.

SE VOCÊ OS OUVE, TALVEZ SEJA UM BINDALINE

Buenos Aires. Tiveram que lembrar-se das identidades anteriores, mas isso foi só o primeiro passo. As novas gerações já estão nascendo, os "adormecidos" começam a despertar. Com o som dos Sinos, também chegam os Bindalinē no final do ciclo, embora muitos deles ainda ignorem que são "Mensageiros urbanos". Em breve chegam os pares do Brasil e Uruguai, e de outros lugares do mundo. Já nada será como antes. O avanço das sombras é o seguinte passo para o êxito de seus trabalhos. Já têm milênios...

Escute com atenção as vozes do vento quando caminhar, poderia pronunciar-se o porvir em forma de eco. O destino viaja sempre adiantado, e não se deterá para comprovar que você o tenha compreendido. (do Alde ge ou Livro da Revelação)

Esta novela inicia a Trilogia BINDALINE da série ENEALOGIA, uma epopeia dimensional nas fronteiras do tempo e do urbano conhecido

IdiomaPortuguês
EditoraInsepia
Data de lançamento5 de jan. de 2017
ISBN9781507167557
SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1

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    SOMBRAS DO FIM DO MUNDO | BINDALINĒ 1 - Ariel Pytrell

    Sombras do fim do mundo

    Enealogia · Trilogia Bindalinē | 1

    Ariel Pytrell

    Traduzido por Patrícia S. C. Chamorro

    Bindalinē 1. Sombras do fim do mundo

    ©2017 by Ariel Pytrell | Direitos reservados | www.arielpytrell.com

    Design da capa e partes internas ©2017 by AriTopet

    Distribuído por Babelcube, Inc. | www.babelcube.com

    Babelcube Books e Babelcube são marcas comerciais da Babelcube Inc.

    Traduzido na primeira edição em espanhol

    Bindalinē 1. Sombras del fin del mundo, ©Ariel Pytrell, s etembro de 2014

    Primeira edição em português: janeiro de 2017 | Insepia Ediciones Originales

    ©Ariel Pytrell, 2014-2017 | Todos os direitos reservados sobre o texto e sobre as imagens (capa e partes internas)

    Não é permitida a reprodução parcial ou total, o armazenamento, aluguel, a transmissão ou a transformação deste livro, em qualquer forma ou por qualquer meio, seja eletrônico ou mecânico, através de fotocópias, digitalização ou outros métodos sem a licença prévia e por escrito do autor:

    Os nomes e personagens, assim como as situações,

    são de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

    Conteúdo

    Notas de tradução

    Primeira parte. Os encontros

    Chamados

    Pontos sensíveis

    Argolas na escuridão

    O Pentagrammon

    Círculo primal

    Antiga condição

    DNA

    Linhas abertas

    Segunda parte. O impacto

    Os hóspedes

    O guardião

    As veias da cidade

    Entremuros

    O selo

    Os aspectos da luz

    O Todo

    A Sociedade de Tango

    Terceira parte. Os Mensageiros do Irmen

    Ponto morto

    As dobras da memória

    Outros nascimentos

    Potências escuras

    Paredes em sombras

    Filhos do Resplendor

    Enfrentamento urbano

    A nova condição

    Fragmentos dos Arquivos Danahuacale

    Aspectos gerais

    Listas de algumas palavras

    Notas de tradução

    Neste livro e nos seguintes o autor criou personagens de diversas nacionalidades, o que traz ainda mais riqueza e diversidade cultural a sua obra. Porém, como a maioria dos personagens é de origem argentina e a trama deste livro se passa em Buenos Aires, algumas observações devem ser feitas a respeito do idioma original para que seja possível compreender as adaptações feitas na tradução para o português brasileiro.

    O espanhol falado na Argentina tem a peculiaridade de utilizar uma segunda pessoa do singular bem pouco usada em outros países da América do Sul, que é a pessoa vos. Esta pessoa tem sua própria conjugação de verbo, diferente da outra segunda pessoa do singular, o tú. Como os personagens argentinos do livro utilizam bastante essa forma singular de falar, a forma mais aproximada de transmitir essa peculiaridade para o português brasileiro foi adotar a pessoa tu, porém da forma como se conjuga coloquialmente na região sul do Brasil, assim como em alguns outros estados.

    Além disso, a história também conta com alguns personagens brasileiros e um personagem espanhol. No original algumas das falas dos brasileiros são colocadas em português, fazendo o contraste com o espanhol. Assim, como seria de se esperar, não é necessária a tradução dessas falas; no entanto, para que não se perdesse a diferenciação, essas falas específicas foram destacadas com letras em itálico, além de alguns acréscimos no próprio texto para que o leitor identifique onde os personagens de fato estão falando português, e não espanhol, como no original. O personagem espanhol, o bibliotecário Jorge, teve suas falas traduzidas para o português, porém adotando algumas características do português lusitano, de forma que o leitor sinta também a diferença que há entre o espanhol latino-americano e o europeu.

    Outros detalhes que também constam no texto, durante a trama, são como algumas letras são pronunciadas no espanhol latino-americano, no espanhol peninsular (ou europeu) e no português. Um exemplo é o nome Zoe, que em português é pronunciado com um som mais zumbido (como um inseto – explicado na trama); em espanhol latino-americano, com som de s; e em espanhol peninsular com a língua entre os dentes.

    No mais, a própria história vai destacando essas belas diferenças culturais que fazem uma mistura deliciosa com as emoções transmitidas pela trama. Saboreie o texto como um prato fino nascido da imaginação do autor e das peculiaridades de seus personagens.

    Patrícia S. M. Chamorro

    São Paulo, outubro de 2016

    Esta é a primeira para Gero

    Sombras do fim do mundo

    —————————————————————————-

    Ao repassar a memória dos tempos,

    descubro a primeira coisa que aprendemos:

    quando uma criança chora ao nascer,

    assim o faz para sua humanidade...

    Alatirqedar

    ———————————

    Importante | Consulte a Lista de palavras no apêndice, ao final do livro,

    para a tradução dos textos na Língua dos Q’Ērantē

    primeira parte

    Os encontros

    ––––––––

    Chamados

    O ser dimensional se apresentou diante de seus pares

    e da sua laringe saiu um canto de sinos.

    do ALDE GE ou LIVRO DA REVELAÇÃO

    A multidão se espremia ao redor do corpo escuro. A pequena poça de sangue fumegava a um lado da cabeça. Um pouco mais além, as rodas da bicicleta giravam e giravam, como se andassem por um caminho invisível e sempre ascendente.

    – Me deem licença, por favor!

    – Mas, quem é você?

    – Sou médica, posso ajudar. Por favor, me deem licença!

    A doutora tinha visto tudo. Viu quando o homem com sua bicicleta atravessou sem olhar, distraído e indiferente às mudanças das luzes do semáforo. Viu quando o motorista fez uma manobra violenta, embora o automóvel não evitasse a batida. Viu como o corpo do ciclista voou pelos ares da cidade. Em seguida, caiu sobre a rua com o peso de uma realidade alheia, enquanto o motorista acelerava o veículo e se perdia para além da rua, tão pouco transitada pelos automóveis nesse domingo de Buenos Aires.

    A doutora conferiu os sinais vitais, com cuidado para não mexer muito o corpo do ferido. Ela sabia que suas manobras profissionais podiam ser muito perigosas, porque alguma fratura invisível, alguma hemorragia interna, precipitaria a vida desse infeliz. O peito do homem se mexia, o pescoço pulsava. Tudo parecia estar bem, exceto um dos braços que estava fora do lugar, e desse machucado na cabeça, que lhe preocupava muito, porque não parava de sangrar.

    – Chamem uma ambulância! – ordenou com firmeza. – Este homem precisa ser hospitalizado urgentemente!

    A barba do homem se tingia cada vez mais pela cor púrpura de seu próprio sangue, intenso sobre a textura escura da pele. Os olhos estavam fechados, como se dormisse em paz, como se na verdade estivesse contemplando o mar através de uma janela. Definitivamente, não parecia que estivesse desmaiado.

    – Abram o círculo! – tornou a ordenar a médica. – Deixem-no respirar!

    Mas os poucos curiosos não ligaram muito para o pedido e continuaram ali, dispostos a não perder o espetáculo.

    – Por favor, abram o círculo! Deixem-no respirar! – a médica insistiu mais uma vez.

    Nesse instante, como se uma brisa fresca tivesse se chocado contra sua humanidade, o homem abriu os olhos, se levantou com energia inusitada. Os curiosos deram um passo atrás. O homem começou a olhar em direção ao espaço vazio que circundava a médica. Ela constatou as pupilas dilatadas do homem, que mexia a boca numa tentativa de balbuciar alguma palavra ininteligível. Era notável a tensão dos presentes. Uma sensação de temor ancestral invadiu a doutora, como se alguma parte dela percebesse que aquilo não era normal ou, pelo menos, que estava fora de sua experiência prática.

    – Permaneça deitado! – disse ao estranho, assim que recuperou sua própria confiança. – Peço que não se mexa!

    – O som!... Os sinos!...

    O homem pronunciou com dificuldade essas palavras, enquanto continuava com os olhos fixos no espaço ao redor da médica. O sangue continuava saindo de sua cabeça. Agora começava a fluir pelo nariz como um finíssimo e brilhante fio carmesim.

    – Ouve algum zumbido?

    – Os sinos!... Os sinos!... – repetia sem parar.

    Um táxi parou a uns poucos metros e o motorista, um sujeito vestido de azul escuro, desceu do carro para observar a cena.

    – Está vibrando... em mim – o ciclista conseguiu dizer com claridade antes de se perder no meio da agitação de seu corpo. – O diapasão... Também vibra em mim!

    O ciclista virou os olhos para trás e tornou a desmaiar. Se não fosse porque os reflexos da médica foram mais rápidos, o homem, mais uma vez, teria batido com a cabeça na rua. Em vez disso, com suavidade, a mulher apoiou a cabeça do sujeito sobre o asfalto. Uma mancha de sangue tremeluzia brilhante na mão da doutora.

    O taxista voltou a subir a seu carro, ficou pensativo por uns instantes, fechou as pálpebras e, quando tornou a abri-las, observou à distância, entre as pessoas agrupadas ao redor dos protagonistas, como a médica realizava as manobras de resgate. O taxista suspirou profundamente e agarrou o volante.

    Alguns garantiram mais tarde que a sirene da ambulância – a princípio, longe e fora do mundo – explodiu no ar dominical da manhã com seu grito retumbante de milhares e milhares de mandrágoras alteradas, de milhares de criaturas dissonantes, frenéticas, aterradoras. O taxista ligou o carro, mas o ruído do motor ficou disfarçado no meio do estupor que as sirenes causavam aos circunvizinhos. O táxi se distanciou.

    *    *    *

    Quando ouviu o primeiro som, o menino brincava sozinho na sala de jantar da casa. Ele tinha se levantado e, em silêncio, se dirigiu à cozinha, pegou um copo do gabinete, abriu a geladeira e serviu-se de água. Em seguida, cortou um pedaço de pão que tirou do cesto de pães, e comeu e bebeu com satisfação ali, em pé na frente da bancada da cozinha. Depois, e sempre com movimentos que abafavam o menor ruído, chegou ao corredor, abriu a gaveta do armário, tirou lá do fundo seu caderno de capa amarela e pegou o lápis que sempre escondia nessa mesma gaveta. Pelo corredor, o menino se dirigiu novamente à sala de jantar. Abriu as persianas e permitiu que essa luz transparente, de intensidade amarelada, talvez esverdeada, untasse cada recanto do cômodo. Uma brisa tênue levou até ele a sensação de que as árvores próximas sussurravam a alegria de viver, a promessa das horas por vir, o silêncio de regiões distantes do mundo. Inspirou profundamente e permitiu que a voz da brisa pronunciasse seu nome no fundo de seus pulmões.

    O menino sentou-se à mesa de madeira, ali em seu lugar predileto a essa hora da manhã, bem de frente para a janela aberta. Ele conseguia ver um pedaço do céu azul e límpido que as copas das árvores escassas de seu bairro emolduravam, bairro bastante distante do agitado centro da cidade. E começou a desenvolver o que ele considerava um jogo.

    Naquela manhã, a luz de março já delatava a proximidade do outono no hemisfério sul. O verdor das folhas se refletia em tudo o que via. As sombras leves das ruas e o profundo sussurro de móveis e quadros e lembranças o convidavam a descrever sobre o papel as silhuetas de seu pensamento, os relevos e meandros de seus sonhos, o sentimento que seu coração fazia vibrar além de seu corpo e ao redor dele. E rascunhou desenhos sobre as folhas de seu caderno, sempre em silêncio e com esse discurso das pontas dos lápis quando deslizam sobre a superfície do papel.

    A primeira badalada o assustou, e a vibração ficou ecoando dentro de sua cabeça. A segunda badalada sugeriu-lhe temor e inquietude. A partir da terceira ou quarta badalada, acalmou-se e deixou que seu interior sustentasse aqueles sons, assim como, de maneira autodidata, aprendera a sustentá-los. Seus ossos repetiram os tremores dos sinos, e tudo nele ressoou.

    O garoto percebeu que não tinha parado de rabiscar sobre o papel, ao mesmo tempo em que se entregava aos encantos dos tilintares. Começou a pronunciar umas palavras que ele não entendia então, e sentiu desejo de ir até a janela, de comunicar-se com as árvores, de depositar sua confiança naqueles que cuidavam do mundo, de abrir seu coração a esse som que fazia a luz e o ar vibrarem na mesma frequência que seus ossos e seu sangue e sua alma de garoto de nove anos.

    O pequeno não percebeu que seu pai tinha se levantado e que o estava observando do batente para o corredor, imóvel e segurando a respiração em um sussurro de horror.

    – Patricio, filho... – conseguiu dizer, embora a voz tenha saído sem força.

    Mas o menino continuava ali, trepado na janela, como um pássaro prestes a voar, alheio às vozes dos homens. Só estava concentrado nessa vibração de sinos que seus ossos lhe comunicavam até fazê-lo subir àquela janela.

    O pai se aproximou lentamente, pegou a mão do filho e o convenceu de que descesse da janela. O menino desceu enquanto olhava seu pai, embora sem vê-lo. Só quando já estava embaixo o garoto alternou seu olhar ao mundo por aquele outro, o de menino vestido com um pequeno corpo terrestre.

    – Filho – o pai voltou a falar-lhe, em uma tentativa de tranquilizar-se a si mesmo, – você não me acordou para tomarmos café da manhã juntos.

    O pai tremeu dentro de si, só de imaginar o que teria acontecido se Patricio, seu filho, tivesse se jogado ao vazio. Apesar de tudo, o homem também se permitiu receber o frescor da brisa matutina.

    – Esses sinos, papai...

    E o garoto, com seu olhar lânguido, perfurou o espaço de além da janela.

    – Sinos? – O pai fez silêncio e aguçou o ouvido.

    – São... milhares, papai. E estão no ar!

    – Filho, não escuto nada... Não consigo escutar!...

    O pai se ajoelhou na frente de Patricio e o fitou com atenção. Sempre amou os grandes olhos de seu filho, da cor do mel, com longos cílios negros e esse nariz que lhe recordava vagamente o rosto esculpido de algum romano antigo (e o perfil quase esquecido de sua mulher).

    – Sem medo.

    O pai sustentou o olhar límpido de seu filho, engoliu a saliva que se acumulara na boca, e só depois respondeu:

    – Claro, filho, claro.

    Patricio abraçou seu pai e este descansou a cabeça pesada sobre os ombros diminutos de seu filho. O pai suspirou e se permitiu cobrir Patricio com seus braços enormes.

    – Está bem, papai – aceitou, subitamente, o menino. – Vou lavar o rosto com água fria.

    – Mas eu não disse nada!

    Patricio voltou a olhar seu pai e ambos sorriram. Logo o garoto se afastou em direção ao banheiro e deixou o homem mergulhado nos tilintares de sinos que, na realidade, não conseguia ouvir nem imaginar. O pai suspirou e buscou uma forma de consolo no fôlego que liberava. Seu olhar o levou ao pedaço de céu e de árvores que a moldura da janela lhe permitia ver. A altura de três andares podia ter sido uma distância perigosa para o salto de um menino que não é um pássaro. Um novo suspiro acabou por libertá-lo da angústia que estava prestes a invadi-lo novamente.

    Agora seu olhar o levou a percorrer o pequeno corredor. A mesa de madeira. O lápis abandonado sobre o caderno. O caderno de capas amarelas que Patricio tinha deixado aberto. Essas páginas sem pautas que seu filho preferia. E o homem se aproximou do caderno aberto para ver os desenhos que seu filho tinha feito nessa manhã... Volteios que terminavam em labirintos de círculos concêntricos; triângulos com seus lados extremamente marcados até quase furar a folha; umas letras estranhas, desenhadas com habilidade e arte, que cobriam aqui e ali a superfície do papel; figuras circulares, diagramas e esquemas de extraordinária beleza, e esses típicos traços de seu criador, ainda infantis, que o homem tanto amava e que tinha aprendido a identificar.

    Talvez com um movimento involuntário, aguçou a vista para perceber melhor aquele garrancho gráfico. Sem ser consciente da operação visual, tirou o foco dos traços principais, aprofundou a vista para além da superfície evidente e... ali estava, era impossível não perceber! Nos espaços deixados em branco, entre um desenho e outro, formava-se a imagem nítida e inquietante que o olhar desprevenido não poderia ter visto.

    A figura representava um homem (ou mulher?) seminu, totalmente calvo e de traços muito delicados. Tinha os braços estendidos horizontalmente, um de cada lado do tronco, como se tentasse abraçar quem o olhasse. As pernas abertas formavam um V invertido, embora uma delas estivesse descentrada com relação à outra, como se o personagem estivesse prestes a pular ou se tivesse acabado de descer de um pulo.

    Mas ainda havia outro detalhe naquela figura que sugeria uma realidade extraordinária. Ameaçou dar um grito, como se toda sua humanidade se derramasse em um vômito, no mesmo instante em que aquele detalhe lhe assaltou a vista. Embora o grito tenha ficado engasgado na laringe, levou uma mão aos lábios, reprimiu seu desespero, que foi explodir na imensidade de seu sangue. O homem não acreditava em seus olhos diante daquelas massas borradas, um pouco mais claras que o conjunto, que se estendiam desde as costas daquela figura. Imediatamente lhe lembraram de asas, com as plumas desconectadas de suas sombras, que abarcavam boa parte da criatura desenhada por seu filho.

    Assim que se recompôs, pensou na possibilidade de que, na superfície desse papel, havia existido algum outro portento. Sentiu vontade de fugir, de destroçar aquele desenho, de não tê-lo visto nunca. Mas o homem concentrou ainda mais a vista e, com o mesmo procedimento de focar e tirar o foco, pensou ter lido uma palavra entre essas letras estranhas colocadas em aparente caos. E não encontrou apenas uma palavra, mas sim duas e três e quatro... Essa legenda estava de alguma forma camuflada entre os desenhos e volteios. A mensagem se repetia nos espaços vazios de toda a superfície do papel, como uma obsessão, como um chamado desesperado, um desejo surdo, e só se revelava para quem, como ele nesse momento, soubesse lê-la:

    «ELUDORINOY ALIQE QEM SELDE».

    O pai não entendia o significado daquilo, já que mal podia pronunciá-lo, mas sentiu a eletricidade nas veias e um arranhar na fonte de seu corpo. Sabia que aquela legenda trazia uma verdade tão distante e reverberante como aquele mistério ao redor do papel e daquela manhã de domingo.

    Com a mesma certeza que tinha sentido ao olhá-lo nos olhos, o homem se deu conta da presença. E lá estava seu filho outra vez; no batente do corredor, ainda descalço, encarando-o com seus olhos intensos, com esses olhos de mel que tanto amava (e que também o faziam lembrar-se de alguém, talvez da mãe de seu filho). Patricio, desde o corredor, sorriu para seu pai e fez um gesto com o ombro em busca de cumplicidade. Mas o homem só pôde devolver um tipo de sorriso forçado, a sombra de uma careta nervosa.

    – Os sinos continuam, não é? – tremeu na voz.

    O garoto assentiu com a cabeça.

    – Podemos ir? – perguntou Patricio.

    Dessa vez, foi o homem que assentiu com a cabeça.

    – Depois de lanchar, ao entardecer? – perguntou o pai.

    Com outro movimento de cabeça, o garoto aceitou a proposta. Patricio sorriu e deixou que os dentes lhe iluminassem ainda mais seu rosto, e saiu correndo para seu quarto.

    O pai ficou olhando para o espaço, agora vazio, que seu filho tinha deixado no batente do corredor. Recompôs-se como pôde, procurou um CD na estante próxima do armário de louças, o colocou no aparelho de som e, um pouco depois, os alto-falantes liberaram os acordes de um piano tranquilizador e emotivo, encorajador e previsível, familiar e terreal, especialmente terreal... Acima de tudo, terreal.

    As árvores do bairro continuavam ali fora, mexendo sua cabeleira verde como uma dança para o céu.

    *    *    *

    A revoada desenhou no ar a trilha do voo. Os pássaros grasnaram com estridência e viraram de repente, no meio da trajetória, para oeste e então para leste, e depois, novamente em direção ao sul.

    Zoe tirou os óculos de sol e observou com detença aquele comportamento incomum. O punhado de roupas ainda úmidas que segurava nos braços caiu no chão do terraço. Quis falar, chamar seu marido, mas a voz não saía. Por uma sensação, à qual tinha se acostumado, reconheceu que algo não estava normal no ambiente. Um vento súbito e quente rodopiou na roupa caída, que já tinha se sujado e que, com certeza, ia ter que lavar de novo. As aves se afastavam em direção ao sul e os grasnados se perdiam com elas, enquanto desapareciam no horizonte.

    Nesse momento, Federico apareceu no terraço. Tinha subido as escadas com agitação e, em sua pressa, tropeçou duas vezes. Já lá em cima, e com a respiração entrecortada, olhou para todos os lados com angústia, como se procurasse algo importante, algo que tivesse perdido ou fugido.

    – Zoe! – chamou aos gritos. – Pelo amor de Deus! Onde você está?

    A mulher deixou os óculos de sol cair, e a tarde de final de verão se quebrou sobre as lentes opacas. Só então ela conseguiu ouvir seu nome, fundido aos grasnados longínquos das aves. Zoe deu um sobressalto e percebeu que Federico a chamava com desespero. Com desespero, viu como Federico retorcia-se no terraço e abraçava a si mesmo, enquanto tremia, tremia, tremia como se uma febre interna o abrasasse, como se um frio corresse por suas veias. Com desespero, viu como seu marido perfurava o ar com os olhos incapazes de ver, incapazes de distingui-la, incapazes de lhe devolver a identidade, porque a procurava com desespero, com vontade de encontrá-la, com ansiedade de recuperar sua própria identidade. E ela procurava uma explicação para tudo aquilo, embora fosse uma explicação desesperada, uma explicação confusa, mas com a capacidade do alívio e do consolo. Percebeu que a tarde permanecia quebrada em seus óculos.

    O homem não via que Zoe se aproximava dele correndo, com os braços estendidos, disposta a socorrê-lo. Federico parou de gritar o nome de sua esposa quando sua pele encontrou a maciez da pele dela. O súbito vento quente levou pelos ares um lenço ou um guardanapo.

    – Calma, meu amor – ela disse enquanto o abraçava. – Calma, calma... Algo está acontecendo agora. Eu também percebi. Mas não se preocupe mais, você está aqui, está aqui... e eu estou aqui também...

    – Ele não fala! – Federico quase gritou, embora os braços de sua esposa lhe sufocassem a voz. – Mais uma vez ele não fala!

    Zoe pegou a cabeça de Federico e a distanciou de seu peito para inspecionar melhor os olhos de seu marido. As pupilas continuavam dilatadas; os globos oculares injetados; o olhar, errante, procurando aquela tarde de domingo que se filtrava pelas lentes quebradas espalhadas pelo terraço.

    – Está vendo agora? – Zoe quis saber. – Fede, você o está vendo agora?

    – A alguns metros – ele respondeu quase sem forças –, pendurado na beirada da parede.

    – Atrás de mim?

    Zoe olhou para todos os lados, mas não viu nada, a não ser pela revoada, que continuava distanciando-se em direção ao sul e que, nesse momento, tinha se transformado em um minúsculo ponto tremulante. A mulher tornou a abraçar o homem e ficaram assim por um tempo. Ela permitiu-se afrouxar a pressão de seu abraço somente quando notou que Federico passou a ser um corpo lânguido, mais flexível.

    – Está indo embora – balbuciou ele, enquanto olhava por cima do ombro de sua mulher. –Está voando para lá. – E indicou o sudoeste.

    Zoe observou os olhos de seu marido e percebeu que, embora de maneira mais lenta do que de costume, estavam voltando ao normal. Ela sabia que Federico ainda estava cego às coisas a seu redor. Tornou a abraçá-lo com ternura. Ficaram assim por um bom tempo.

    A brisa da tarde aliviava o calor. Aquele vento já não bagunçava as peças de roupa esparramadas pelo chão do terraço, e não se via nenhuma ave no céu, em nenhuma direção. A não ser dois aviões alheios à esfera da terra firme, mas nada perturbador demais. Talvez a quietude repentina indicasse que esse domingo tinha dado tudo o que tinha para oferecer, embora fosse o meio da tarde.

    Zoe comprovou a flacidez de Federico e reconheceu que seus próprios músculos estavam em câimbras.

    – Acho que é hora de entrar em casa – disse.

    Federico moveu-se pesadamente, parecia que todas suas forças estavam esgotadas.  Zoe o ajudou a levantar-se e a descer as escadas. Ambos entraram na casa pela porta do quintal. Uma vez dentro, caminharam até o quarto. Federico sentou-se na ponta da cama e suspirou com calma, enquanto acariciava um dos braços, como um gesto reflexivo. Dirigiu-se a sua mulher, que estava apoiada no batente da porta e lhe devolvia o olhar.

    – Era maravilhoso, Zoe – confessou Federico. – Era o ser mais lindo que vi até agora, e tão intenso!

    Zoe não falou nada. Havia algo mais nela, algo que pretendia ocultar, como um sentimento distante. À distância, observou que os olhos de seu marido ainda tinham um resto de dilatação.

    – Mas não falou – continuou o homem –, essa criatura não falou comigo, embora movesse aqueles lábios cheios de luz. E eu achei que minha cabeça ia estourar. Eram milhares de sinos soando ao mesmo tempo! Só conseguia enxergar ele... ou ela... Aqueles olhos intensos, como se olhassem para o impossível... Zoe, essa criatura estava me olhando! E só consegui sentir paz, mas uma paz que me arrancava de mim mesmo, que estava fora do meu corpo. Meu corpo, meus ossos! Não podiam me segurar. Nunca foi tão intenso como hoje!

    Zoe sentou-se na beirada da cama, ao lado de seu marido, e tomou-lhe uma das mãos. Federico sentiu a confiança que sua mulher lhe tinha, o calor que pulsava nas veias dela. Apertou um pouco a mão de Zoe, como se fosse a última oportunidade de estar enlaçado à Terra.

    – Também percebi mudanças na atmosfera – ela disse. – Os pássaros fizeram movimentos muito estranhos, estranhos demais.

    Pouco a pouco os olhos de Zoe foram aparecendo no campo visual de Federico. Ele descansou no olhar de Zoe. Fazia uns poucos meses, um pouco depois que se casaram, que a intensidade dessas visões dele começou e essas percepções dela, e a vida em comum já não pôde ser a mesma.

    – Acho que devemos ir, Fede – pronunciou a mulher, com a voz mais doce que pôde emitir. – Devemos ir, Fede, por favor! Temos que fazer alguma coisa, está cada vez pior!

    Federico viu os olhos de sua mulher e os notou distantes, como se visse alguém que há muito tempo não via e de quem, agora, descobria as mudanças na pele, nos gestos, nos traços. O jovem permitiu-se um sorriso, mas tratava-se, na verdade, de um reflexo nervoso.

    – Quando? – perguntou ele.

    – Vou ligar para mamãe e perguntar quando podemos ver aquele homem.

    – Está bem – aceitou Federico, mais para satisfazer a necessidade de Zoe do que por um impulso próprio. – Mas agora quero descansar um pouco – confessou, enquanto estendia seu corpo sobre a cama na qual estava sentado.

    Zoe saiu do quarto. Federico suspirou e conseguiu ouvir como sua mulher fazia um telefonema no cômodo próximo e, um pouco depois, falava com alguém. Quando Zoe desligou o telefone e voltou ao quarto, viu que Federico tinha adormecido. A mulher recostou-se do lado de seu marido e apoiou a cabeça em seu ombro. Zoe começou a tocar a pele do rosto do homem, roçou a barba escura que começava a crescer, comprovou o tremor debaixo da própria pele e, sem perceber, ela também adormeceu.

    Acordaram quando o som do telefone sacudiu a quietude do quarto. A noite já tinha substituído a tarde. Somente a luz da lua entrava pela porta do quintal, que tinha ficado aberta.

    Pontos sensíveis

    Há muitas realidades para explorar com os veículos

    adequados, e formas pessoais a serem experimentadas.

    do ALDE GE ou LIVRO DA REVELAÇÃO

    Naquela noite, Zoe tinha dirigido o carro. Federico se sentia um pouco fraco ainda. Ela estacionou em frente da porta e desceram. Em seguida, ela tocou a campainha com timidez, como uma forma de pedir desculpas pela interrupção. Esperaram por algum tempo na rua. Eles tinham chegado bastante tarde.

    O casarão de dois andares era muito familiar a Zoe, como se tivesse passado muitas vezes em frente a ele e só naquele momento tivesse percebido a estrutura. Considerou essa sensação como algo imperdoável nela. Seu sentido comum lhe dizia que o casarão não devia ter passado despercebido, a menos que não houvesse estado atenta ou que o tivessem construído recentemente. Mas os materiais sólidos e desbotados dos batentes ou da porta, ou os vidros trabalhados e coloridos, as grades trabalhadas que protegiam a grande janela que dava a uma espécie de saguão, tudo isso delatava uma antiguidade de várias décadas. Como é que não notei esta maravilha de construção?, pensou.

    Depois de um longo tempo, durante o qual pensaram que ninguém os atenderia, um garoto com óculos de aro grosso abriu a porta e, após perguntar a identidade dos recém-chegados, os deixou entrar imediatamente, como se os estivesse esperando. Atravessaram o saguão e logo subiram as escadas de mármore. A primeira coisa que notaram ao pisar no patamar foi um ambiente de extrema calma, quase densa, dominada pelo arrulhar de uma voz cadenciada que, apesar de letárgica, não chegava a ser monótona.

    A sala estava lotada de pessoas de todas as idades, sentadas em cadeiras ou no chão. Muitos permaneciam em pé, apoiados contra as paredes forradas de madeira escura sem lustrar. Os ventiladores não eram suficientes para satisfazer à demanda de ar fresco e oxigênio. Alguns garantiram mais tarde que era a primeira vez que uma reunião convocava a tanta gente, exceto pelos congressos abarrotados de pessoas que costumavam acontecer em salões muito maiores e preparados para a ocasião.

    Naquele domingo não havia mais lugar para ninguém, e tiveram que habilitar as salas contíguas e, inclusive, a cozinha e os corredores. Zoe e Federico conformaram-se em aglomerar-se em um cômodo pequeno e quente, talvez uma antessala ou closet, onde se encostaram sobre o batente da porta para não mover-se por um bom tempo.

    A voz do homem era pausada e profunda, capaz de concentrar a mais absoluta atenção. A princípio, Zoe e Federico não entendiam bem de quê estava falando, pois era evidente que tinham chegado no meio de um discurso ou algo parecido. Desde onde estavam só ouviam aquela voz que se elevava como o murmúrio de uma litania desconhecida.

    Parecia que aquele homem falava do que tinha acontecido naquele mesmo domingo, mas as palavras articuladas chegavam até ela de modo entrecortado, como se houvesse um ruído surdo no ambiente que interferia de maneira sutil e impedia que os conceitos chegassem de forma completa. Pouco

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