Prometeram-Nos a glória
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Sobre este e-book
Após o regresso dos irmãos Collignon ao seu país natal, a Alemanha começa uma pressão crescente sobre a Europa, que culminará com o início da Segunda Guerra Mundial. As vidas de Hanna, Ernest e Ritter são separadas pela guerra, até que, em 1944, um encontro inesperado une-os de novo, mas desta vez em circunstâncias diferentes: cada um deles está de um lado diferente do arame farpado de Auschwitz...
Uma história sobre o valor da amizade no meio do populismo que bane as singularidades e criminaliza as pessoas.
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Prometeram-Nos a glória - Mario Escobar
Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
Prometeram-nos a glória
Título original: Nos prometieron la gloria
© 2018, Mario Escobar Golderos
© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente pela HarperCollins Español uma divisão da HarperCollins Christian Publishing.
Tradutor: Fátima Tomás da Silva
Todos os direitos estão reservados, incluídos os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Christian Publishing, Nashville, U.S.A.
1ª edição: Setembro 2018
Desenho da capa: Edward Patton
Imagem da capa: Shutterstock
ISBN: 978-84-9139-277-4
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Créditos
Dedicatória
Citas
Prólogo
Primeira parte: Mario
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Segunda parte: Eduardo
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Terceira parte: Hanna
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Quarta parte: Ernest
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Quinta parte: Ritter
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Epílogo
Algumas elucidações históricas
Cronologia
Agradecimentos
Encarte fotográfico
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As gerações sucedem-se sem descanso, mas nem todas parecem sofrer o mesmo destino. Prometeram-nos a Glória é sobre uma delas, a dos jovens dos anos trinta e quarenta do século XX, que viveram na época mais turbulenta e agitada dos últimos duzentos anos. Uma geração que nasceu antes da Grande Guerra, que cresceu num mundo cheio de incerteza e desassossego e que, depois de sofrer a maior crise económica da História recente e o nascimento de um novo ideal político, o fascismo, que unia alguns valores socialistas com um nacionalismo extremo, teve de enfrentar os campos duros de batalha da Segunda Guerra Mundial.
Prometeram-nos a Glória é um romance sobre o poder da amizade, do amor e da verdade face à barbárie do Terceiro Reich e da ideologia nazi. Os seus protagonistas ver-se-ão imersos nos frenéticos anos trinta, quando o mundo mudou por completo e os grandes ideais ainda pareciam fazer sentido.
Nos anos trinta e quarenta, centenas de latino-americanos, como Eduardo e Mario Collignon, os protagonistas deste relato, viram-se imersos numa Europa em crise, onde o ultranacionalismo causou o desastre da paz precária assinada depois da Grande Guerra no Tratado de Versalhes.
A crise financeira grave de 1929, a falta de respostas das democracias europeias fracas e a cegueira extrema de milhões de pessoas na Alemanha, que por receio, convicção ou oportunismo apoiaram o Regime Nacional-Socialista, conduziram a um estado opressivo, racista, antissemita e ditatorial. Hoje em dia, o mundo encontra-se novamente perante os mesmos presságios terríveis. Seremos capazes de aprender as lições da História?
Eduardo e Mario Collignon representam essa geração perdida, que teve de pagar com a vida, a saúde e a liberdade pela miragem criada por aqueles que somente desejavam destruir o mundo.
Algumas gerações destroem o que outras construíram com muito esforço.
Uma história comovedora sobre o amor imperecível, as segundas oportunidades e os laços imprevisíveis que unem o passado com o presente.
O que fará a nossa geração ao enfrentar os desafios da extrema-direita, da extrema-esquerda, do ultranacionalismo, do racismo e do ódio ao que é diferente?
Para as minhas próximas gerações, Alejandro e Andrea, para que não se conformem com o mundo que herdam nem com as mentiras dos que os precederam.
Para Elisabeth, sonhávamos com mudar o mundo e estamos a fazê-lo com as palavras.
Para a geração de jovens a quem prometeram a glória, que acarinharam a ideia de criar um mundo melhor, mas sucumbiram à sedução do mal.
Para todos aqueles que ainda acreditam no Homem e não se renderam.
«Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa
Que a doença vos entrave
Que os vossos filhos vos virem a cara.»
Primo Levi, sobrevivente italiano de Auschwitz
«Esta Nação, a minha juventude, são vocês, no futuro. A juventude de hoje em dia tem uns ideais diferentes dos que possuía em tempos anteriores. Em vez de uma juventude que antigamente era educada para o prazer, cresce hoje uma juventude que é educada para a entrega, para o sacrifício.»
Discurso de Adolf Hitler em Nuremberga, 1931. «À Juventude Alemã».
«E agora vamos. Durmam bem, descansem e preparem-se para amanhã. Porque haverá um amanhã.»
Winston Churchill, 1940, para os franceses face à derrota iminente.
«Todas as guerras são civis, porque todos os homens são irmãos.»
François Fénelon
«São os homens velhos que declaram a guerra. Mas são os jovens que lutam e morrem.»
Herbert Hoover
«O amor é a única força capaz de transformar um inimigo num amigo.»
Martin Luther King, Jr.
«Em todo o tempo ama o amigo e para a hora da angústia nasce o irmão.»
Provérbios 17:17
Prólogo
Guadalajara (México), 29 de janeiro de 1945
Nem os poetas sabem o que um coração consegue suportar. Ninguém conseguiu medir a amizade, o peso leve que inclina o coração para um desconhecido e o torna alguém especial. Os laços que unem almas aparentemente contraditórias, seres criados para sobreviver e morrer na solidão, mas que, no caminho entre as duas mortes, a preexistência e a pós-existência, descobrem que outras almas vagueiam descarnadas pelo mesmo caminho de sofrimento e alegrias.
A chegada do meu amigo Óscar Böeck, alguns dias antes do Natal, recordou-me aqueles dez anos na Alemanha, praticamente toda a minha juventude. A minha viagem no fim do verão de 1929 com a minha mãe María de la Peña y Arias à pequena localidade costeira de Schwerin, perto de Rostock, onde mergulham as raízes da minha família paterna até ao fim do século XVI, levar-me-ia a viver uma das décadas mais turbulentas da história, dentro do próprio coração do mal. Muito poucas pessoas podem contar que viram os olhos do próprio diabo e viveram para o contar. Eu tive de o enfrentar com apenas dezanove anos. Aqueles olhos ainda me perseguem nas longas noites de insónia e nos pesadelos que, como sombras, perseguem sempre os homens valentes. Apesar do que os poetas dizem, a valentia é uma forma sofisticada de covardia.
Os Collignon parecem condenados à maldição de fugir sempre deles próprios, como se os nossos próprios fantasmas familiares nos perseguissem. Fugimos no fim do século XVII de uma França perseguida pelas guerras da religião, assentámos em Berlim e, quando a crise flagelava uma Alemanha prestes a unificar-se pela primeira vez na sua História, fomos para o México, ouvindo os pensamentos quiméricos do imperador Maximiliano, que imaginou um país impossível e morreu à frente de um pelotão de fuzilamento com o grito de «Viva o México!».
O meu bisavô, Eduardo Federico Collignon Hindrichs, chegou a Guanajuato em 1866 e, pouco depois, instalou-se em Guadalajara, onde era mais fácil triunfar e criar um pequeno negócio. Ao ver este lugar magnífico, teve a sensação de que a América era tão nova que muitas coisas careciam de nome. O meu bisavô e os seus três irmãos só trouxeram para esta bela terra as suas cabeças repletas de conhecimento e o desespero dos que nunca encontram o seu lugar no mundo. O meu amigo Óscar Böeck recordou-me que era tão errante como os meus antepassados.
O Velho Mundo foi um fardo pesado para mim. Mesmo naquele tempo, as histórias da minha família, as suas palavras misteriosas em alemão, pareciam exorcizadas pelos gritos dos chavalos[1] na rua onde me encontrava. Aquele envelope misterioso com o meu nome, Eduardo Collignon de la Peña, escrito numa letra apertada em alemão, fez com que me inquietasse. A carta desesperada para Óscar, há alguns meses, devolvera-me à realidade da guerra na Europa e fizera-me recordar que aquela Alemanha que conheci, que agora era composta por escombros de um país que quisera dominar o mundo, esquecera o poder da compaixão.
Quando cheguei, em 1929, o país estava perdido numa espécie de histeria coletiva. A vida parecia melhorar e os alemães pareciam esquecer a derrota da Grande Guerra. A República de Weimar era odiada pela maioria, mas, ao mesmo tempo, fizera com que toda uma geração se esquecesse da guerra desumana de trincheiras intermináveis, como sepulturas lineares, onde a lama e o sangue se confundiam até transformar tudo numa amálgama de dor e medo. A hiperinflação passara e a burguesia recuperava parte da confiança perdida. A única nota dissonante era o palavreado do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães e a resposta dos comunistas, que se tinham transformado, naquele momento, num traço pitoresco da Alemanha.
Depois de uma etapa na escola pública de Schwerin, num mundo cinzento, de cores plúmbeas e onde tinha saudades do bonito céu do México, cheguei a Munique, a cidade mais bela da Baviera. Enquanto acabava o liceu, o meu irmão Mario chegou de Guadalajara, para começar os seus estudos. Estávamos em 1933 e era naquele ano que a Alemanha ia mudar por completo. Felizmente, o grupo de amigos latino-americanos que formara multiplicaria as minhas alegrias e dividiria as angústias a meio.
Óscar, recostado na cadeira da sala da minha casa, com o seu semblante pálido e os seus traços sulcados devido ao vestígio inexorável da guerra e da fome, falou-me do destino daquele velho grupo de amigos com quem passava as tardes de sábado a jogar futebol, para enganar a saudade. Embora tenha sido a história de Hanna, Ernest e Ritter que me fez sentir uma pontada forte no peito. Eles tinham sido as pessoas que mais amara na Alemanha. Nesse momento, recordei os três a despedir-se de mim na estação de Friedrichstrasse, de Berlim, em agosto de 1939, exatamente quando o mundo estava prestes a entrar no inverno mais comprido da história.
Naqueles anos, os jovens pensavam que, para que tudo mudasse, o mundo devia voltar a estar nu. O que não compreendíamos naquele momento era que os farrapos com que o Terceiro Reich nos cobriria seriam o patriotismo e a lealdade, despojando-nos do pudor, que é a alma da consciência. Prometeram-nos a glória, mas, anos depois, todos tínhamos saudades da honra, da decência e da civilização, que são os verdadeiros valores que nos tornam seres humanos e são capazes de nos levar até à soleira da eternidade.
[1] É desta forma que se denomina as crianças ou jovens no México.
PRIMEIRA PARTE
MARIO
1
Berlim, 27 de fevereiro de 1933
Eduardo parecia muito diferente da última vez que nos vimos no México. Enquanto avançava pela plataforma cheia de pessoas, a sua altura destacava-se da do resto dos viajantes. Abanava a mão direita com força, como se estivesse a jogar polo. Dirigia-se para mim com as calças bombachas cinzentas, as meias altas até aos joelhos, a gravata escura e uma camisa impoluta. Por cima do fato, tinha um casaco de caxemira, que bamboleava como as centenas de suásticas postas na parede comprida da estação. O carregador seguia-o a curta distância. Estava há mais de um mês e meio fora de casa e começava a sentir-me como um caracol, sempre com a casa às costas.
Antes de o meu irmão me abraçar, apercebi-me do ar quente que deixava pelo caminho, do cheiro intenso a perfume e do seu sorriso complacente. Passámos mais de um minuto abraçados enquanto os passageiros passavam ao nosso lado, incomodados, não por lhes bloquearmos o caminho, mas porque não entendiam aquele afeto espontâneo e caloroso que os latino-americanos mostravam sempre.
O meu irmão agarrou-me a mão como se ainda fosse uma criança, mas, com quinze anos, já era um jovenzinho desenvolvido, mais alto do que alguns adultos e com os traços apagados do meu pai no rosto.
Não falámos, ficámos em silêncio, deixando que os sentimentos assentassem como a terra remexida por uma onda turbulenta. Antes de alcançarmos o vestíbulo grande da estação, dois homens vestidos com gabardinas cinzentas e gorros puxados até às sobrancelhas pararam-nos e pediram-nos educadamente para nos desviarmos para um lado. O mais alto pediu-nos cortesmente os passaportes sem parar de nos observar com curiosidade. Certamente, descobria em nós os traços raciais de dois alemães, mas o nosso sorriso constante denunciava-nos como estrangeiros. Ninguém sorria na Alemanha, pelo menos, enquanto a neve cobrisse as ruas e os campos do país com uma camada fria e lúgubre. A polícia secreta devolveu-nos os documentos e, com um gesto, indicou-nos que seguíssemos o nosso caminho. Não era a primeira vez que me mandavam parar para que me identificasse; desde que o comboio atravessara a fronteira da Holanda e entrara na Alemanha, tinham-me mandado parar e tinham-me interrogado brevemente duas vezes. Agora, ao lado do meu irmão, sentia-me novamente a salvo. Aquela viagem pelo Atlântico fora a aventura mais incrível da minha breve vida. Descobrira que viajar é pormo-nos em risco, tornarmo-nos vulneráveis, como um cego a quem mudam os móveis de sítio e começa a tropeçar em tudo o que encontra pelo caminho.
Saímos para a praça e o meu irmão mandou parar um táxi, um Renault velho conduzido por um idoso de barba quase completamente branca. Se não estivéssemos em março, teria pensado que se tratava do Pai Natal. Assim que nos sentámos, Eduardo pôs-me a mão direita na perna e disse-me em espanhol, uma língua que mal ouvira nas últimas semanas:
— Cada cidade do mundo tem a sua própria melodia. Berlim tem um som diferente do da nossa cidade natal e o de Guadalajara é diferente do de Paris ou de Londres. Vais descobrir muito em breve. O nosso hotel é na avenida Kurfürstendamm, uma avenida ampla, onde há atividade durante quase todo o dia, mas, ao contrário de outros países, o barulho aqui é harmonioso. Passam três linhas de elétrico pela avenida, mesmo à frente do nosso hotel, mas, até no verão, quando o calor nos obriga a abrir as janelas, os vagões de tom creme mal fazem barulho, como se tentassem não desafinar, até saltar alguma faísca e nos fazer pensar na nota final de um baterista no fim de um concerto. Pelo contrário, os elétricos no México são como uma correria de gado, as pessoas gritam, cantam e saltam deles como se fugissem das garras de um dragão temível. Vais ver que, aqui, funciona tudo na perfeição. Os alemães são pontuais, pulcros, limpos e as suas ruas, sempre ordenadas, brilham como o chão da cozinha da nossa casa.
O meu irmão olhou para mim com um ar enternecedor, sabia que tentava encorajar-me. Eu não tinha a nossa mãe para me ajudar a adaptar-me, como acontecera com ele. Sentia a falta de Guadalajara, da família e da comida. Não gostava de nada. A comida estrangeira não me assentava bem ou, pelo menos, na longa travessia, não conseguira fazer com que o estômago assentasse.
— Irmão, não tens de me contar tudo isso. Já não sou uma criança. Barbeio-me todas as manhãs e…
— Está bem, Mario. Simplesmente, queria explicar-te que as coisas são diferentes aqui. A mãe esteve comigo um mês, mas, depois, deixou-me nessa vila isolada do norte. Pelo menos em Munique, estaremos juntos. Temo-nos um ao outro. Não pode acontecer-nos nada de mal.
Aquele desejo assustou-me mais do que me animou. Virei-me, deixando, por um instante, de observar a neve quase preta, tingida pela fuligem dos carros e o óleo dos elétricos, e franzi o sobrolho até se formar a expressão a que a minha mãe achava tanta graça.
— Estás a assustar-me. Li os jornais durante a viagem. Só trouxe três livros e, para uma travessia tão longa, fiquei sem leitura ao chegar a Inglaterra. Lá, trouxeram jornais atrasados em várias línguas. Todos pareciam agitados com o novo chanceler. Porque há bandeiras por todos lados com essa cruz? A polícia mandou-me parar duas vezes antes de chegar a Berlim e, agora, tentas tranquilizar-me.
Eduardo recostou-se, como se precisasse de se distanciar da pergunta ou ganhar tempo. Os adultos, sobretudo quando fizeram a transição há pouco tempo, não conseguem explicar as coisas aos adolescentes. Sentem que, com o seu corpo em crescimento, têm a mente inchada.
— Bom, estou aqui há cinco anos. Cheguei em plena Depressão. Graças a Deus, o peso estava forte nesse momento. Não foi mau, mas as pessoas daqui morriam de fome. As filas nas salas de jantar sociais e nas igrejas davam a volta ao quarteirão. As crianças mendigavam na rua. Às vezes, da manhã para a tarde, o preço do pão ou do leite quadruplicava. Em Schwerin, as coisas estavam mais tranquilas, mas foi terrível nas grandes cidades.
Fiquei em silêncio. Eduardo não me contara nada daquilo nas suas cartas. Esperávamo-las com desejo. Cada vez que o carteiro, com a sua sacola de couro, batia à nossa porta e dava os envelopes à empregada, íamos a correr tirar-lhos das mãos. Os meus pais e eu sentávamo-nos na poltrona da sala e a minha mãe, com a sua voz suave e doce, começava a ler-nos as novidades. Antes de chegar ao terceiro parágrafo, já se notava que se emocionara, como se os sentimentos se lhe atravessassem na garganta e um ligeiro pigarrear tivesse de lhe limpar as cordas vocais, deixando que a tristeza descesse novamente para o peito. Nem o meu pai, um verdadeiro prussiano, conseguia evitar que os olhos se enchessem de lágrimas. Ao fim e ao cabo, todos os Collignon varões tinham passado a prova de iniciação à idade adulta da mesma forma, regressando à nossa terra natal, como Abraão enviara o seu escravo para Ur para procurar uma esposa para o seu filho Isaque na Bíblia. Cada geração devia manter a chama germanizada viva na família, mesmo que as nossas origens fossem francesas.
— Agora, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães governa. O velho presidente Hindenburg teve de aceitar Adolf Hitler como chanceler e as coisas parecem estar a mudar muito depressa. Embora já esteja habituado, pois Munique é o berço dos nazis. Mas deixemos de falar de política. Estamos a chegar ao hotel. É muito perto do jardim zoológico e pensei que gostarias de dar um passeio antes de irmos jantar.
Eduardo voltou a recuperar o sorriso e, de repente, todos os receios e a angústia da viagem se dissiparam, como a névoa nas histórias de Conan Doyle, com a chegada do seu personagem mítico, Sherlock Holmes.
Depois de deixar as malas no Hotel Zoo, um dos mais elegantes da cidade, com uma fachada impressionante em que se observavam as cariátides da Acrópole de Atenas, entrámos na noite berlinense, que parecia mais perigosa e ameaçadora do que o meu irmão se atrevera a contar-me. Passámos junto do restaurante Alte Klause, uma cervejaria alemã célebre, e o meu irmão entrou na sala. A atmosfera estava carregada de fumo. As mesas postas de forma desordenada e muito coladas umas às outras indicaram-nos que aquele lugar era popular, mas comia-se muito bem. Jantámos algo leve antes de irmos ao jardim zoológico. Tenho de confessar que, naquele lugar, bebi a primeira cerveja da minha vida. Depois, entrámos no Jardim Zoológico de Berlim por umas portas chinesas impressionantes sustentadas por dois elefantes grandiosos. No interior, havia uma ligeira bruma, formada pela vegetação densa e pela frescura da tarde, e ouviam-se os gemidos dos animais, que tentavam descansar depois de um dia agitado. O recinto estava quase deserto e mal nos cruzávamos com visitantes. Os nossos passos ecoavam no chão empedrado. Não vimos nenhum animal, mas sabíamos que estavam nas sombras, como fantasmas ameaçadores. Algumas vezes, senti-me tentado a pedir que voltássemos para o hotel, mas a curiosidade da juventude venceu o receio. Chegámos a uma ponte e atravessámo-la, enquanto o frio húmido da noite nos penetrava os ossos. Caminhámos por uma avenida ampla, rodeados de árvores, até ao Portão de Brandemburgo e, mal nos tínhamos detido à frente dele para admirar a sua beleza, quando ouvimos uns camiões de bombeiros, com as suas sirenes e luzes vermelhas, a virar a toda a velocidade pela rua à nossa esquerda. Quando nos virámos, vimos um edifício que ardia a cerca de quatrocentos metros. Entreolhámo-nos, surpreendidos, e começámos a dirigir-nos para o lugar.
— Vamos! — gritou Eduardo, correndo para a rua.
À medida que nos aproximávamos, o fogo iluminava o céu escuro e as chamas chispavam, lançando faíscas por todo o lado. Pequenas explosões avivavam o fogo e a multidão começou a amontoar-se ao nosso lado. Antes de chegarmos, dois camiões de bombeiros já estavam a atirar água para a fachada, enquanto a polícia começava a isolar a zona. Ficámos hipnotizados a olhar para o fogo alaranjado, que nos mostrava a sua beleza destrutiva. O fogo sempre exerceu um poder ancestral sobre os homens. Foi o fogo que nos permitiu dominar a natureza e criar a civilização, embora muitas vezes também servisse para a transformar em cinzas. Naquele momento, senti uma espécie de prazer inconfessável. Há algo bonito na devastação, sobretudo, quando se é jovem. De alguma forma, desejava que o mundo voltasse a começar do zero, para conseguir encontrar o meu lugar e sentir que encaixava.
— Meu Deus, é o Reichstag! — gritou o meu irmão, com os braços levantados. O seu rosto reluzia com a luz das chamas e, nas suas pupilas, o fogo brilhava de uma forma assustadora.
Observei-o, inquieto. Parecia um homem que se afogava, mexendo os braços naquele oceano de escuridão, enquanto observava como a última ilha do mundo se transformava em cinzas e pó. Algo estava prestes a começar, mas, primeiro, o fogo teria de purificar tudo.
2
Munique, 6 de maio de 1933
A rotina é a mesma em qualquer país do mundo. Em certo sentido, é a forma que temos de tornar o que nos rodeia nosso. Todas as manhãs, o meu irmão Eduardo e eu tomávamos um pequeno-almoço leve na cozinha da viúva que administrava a pensão onde vivíamos, a amável e sempre bondosa senhora Chomsky. Depois, saíamos para a rua e eu dirigia-me para a minha escola, que era a apenas alguns quarteirões da casa. O meu irmão apanhava o elétrico para a escola preparatória dele, pois ainda faltava um ano para poder inscrever-se na Faculdade de Engenharia. Voltávamos a encontrar-nos à tarde, já que almoçávamos nas respetivas escolas. Por isso, passava praticamente todo o dia sozinho, excetuando as noites e os fins de semana. Não demorei muito a adaptar-me à escola. Nela, havia três regras básicas: Nunca sorrir, não chamar a atenção e não infringir as regras. Em pouco tempo, fiz dois bons amigos, sobretudo, os meus inseparáveis Roht e Yohann. Costumávamos regressar juntos a casa, embora nos entretivéssemos sempre a fazer algumas travessuras ou a falar dos nossos sonhos. Um dos meus professores favoritos era o senhor Newman. Entrava sempre na sala de aula com um sorriso, algo que era provocador numa escola alemã do Terceiro Reich. Por baixo da capa preta, usava um fato cinzento velho e muito usado, uma camisa branca com o colarinho e os punhos desgastados por causa do uso e uns sapatos estragados e pretos. A sua pasta de couro, também preta, estava riscada e, lá dentro, tinha sempre uma maçã, o jornal do dia e um caderno velho onde escrevia uns apontamentos para dar nas aulas, que raramente lia. Dava-nos Literatura e Língua e, embora ultimamente parecesse abatido e com pouco entusiasmo, quando começava a falar de literatura, recuperava a energia até nos descrever, de forma extasiada, as grandes joias da literatura alemã ou os clássicos greco-latinos. A sua voz suave e melodiosa parecia acariciar o vento temperado da primavera, cada vez que começava a aula.
— Nunca fomos um povo de poetas. A nossa língua demorou muito a saber expressar-se por escrito. Em certo sentido, fomos e somos um povo de transmissão oral. Sentados à volta da fogueira, a contar velhas histórias germânicas e a deixar que o mundo siga em frente no seu processo interminável de ódio, ambição e poder. Tivemos de esperar para nos livrarmos dos laços da Igreja de Roma e da bonita Bíblia de Martinho Lutero, para nos transformarmos numa língua digna de tal nome. Isso não significa que, na Idade Média, não se dessem grandes obras literárias nas belas terras germânicas. A poesia épica de Helian, que descreve a vida de Jesus Cristo de uma forma lendária, o heroico Ludwigslied ou a bela Oração de Wessobrunn:
Aprendi isto entre os homens mortais como a maior maravilha:
«De que não havia a terra, nem o céu lá em cima.
Nem árvores, nem montanhas havia.
Nem nenhuma estrela, nem o sol brilhava.
Nem a lua brilhava, nem [estava ali] o glorioso mar.
Quando não havia nada, nem limites,
havia o Deus Todo-Poderoso.»[2]
»No século xii, as estrofes cortesãs do Mittelhochdeutsche Blütezeit, mas, sobretudo, o Parzival do século XIII, quando Wolfram von Eschenbach nos descreve a busca do Santo Graal, mostraram-nos a necessidade de uma busca interior do bem e da justiça. Os alemães sempre se encontraram nessa busca. Desejando criar um mundo melhor, sem o fardo pesado da civilização.
As últimas palavras retumbaram na sala com o eco causado pelo silêncio e pela resposta inquieta de vários lábios, incomodados com a beleza das palavras do professor.
— Dizia, ao princípio, que o nosso não é um povo de poetas, mas de filósofos. Não perseguimos a beleza, pois os gregos e os romanos já o fizeram melhor do que nós. Desejamos algo mais alto e sublime: A verdade.
O professor olhou por um segundo para as árvores do pátio, como se precisasse que a sua mente se refrescasse através dos seus olhos melancólicos.
— Goethe ou Schiller não eram poetas, eram, sobretudo, pessoas que procuravam a verdade. A estética sem verdade torna-se uma mentira grosseira e terrível. Alguns dizem que a nossa literatura se desmoronou até se transformar num monstro antialemão, mas eu digo-vos que um povo sem literatura é um povo escravo.
Das últimas filas, um murmúrio foi crescendo até se transformar num estrondo.
— Maldito velho! Tu, judeu, és um antialemão! Dentro de pouco tempo, todos os judeus da Alemanha estarão mortos ou fora do Reich — declarou Klaus, o líder do Serviço de Patrulha da Juventude Hitleriana da escola.
— Jovenzinho, volte para o seu lugar!
Klaus levantou-se e começou a rasgar o seu livro de texto em mil pedaços, deixando que as folhas voassem até rodar pelo chão e pelas secretárias. Outros rapazes da Juventude levantaram-se e imitaram o líder.
Yohann levantou-se e pôs a cara a menos de um centímetro da de Klaus. Não podia fazer muito contra um espécime musculado da raça ariana de quase um metro e noventa e cem quilos de puro músculo, mas o meu amigo não suportava os nazis. Hesitei por uns instantes. Olhei para o professor, com o rosto avermelhado de raiva e impotência, e levantei-me ao lado do meu amigo. Roht também se levantou. Éramos três contra mais de uma dúzia.
Yohann cerrou os punhos e todos começaram a encorajá-los para lutarem.
— Não, calma. A literatura é o contrário de tudo isto. É liberdade, respeito pelo próximo e amor pela verdade — declarou o professor, pondo-se no